Maurício Andrés Ribeiro
Figura: Fonte USGS. É possível gerenciar integralmente o ciclo da água? |
O gerenciamento das águas de superfície
é uma tarefa difícil e complexa que depende de conhecimentos técnicos, domínio
de instrumentos de ação, capacidade de articulação entre níveis de governo e
com a sociedade e integração de sistemas
de informação.
O gerenciamento das águas subterrâneas
tem as mesmas complexidades, acrescidas do fato de que é mais difícil detectar
a sua presença e conhecer a sua dinâmica.
O gerenciamento integrado de águas
superficiais e subterrâneas soma mais complexidade técnica, política e
administrativa.
Praticamente todo o volume de água do planeta – nos oceanos, na
atmosfera, no permafrost, no gelo, nos seres vivos encontra-se fora do alcance
da gestão das águas, que atualmente prioriza a gestão das águas doces
superficiais e secundariamente as subterrâneas.
Neste texto, proponho que se enfrente o gerenciamento integral do ciclo da água, que inclui as águas atmosféricas. As águas atmosféricas correspondem a apenas 0,04% do volume total de agua no planeta, mas uma pequena variação desse volume traz grandes impactos e eventos climáticos extremos. A evaporação dos oceanos, das florestas, das águas superficiais aumenta com o aumento da temperatura global.
A gestão integral do ciclo vai além da gestão integrada de recursos hídricos superficiais e subterrâneos. Ela agrega uma complexidade e uma dificuldade ainda maior aos já enormes problemas envolvidos com o gerenciamento integrado das águas subterrâneas e superficiais.
Uma gestão do ciclo integral envolve todos os aspectos, desde a água na atmosfera, as nascentes, a proteção florestal e o uso do solo. Uma abordagem holística e transdisciplinar considera o ciclo integral, inclusive sua fase meteórica ou na atmosfera, pois cada vez mais a gestão de recursos hídricos está dependente do clima e de suas variações. Tal gestão considera as interconexões entre o que ocorre quando ela escorre superficialmente, se infiltra nos solos e forma os lençóis subterrâneos e quando se encontra em estado meteórico, no vapor na atmosfera.
A gestão
integral do ciclo considera todas as suas formas de presença na natureza: sólida, líquida,
gasosa; meteórica, superficial e subterrânea. Ela exige uma compreensão ampla desse ciclo.
A caixa de ferramentas da lei de recursos hidricos é insuficiente para lidar com a gestão integral do ciclo da água.
É necessário um grande conjunto de ferramentas que vai muito além desses instrumentos legais e que estão presentes em outras políticas, como a do meio ambiente, do saneamento, da segurança de barragens, do ordenamento territorial, das mudanças climáticas, do patrimônio natural, das unidades de conservação, da educação ambiental, entre outras.
Neste ano de 2024, muitos eventos climáticos extremos se precipitaram: enchentes no Rio Grande do Sul, incêndios no Brasil, Bolívia, na África, em Portugal e na Califórnia; furacões na Flórida, seca nos rios da Amazônia; chuvas no Saara, esverdeamento da Antártida e muitos outros.Neste ano, no mundo todo e no Brasil, intensificaram-se os eventos climáticos de enchentes, inundações, secas e queimadas, nas quais o excesso e a escassez de água são componentes centrais.
Existe maior percepção e consciência sobre a importância das águas na forma de vapor, nas nuvens, rios voadores e outras denominações para designar essa parcela do conjunto das águas no planeta, que influencia crescentemente a vida, a economia, os desastres que afetam de modo mais impactante as populações vulneráveis, os ribeirinhos, os pescadores, o transporte hidroviário, a geração de energia hidrelétrica todos os campos da sociedade e setores da economia que são direta ou indiretamente relacionados com as águas.
A gestão integral do ciclo da água depende de uma boa articulação
federativa entre o nível federal, os estados e municípios, a partir de dados e informações
compartilhados. Numa federação, cada ente tem suas responsabilidades. A chuva
chove nos municípios, pois ela cai no território da bacia e quem cuida do uso e
ocupação do solo são os municípios. Depois ela escorre para riachos e córregos
estaduais e algumas vezes chega a rios federais. Quando ela infiltra no solo
passa a ser de domínio dos estados, que gerenciam as águas subterrâneas.
Enquanto está na atmosfera, ninguém é responsável pelo seu gerenciamento.
Para se
lidar de modo integral com a gestão do ciclo, é relevante reduzir as demandas
nas diversas atividades econômicas, especialmente o consumo pelo usuário que
mais a utiliza, a agricultura irrigada. Isso
implica em inovar em tecnologias e em atuar sobre a economia para reduzir as
demandas excessivas que causam estresse hídrico, sobre a cultura e os hábitos
alimentares e de vida.
A gestão
do ciclo de vida das águas articula seu planejamento e gestão numa perspectiva
de longo prazo. Ela compartilha dados e sistemas de informação. Requisito
importante para se tornar realidade é evoluir dos estudos técnicos
especializados e dos conhecimentos da hidrologia como atualmente praticada,
para a perspectiva de uma hidrologia
integral, transdisciplinar, e daí para a Hidrosofia, ou seja, lidar com a água
com sabedoria.
A Amazônia oferece um laboratório prático para se
testar globalmente a gestão integral do
ciclo da água. Um dos modos de incluir
as aguas atmosféricas na gestão é proporcionar os meios para que a floresta
continue a existir e que os rios voadores continuem a prestar os seus serviços
ecossistêmicos.
Ao mesmo tempo expandimos a visão, para além do enfoque utilitarista associado aos conceitos de recursos hídricos, e contemplamos a importância da proteção das águas num enfoque mais holístico e transdisciplinar e isso demanda o uso de instrumentos de ordenamento territorial, uso e ocupação do solo, proteção de unidades de conservação e do patrimônio natural.
O gerenciamento do ciclo integral das
águas é um projeto potencial e virtual que se inicia com a hidratação das
mentalidades, da sociedade, da economia, para que a civilização se torne
hidrocêntrica, supere a hidroalienação e valorize a hidroconsciência.
O gerenciamento integral do ciclo da
água é uma missão impossível, um objetivo utópico? Preferimos acreditar que é um
ideal e uma meta que progressivamente dá
seus primeiros passos. Há uma longa caminhada pela frente para que ele se
realize.