sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Uma linha do tempo de Brasília, do século XIX à pandemia de 2020.

 

Maurício Andrés Ribeiro

Antes de existir fisicamente, Brasília foi desenhada num pedaço de papel submetido a um júri internacional e escolhido entre 26 projetos urbanísticos. Antes de estar nesse pedaço de papel desenhado e escrito por Lúcio Costa, esteve na cabeça do urbanista.

Antes de Brasília estar naquela  mente, esteve na decisão tomada por JK em 1956 de mudar para o planalto central a capital, inaugurada em 1960.

Antes de JK tomar essa decisão, instigada por uma pergunta de um popular num comício politico, ela esteve na primeira constituição brasileira de 1891 que fixou legalmente a região em que deveria ser instalada.

Entre o momento em que foi escrita na constituição  de  1891 e a decisão de mudar a capital, ela esteve nas ações da missão Cruls,  que fez duas expedições em 1892 para delimitar o retângulo onde seria o futuro Distrito Federal. Ela foi construída pelo estado, em terras públicas. Não sofreu as limitações impostas pelo mercado imobiliário ao  construir em terras de propriedade privada, quando a busca pelo lucro e pela redução de custos reduz as áreas públicas e áreas  verdes, sacrificando então a qualidade ambiental, como aconteceu nas cidades satélites e nos assentamentos na periferia do Distrito Federal e em praticamente todas as cidades brasileiras.

Depois de inaugurada, em 75-76 uma praga destruiu a arborização e tudo precisou ser replantado. Não havia conhecimento sobre paisagismo e arborização urbana no cerrado. As árvores já têm mais de 40 anos na cidade sessentona. 

Em 1987 ela tornou-se a única cidade moderna inscrita na lista do  patrimônio mundial da UNESCO, o que a protegeu das investidas das empresas imobiliárias para adensá-la e verticalizá-la

 Essa somatória de ideias, pensamentos e decisões ao longo de mais de um século resultaram nessa cidade. Há 20 anos vivo em Brasília. Suas  superquadras tornaram-se superparques. Caminho pelas  vias públicas arborizadas, frequento comércio  e serviços locais e desde 2020 trabalho em casa  devido à pandemia.

Sou grato a todos os brasileiros e estrangeiros (o belga Cruls, e o francês-brasileiro Lúcio Costa, por exemplo) que trabalharam  para tornar realidade essa cidade que em 2020 tem amplos espaços verdes, generosas áreas públicas, árvores frondosas, unidades de vizinhança que funcionam e  respondem melhor do que todos os demais padrões urbanísticos aos desafios




















trazidos pela pandemia do coronavirus.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

As superquadras de Brasília - um padrão urbanístico valioso na pandemia

 

 Maurício Andrés Ribeiro















Na pandemia as superquadras de Brasília, concebidas há mais de 60 anos por Lucio Costa, mostraram qualidades valiosas. Tornaram-se um padrão urbanístico desejável. As superquadras são uma concepção brasileira pioneira do que já foi chamado de  unidades de vizinhança. Nelas se anda a pé entre  as moradias – casas, prédios baixos, prédios com pilotis para circulação livre de pedestres e sem muros ou cercas; há área verde, lazer, playground para crianças, serviços - banca de jornal, sapataria, costureira - escola, posto policial, local de culto, correios, comércio local, metrô e transporte coletivo próximos, ciclovia, circulação local de veículos, estacionamento, passeios para pedestres, horta urbana etc. Oferecem ambientes  saudáveis e já testados pela prática e vivencia de mais de 60 anos, que podem servir como referência para o planejamento urbanístico.

Nesta pandemia em vários países recuperou-se a antiga proposta, agora rebatizada como as cidades de 15 minutos, nas quais muitos serviços e infraestruturas se encontram próximas das moradias. A cidade desejada se mede em tempo e não mais em espaço:  a meta é que todas as atividades se encontrem a curta distância e possam ser alcançadas pelo caminhante ou pelo ciclista. Nelas  circula-se a pé junto a moradias, acessando o comércio, equipamentos públicos,  áreas verdes, escolas locais, nas chamadas superilhas e  superblocos. Os urbanistas propuseram mudar os ritmos da cidade e aproximar casa-trabalho-comércio-cultura-lazer.

