Cada civilização é movida por cosmovisões, motivações, mitos e modelos
mentais próprios. As várias civilizações desenvolveram conceitos distintos a
partir dos quais orientam as diferentes formas de organização social e
política.
Enquanto direitos e deveres são conceitos criados na civilização
ocidental de matriz greco-romana e judaico-cristã, dharma é um conceito
originário da civilização indiana, na Ásia. Mais de um século atrás, em 1908,
um dos grandes sábios indianos, Sri Aurobindo, escreveu:
“Tem-se dito que a democracia baseia-se nos direitos do homem; foi
respondido que deveria basear-se nos deveres do homem; mas ambos, direitos e
deveres, são ideias europeias. Dharma é a concepção indiana em que os direitos
e deveres perdem o antagonismo artificial criado por uma visão do mundo que faz
do egoísmo a raiz da ação, e recupera a sua unidade profunda e eterna. Dharma é
a base da democracia que a Ásia deve reconhecer, pois nisso reside a distinção
entre a alma da Ásia e da alma da Europa. Por meio do dharma a evolução
asiática se realiza; este é o seu segredo.” (1)
A imagem usada por Sri Aurobindo para definir o dharma ressalta a
importância da unidade ao invés da contraposição. Direitos e deveres, que
aparentemente se opõem, na realidade constituem uma unidade, como numa fita de
Moebius, na qual um lado é a continuação do outro.
Na fita de Moebius um e outro lado são idênticos. No Dharma, direitos e deveres perdem seu antagonismo e recuperam sua unidade. |
O conceito de dharma é fecundo no atual contexto em que se valoriza o
que é sustentável. Heinrich Zimmer (2) nota que dharma é um substantivo
proveniente da raiz do sânscrito dhr, que significa sustentar, carregar: “É a
lei, aquilo que sustenta, mantém unido ou erguido.”
Dharma tem, nesse sentido, uma relação direta com as questões da
sustentabilidade e a dharmacracia é um caminho para a democracia sustentável.
O ex-presidente indiano S. Radhakrishnan, em livro sobre a visão hindu
da vida, explora um significado similar, dizendo que “Dharma sustenta os meios
os quais prendem uma coisa e mantém sua existência. Toda forma de vida, todo
grupo de homens tem seu dharma, que é a lei do seu ser. Dharma ou virtude está
em conformidade com a verdade das coisas; adharma ou vício é a oposição disto.”
(3) O cumprimento do dharma é central numa civilização sustentável.
Outro aspecto do dharma se relaciona com a ação e a missão humanas. Isso
é enfatizado num dos textos sagrados hindus, a Bhagavad Gita, parte integrante
do épico Mahabharata (Grande Índia). Ali se mostra como Krishna, a divindade,
estimula Arjuna, o guerreiro, a lutar e a assumir seu próprio dharma:
“Lembra-te que é melhor cumprir a própria tarefa, ainda que seja humilde
e insignificante, do que querer fazer a tarefa de um outro, por mais nobre e
excelente que seja.” (4)
No campo da ação, há uma relação do dharma com o conceito de carma (ou
karma). Carma é a lei da causa e efeito aplicada à vida. Mais cedo ou mais tarde
boas ações produzem circunstâncias positivas na vida de quem as pratica,
enquanto as más ações produzem sofrimento para quem as realiza. Dayananda
observa que “De acordo com o dharma, a ação humana tem um resultado invisível
bem como um resultado imediato e tangível. O resultado invisível da ação
soma-se de forma sutil na conta do ‘fazedor da ação’ e, com o tempo,
frutificará, tangivelmente, para ele como uma experiência ‘boa’ ou ‘má’ - algo
prazeroso ou doloroso.” (5) Para ele, uma boa ação frutifica como prazer e uma
má ação frutifica como dor ou sofrimento. Traduzindo tais ideias em uma
linguagem contemporânea, é como se cada indivíduo tivesse uma conta ou cartão
de crédito cármico, um “credicarma”, com seus créditos e débitos, que se
acumulam e que são pagos ou resgatados, cedo ou tarde, imediatamente, no médio
e longo prazos. Ao cumprir seu dharma, o indivíduo liquida o débito do carma
passado e obtém um crédito para se libertar.
