quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

UTILITARISMO E ÁGUA


Mas pra que
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar,
Pra que
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem

Tom Jobim

A abordagem utilitarista em relação à gestão da água traz desafios práticos. A abordagem utilitarista deve ser complementada por outras perspectivas, como o foco em direitos e a ética ambiental, para evitar injustiças e garantir a proteção dos ecossistemas e das populações mais vulneráveis.

Entre os aspectos positivos da abordagem utilitarista, estão a eficiência na alocação de recursos, o foco em benefícios coletivos, a redução de desperdícios, as justificativas para políticas públicas de longo prazo. Embora a abordagem utilitarista possa ser útil em algumas circunstâncias, ela é insuficiente para lidar com a complexidade e o valor multifacetado das águas. Em relação às águas, ela apresenta várias limitações.  Ela reduz a água a um recurso econômico, ignora a justiça social e ambiental, falha em considerar o longo prazo, desconsidera os direitos intrínsecos da água e da natureza, simplifica questões complexas, gera conflitos éticos e subestima o papel ecológico da água.

Entre os aspectos negativos de uma postura utilitarista em relação com as águas estão a negligência para com minorias e grupos vulneráveis, desafios éticos em situações de escassez, risco de decisões economicistas, dificuldade em medir bem-estar. Uma abordagem mais holística, que integre aspectos éticos, culturais, ecológicos e de justiça social, é essencial para garantir que as águas sejam geridas de forma equitativa, respeitando sua grande importância para todos os seres.

Se no passado a água significou a própria existência e tinha forte conteúdo simbólico de contemplação e sacralização, no presente é valorizada por suas possibilidades mercadológicas e de exploração comercial, sendo abordada a partir do conhecimento científico e técnico. Na visão e na prática contemporâneas, é algo a que se recorre para uso, apropriação e acesso, na perspectiva utilitária. De uma visão de que era de graça, que vem de Deus, dos céus e não se deve pagar por ela, por ser um bem livre e abundante na natureza, muda-se para uma relação em que ela é tratada como mercadoria.

Na perspectiva utilitarista, a natureza é um objeto para ser usado e consumido, com seus recursos minerais, sua água, os vegetais e animais, atendendo aos desejos, à demanda e à voracidade do ser humano. Na abordagem utilitarista, a água é valorizada por suas possibilidades mercadológicas e para exploração comercial. Cientificidade e tecnicismo predominam. Ela é percebida como um recurso a utilizar, a ser apropriado privadamente, sem questionar o uso que é feito dela. Essa apropriação leva a abusos. Nesse tipo de relação, a principal questão deixa de ser a do sentido e do significado para se tornar a da utilidade: para que serve? Que serviços presta? Aquilo que é inútil e não serve para nada, não tem valor de uso. Não é funcional, não contribui para o conforto material e, portanto, não é valorizado.

No mundo contemporâneo tem prevalecido a força das corporações e empresas internacionais e o valor de troca da água se impõe sobre o valor simbólico que é caro aos povos indígenas e a populações tradicionais.

Vozes indígenas formulam críticas ao utilitarismo.  Escreve Ailton Krenak[1] que “os povos originários ainda estão presentes neste mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam, é interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta, resistiram com toda força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário... Escapar dessa captura, experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida, cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que sofreram uma forte interferência utilitária da vida, essa experiência de silêncio foi prejudicada.” (pgs 111)

Para Ailton Krenak, “A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária. Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil?” Ele continua: “Nós estamos, em nossa relação com a vida, como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo inteiro cobrados a fazer coisas úteis.”



[1] Krenak, Ailton - A vida não é útil.  Companhia das Letras, São Paulo, 2022. Pgs 108 e 111.

 

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