Em Brasília, em  poucas décadas criou-se uma cidade-parque aprazível, propícia para se viver numa pandemia. Antes de existir fisicamente, Brasília esteve num pedaço de papel com desenhos e letras,  que foi escolhido por um júri internacional de urbanistas, entre 26 projetos urbanísticos. Antes de estar nesse pedaço de papel, esteve na mente de Lucio Costa. Antes desse projeto estar na mente de Lucio Costa, a ideia de mudança da capital para o planalto central brasileiro esteve nas mentes de muitos brasileiros desde o século 18.

Mais de um século foi necessário para  que um governante (JK) se dispusesse a transformar numa realidade física uma ideia abstrata que existia na mente das pessoas e na constituição brasileira como uma vontade de mudança. Quando se tomou a decisão política de mudar a capital para o planalto central a ação foi realizada pouco tempo: a ideia saiu da mente para o desenho no papel e dali para a realidade física. Em poucas décadas a paisagem poeirenta se transformou numa cidade verde, atestando  a capacidade dos brasileiros de transformar lugares de restaurar ambientes. Uma ideia, combinada com a energia do capital,  tem força transformadora da realidade. Ao se redirecionar investimentos para esse propósito,  a realidade se transforma. A força do capital é transformadora.  Atualmente, restaurar ecossistemas em grande escala é uma meta  desejável e alcançável.

O conceito das superquadras merece ser revalorizado quando os governos voltarem a priorizar a integração e a inclusão social. Muitos recursos que hoje são direcionados para a destruição poderão ser redirecionados para finalidades construtivas e gerar novas cidades  saudáveis, capazes de oferecer boa qualidade de vida mesmo durante uma pandemia.

 

 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

A Índia e a pandemia – vacinas e mortes por milhão

 

Maurício Andrés Ribeiro

 A Índia é o maior produtor mundial de vacinas e nessa pandemia recebe muitas demandas de todo o mundo para comprar as ali fabricadas. O Instituto Serum e a Bharat Biotech  são as duas principais empresas produtoras de vacinas. As duas empresas informaram em 5-1-2021  a “intenção de desenvolver a produção e fornecimento de vacinas contra a Covid-19 para a Índia e o resto do mundo.” Eles consideram que “vacinas são um bem de saúde pública mundial e têm o poder de salvar vidas e acelerar a retomada econômica”. As empresas consideram “nosso dever com a nação e o mundo garantir uma distribuição tranquila das vacinas.” A Fiocruz deve importar tais vacinas da Índia.

A Índia tem  grande capacidade industrial, de pesquisa em ciência e tecnologia e capacidade de fornecer produtos por baixo custo. Desse modo pode imunizar sua própria população e a de países em desenvolvimento que tem dificuldades de adquirir vacinas mais caras e que demandam uma logística de distribuição mais complexa por terem que ser mantidas em baixíssima temperatura. A Índia é grande fabricante de remédios alopáticos, ayurvédicos, homeopáticos.

Desde o início dessa pandemia a Índia apresenta números de mortes  por milhão de habitantes cerca de 9 vezes mais baixos do que aqueles que acontecem no Brasil. A Índia tem 108 mortes por milhão de pessoas,  enquanto o Brasil tem 922 mortes por milhão em 4-1-2021. Em números absolutos a Índia (150.151) tem menos mortes do que o Brasil (196.641). 

Quais os fatores e condições que contribuem para esse melhor desempenho indiano diante da pandemia? Quais as razões da Índia desde o início da pandemia e até o momento estar com números tão abaixo dos do Brasil em total de mortes por 1 milhão de pessoas?