Na Bhagavad Gita, recomenda-se que as ações sejam realizadas
desinteressadamente. Sri Ramakrishna esclarece: “Quando a Gita pede para
realizarmos nossas ações sem qualquer pensamento sobre o resultado, não espera
que eliminemos todos os motivos como tais, mas que eliminemos todos os motivos
mundanos e que tenhamos o desenvolvimento de nossa natureza espiritual como o
único motivo para nossas ações”. (6)
Ao cumprir a tarefa que lhe cabe, o indivíduo ou a sociedade aceitam sua
missão e reconhecem aquilo para o que foram destinados. Todo indivíduo tem um
dharma próprio, exigido pelas circunstâncias de sua vida - positivas ou negativas
- em que ele é compulsoriamente colocado pelo destino para que equilibre ações
passadas.
O mestre Swami Dayananda esclarece a importância do autoconhecimento e
da autoconsciência, bem como a relevância da ação bem realizada: “Como não há
um certo absoluto e nem um errado absoluto nesse mundo relativo, o senso de
dharma tem que crescer dentro de cada um. Uma pessoa que entende o dharma pode
decidir sobre uma ação apropriada a qualquer situação, assim como o bom
motorista sabe como comportar-se em qualquer nova situação do tráfego. [...] O
dharma é a justiça ideal que se fez vida; a virtude é medida pela perfeição
atingida por cada um no exercício do seu papel”. (7)
Na história das culturas, a consciência humana já foi predominantemente
mítica, mágica, baseada na crença em leis divinas, teocrática. A partir de
certo momento, baseou-se no logos, na razão, tipo de consciência que exige a
capacidade de um indivíduo observar o mundo e observar-se a si próprio. Ele se
compreende por meio do autoconhecimento: toma consciência de si mesmo, tem
consciência do próprio dharma, ou de seu papel no palco da história. Quem sabe
o seu dharma torna-se autoconsciente, conhece as ações que lhe cabe realizar
nesta vida e procura exercê-las virtuosamente.
A dharmacracia pode ser vista como uma meta que evolui a partir do
patamar alcançado pela democracia dos direitos. Dharmacratizar a política é um
modo proativo, voltado para a frente e para o alto, de responder às
insatisfações sociais quanto à democracia dos direitos, direcionar os governos
para aspirações coletivas, afastar os cleptocratas, reduzir a corrupção e seus
danos. Numa dharmacracia, a ética ecológica é internalizada como parte
integrante da política e os governantes se pautam por ela.
Há um caminho a percorrer para se evoluir das cleptocracias e das
democracias dos direitos para a dharmacracia. Isso pode ser realizado com as
práticas individuais, de baixo para cima (Seja a mudança que você quer ver no
mundo, dizia Gandhi). Isso também pode ser realizado por meio das construções
políticas globais, de cima para baixo.
Esses podem ser caminhos na transição da democracia dos direitos,
representativa ou participativa, em crise, para a dharmacracia. Isso inclui ir
além e evoluir dos direitos para o dharma. Especialmente nos temas da
governança global e colocando Gaia em primeiro lugar, seria promissora a adoção
do dharma como princípio norteador da ação política e da ação ecológica.
No contexto atual da crise ecológica, a proposta de Sri Aurobindo
para a Ásia pode ser estendida para todo o mundo. Não só a evolução asiática,
mas a evolução política humana mais ampla também pode se beneficiar desse
conceito.
Dharma, concepção tropical indiana que pode ser valiosa para o Brasil. |
Especialmente o Brasil, que não se situa na Europa nem na Ásia, e que
recebeu forte influência das ideias europeias, poderia se beneficiar dessa
concepção do dharma. No Brasil ainda não se realizam os direitos humanos
básicos: vide os déficits no direito à educação e à saúde, a situação das
populações carcerárias, os déficits de proteção à segurança pública, a
ocorrência de trabalho escravo, entre outras. Tampouco se realizam os direitos
difusos de terceira geração: vide a falta de saneamento ambiental, as poluições
e agressões à natureza.
Do mesmo modo no Brasil se desconhecem conceitos como o do dharma. Sendo
este país uma sociedade aberta e receptiva ao novo, “antropofágica”, que sabe
deglutir e metabolizar o que vem de fora, seria valioso conhecer o que é o dharma
e aplicá-lo à vida e à política.
1-SRI AUROBINDO Complete Works,
vol.1, p.759. [4] Sri Aurobindo foi um ativista político que participou da luta
pela independência da Índia, foi preso, depois passou a dedicar-se a questões
globais e da evolução humana. AUROBINDO, Sri. Complete works, v.1, p.759.
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.51.
Muito bom e evolutivo. Pessoalmente ainda tenho dificuldades em "Quem sabe o seu dharma torna-se autoconsciente, conhece as ações que lhe cabe realizar nesta vida e procura exercê-las virtuosamente." Vamos trabalhando...
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