segunda-feira, 25 de novembro de 2019

A Índia como um laboratório

Maurício Andrés Ribeiro

A Índia experimentou ao longo de sua história, com grande liberdade,  modos de oferecer respostas aos vários problemas com os quais se defrontou.
O experimentalismo na Índia se aplica em diversos campos da vida. A sociedade faz experiências consigo mesma, na sua forma de organização social, na sua psicologia, no seu modo de lidar com a consciência e com a espiritualidade.   É como se um espírito científico alimentasse a busca por autoconhecimento. Por isso indianos como Sri Aurobindo e Tagore consideram a Í 
ndia uma experiência única entre as várias civilizações humanas.
O cristianismo primitivo, introduzido na Índia pelo apóstolo São Tomé, o mais experimental dos discípulos de Jesus, que precisava ver para crer, foi distinto do cristianismo romano com seus dogmas, que  lá chegou há 500 anos com a colonização europeia.
Sadhu à margens do Ganges em Rishikesh. Liberdade de busca espiritual.
No Vedanta não se demanda das pessoas acreditarem em verdades ou dogmas, mas  estimula-se a experimentação, a vivência prática. A sociedade incentivou a liberdade de busca espiritual e de investigação religiosa de cada um, experimentando o seu caminho para a autorrealização.
Na  Satyagraha, Gandhi  fazia experiências com a verdade.
Os últimos passos  de Gandhi no Memorial em Delhi. Ele fazia experiências com a verdade.
As experiências com o corpo levaram ao desenvolvimento de pranayama, modos de respirar, ásanas, modos de ter posturas corporais, hábitos alimentares, uso de sons, formas, cores, conhecimento sobre a energia que flui no corpo (chacras) e conhecimento sobre as fases da vida no Kama sutra.
A respiração é elevada de um ato natural que um ser vivo realiza do momento em que nasce ao último suspiro, a um ato cultural consciente. Exercita-se  a respiração e como ela influi sobre os estados de consciência, sobre o corpo e a mente. Pranayamas, exercícios respiratórios  facilitam a  concentração e a atenção no aqui e agora. Uma boa respiração reduz estresse, hipertensão, depressão. Relaxa, produz boa irrigação sanguínea, oxigenação. A Índia desenvolveu a ciência e arte de respirar.
O Ioga, com sua ação sobre o corpo, a mente e as emoções, desenvolveu práticas e exercícios que expandem os limites humanos, desenvolvem a atenção e presença no agora, a concentração,  a criatividade nas artes e ciências.
A psicologia yogue faz experiências com níveis extremos da consciência e da supraconsciência, domínios em que não se aventura a  maior parte da psicologia ocidental (exceto a psicologia transpessoal).
Acumulou-se valioso conhecimento sobre a mente, na meditação e na alteração de estados de consciência. Ken Wilber (no livro Psicologia Integral, Pg. 30) escreve sobre os benefícios da meditação que torna o campo mental mais limpo; permite esvaziar a mente de pensamentos, emoções, crenças, percepções; entra em estados de consciência mais lúcidos, melhora a qualidade dos pensamentos; tira o supérfluo e deixa o essencial, permite acessar domínios superiores de forma deliberada e prolongada.
Formou-se em séculos e milênios de experiências um impressionante corpo de conhecimentos sobre o ser humano, seu corpo, sua mente, suas emoções, seus processos psicológicos. Esse corpo de conhecimentos está hoje à disposição do mundo globalizado, que chega a um estágio de crescimento populacional e adensamento em seu território similar ao que a Índia vivenciou no passado. Daí a razão da frase de Tagore, de que  O que a Índia já foi, o mundo todo é agora.”. Invadida e dominada por muitos e variados povos ela desenvolveu um know how de inclusão, de tolerância,  de hospitalidade e de adaptação valioso para o mundo moderno.
Até mesmo o polêmico e controverso sistema de castas que organiza a vida social foi um experimento da sociedade indiana consigo mesma. A Índia constituiu uma sociedade que nunca escravizou nem se deixou escravizar. Sobre esse sistema, Tagore observa  “O que os observadores ocidentais não conseguem discernir é que, em seu sistema de castas, a Índia seriamente aceitou sua responsabilidade de resolver o problema de raças de maneira a evitar toda fricção, e ainda assim oferecendo a cada raça liberdade dentro de suas fronteiras. Admitamos que a Índia não obteve nisso um sucesso absoluto. Mas também deve ser lembrado que o ocidente, situado mais favoravelmente quanto à homogeneidade de raças, nunca deu atenção a esse problema; sempre que confrontado com ele, tentou torná-lo mais fácil, ignorando-o." Num período em que proliferam fundamentalismos e fanatismos ideológicos e religiosos, que polarizam e criam conflitos violentos,  em que os migrantes são hostilizados ou enxotados, vale conhecer o know how indiano  de convivência das diferenças, da hospitalidade e de todos os aspectos do soft power indiano que trazem de modo difuso e discreto influências positivas para o mundo contemporâneo.
Essa civilização com mais de 4000 anos de experiência acumulou um patrimônio enorme de sabedoria e de conhecimentos. Muito desse patrimônio foi acumulado a partir de métodos experimentais, de tentativa e erro, de aproximações sucessivas, de incrementalismos.
A riqueza de um povo não é apenas material, financeira, econômica, ou o seu patrimônio natural,  mas principalmente seu patrimônio social, espiritual e cultural, intangível e imaterial.

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