Levantamos algumas hipóteses que envolvem tanto aspectos de gestão da pandemia como aspectos culturais e espirituais:

1.      Isso se deve a políticas dos governos federal,  estaduais e locais? Ao fato do governo da India ter sido radical em seu lockdown, enquanto no Brasil houve ambiguidade e posições divergentes das autoridades federais, estaduais e municipais? À melhor ou pior gestão da pandemia?

2.      À distribuição populacional e ao fato  de que a maior parte da população indiana ser rural e mais jovem (mais da metade da população com menos de 25 anos)?

3.      A razões comportamentais e ao fato de o povo indiano ser mais disciplinado e mais respeitoso em relação ao coletivo em comparação com o brasileiro, este mais individualista e mais propenso à transgressão?

4.      À milenar história indiana em que houve um aprendizado e know how de lidar com epidemias e o preparo para enfrentar adversidades e pestes tais como a cólera, peste bubônica e o desenvolvimento de mecanismos de defesa e anticorpos mais fortes e resistentes no sistema imunológico?

5.      A práticas alimentares tais como o uso da pimenta, cúrcuma, cominho e outros condimentos e especiarias fortalecedores da imunidade que atuam como remédios?

6.      Ao vegetarianismo e baixo consumo per capita de carne, que reduzem a existência de wet markets como os da China e daí reduzem o risco de produzir novas pandemias derivadas do relacionamento de humanos com seres não humanos, animais silvestres e outros?

7.      À menor prevalência de diabetes e obesidade que aumentam a vulnerabilidade, em comparação com outros povos?

8.       À consciência do corpo com respiração e posturas corporais adequadas, bem como ao hábito de tirar os sapatos ou sandálias antes de entrar em casa e lavar os pés, comer com a mão direita e fazer a higiene com a esquerda, ao uso disseminado de água sanitária?

9.      Se o contágio depende do estado imunitário e a primeira barreira contra a entrada do vírus no organismo é a mucosa, então a alimentação, respiração consciente ou exercícios posturais podem ter algum efeito nesse estado imunitário?

10.  A práticas e valores espirituais, a meditação, Yoga e crença,  o Namasté ao invés do aperto de mão,   que aumentam a imunidade? Calma, desestresse, coragem, confiança, valores espirituais e fé fortalecem o sistema imunológico?

11.  A fatores  genéticos? A imunidade inata dos indianos seria maior do que as dos brasileiros? Alguns artigos levantam a hipótese de que os indianos podem ter diferenças genéticas que os protegem contra os vírus. E a pandemia na Ásia em geral também intriga os cientistas.

12.   A uma cepa diferente do vírus, menos contagiosa e menos letal do que a que circula na Europa e no ocidente?

13.  À eficácia de medicina ayurvedica e outros modos tradicionais de prevenir e cuidar de doenças? À exposição a uma vacina contra tuberculose?

14.  A uma combinação entre várias dessas hipóteses acima? 

Não há respostas definitivas para essas questões. Continuar acompanhando comparativamente a evolução da pandemia no Brasil e na Índia ajuda a compreender o que nos diferencia e o que nos aproxima. Quando as populações já estiverem imunizadas pelas vacinas e os números baixarem no Brasil e na Índia, poderemos ter uma ideia mais segura sobre esses desempenhos e aprender com as lições da Índia, valiosas para lidar com a pandemia e para prevenir que outras aconteçam.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Esperança e ciência na pandemia

 

Maurício Andrés Ribeiro


Esperança na Esplanada no reveillon de 2021

                                               Criar expectativas ou criar codornas?

2020 transcorreu em compasso de espera.

 Desde o início da pandemia suspenderam-se atividades, muita gente se recolheu em casa esperando achatarem-se as curvas das contaminações.

Hibernou-se esperando o período critico passar. O ano findou e a doença continuou. O fim da pandemia pareceu uma miragem no deserto, daquelas que se afastam  à medida que se aproxima dela. Espera pela possibilidade de reencontrar parentes e amigos. Espera pelo que virá depois que passar a fase crítica. Enquanto se esperava,  muitos resolveram meditar, rezar, acompanhar o noticiário.

Houve tempos de espera por uma vacina que imunize os corpos. Enquanto isso, cientistas e pesquisadores trabalhavam intensamente para obter a vacina. Muito se estudou e inovou na ciência. No final do ano, enxergou-se uma vacina no fim do túnel. Vacinas para outras doenças foram as principais responsáveis para o aumento da expectativa de vida ao nascer, ao reduzir a mortalidade infantil e outras mortes.

Acendeu-se a esperança de que em 2021 a doença seja deixada para trás. A esperança decorre da ciência, do trabalho incansável de cientistas, pesquisadores, laboratórios que finalizaram em tempo recorde a criação de vacinas e aprimoraram  seus conhecimentos de como lidar com a doença.

Atravessou-se o deserto e chega-se à terra prometida em que haverá vacinas para todos. Quem questiona as vacinas e se recusa a tomá-las depositou suas esperanças em remédios – hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, soros entre outros – remédios que também são produtos da ciência humana.

A esperança nesse início de 2021 se ancora na ciência, na criatividade dos  seres humanos, em sua capacidade de inovação, de dar respostas às dificuldades. De certo modo reacendeu-se uma esperança no ser humano que, por um lado, pode  ser estúpido e ignorante e por outro lado tem potencialidades e chispas de sabedoria divina.

Diante dos portões do inferno, na Divina Comédia,  Dante lê a  mensagem: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”.  No inicio da pandemia e como se tivéssemos diante dos portões do inferno. Entramos no inferno e o fogo queimou  (queimadas na Amazônia, no Pantanal e em outras partes transformaram o mundo numa espécie de inferno que atravessamos). O fogo purifica. No final do ano depois da fase crítica dos incêndios e queimadas, a natureza dava sinais de regeneração natural e de sua capacidade de rebrotar a vida onde havia cinzas. Em 2021, com as vacinas e os remédios, parece que uma fênix renasce das cinzas.

Na fala popular, a esperança é a última que morre. E quando a esperança morre, o que vem? Vem a necessidade de encarar de frente a realidade nua e crua e saber lidar com ela. Vem a necessidade de agir e de cumprir o dharma, sem expectativa de que levam a resultados. Os mercados e a economia vivem de expectativas de interesses de lucrar com uma ação.  Quando não se lucra com uma ação há uma sensação de perda. Na ação desinteressada, servir é a meta, independente dos resultados. 

Desconfio da esperança,  esse “sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja; confiança em coisa boa; fé.” A esperança tem relação com o desejo de que algo melhor aconteça ou seja verdade. Em  geral está  associada a uma atitude passiva, de espera que algo de bom aconteça independente de nossa ação, de que a providência divina interferirá para levar a um mundo melhor e de que a ação humana é dispensável e não há nada a fazer senão esperar que as coisas se resolvam por si  sós. Durante anos simpatizei com a atitude do “No fear no hope”: sem medo e sem esperança. Essa atitude evita que se tenham decepções e frustrações caso as expectativas não se realizem.  Uma estratégia para não ter expectativas e não se decepcionar ou se desesperar é estar preparado para o pior cenário, aquele em que o  problema dura um longo tempo.

Essa pandemia pode ser um processo longo, sem solução rápida. Pode ser o primeiro de uma sequência de eventos para o qual os seres humanos, os cientistas e pesquisadoras precisaremos estar preparados para agir, fazer a nossa parte e não apenas ter esperança de que tudo se resolva. Investir na ciência e no conhecimento é um caminho para reacender a esperança no ser humano. Uma esperança cautelosa, com um pé atrás, desconfiada pois há, na noodiversidade, uma variedade de estados  de consciência, um fogo cruzado de concepções de mundo que precisam ser testadas. Há uma guerra de informações e de contrainformações em curso, o que é saudável por induzir a se aprofundar no conhecimento, na explicitação de fatos e argumentos, na divulgação científica. Isso é necessário até se chegar a um mínimo de consenso que permita somar forças para atravessar o deserto, o inferno e o período de vacas magras de crises como a desta pandemia e se chegar à terra prometida da saúde para todos e para o ambiente.