Maurício Andrés Ribeiro (*)
“É tarde demais para o desenvolvimento
sustentável; precisamos é de uma retirada sustentável.”
James Lovelock, em A vingança de Gaia
Assisti ao tema da `Arte de sair de cena’ em uma peça de teatro no Centro Brahma
Kumaris de Bangalore. O palco era ocupado por muitos personagens, príncipes,
generais, administradores, servos, sacerdotes. Entretanto, o mote central da
peça não era o papel desempenhado no palco. O tema era a arte de sair de cena,
uma alegoria da vida e da morte: desde o nascimento, inicia-se uma contagem
regressiva para o momento de sairmos de cena.
No teatro, alguns personagens estão em primeiro plano, como atores
principais e não deixam a ribalta.
Outros ficam em segundo plano, coadjuvantes da cena principal, ou ocupam o
fundo do palco, onde desempenham papel sem visibilidade. Nas novelas da TV, o
autor mata o personagem quando as pesquisas de opinião assim o indicam ou ele
fica até o fim e tudo termina num final feliz ou trágico.
A arte de sair de cena é aplicável às situações de trabalho e à
vida pessoal. Na profissão, a saída de
cena pode se dar por meio de demissão por justa causa ou imotivada, ou o
trabalhador pede as contas e sai. Na vida pessoal, num casamento, há o alívio da
separação amigável ou os problemas do
litígio na justiça.
Na vida pública, há políticos que insistem em ficar em cena mesmo
quando não estão agradando São tirados de cena pela pressão da opinião pública
ou pela derrota eleitoral imposta pelo eleitor insatisfeito. Alguns são postos
para fora a contragosto, depostos de suas funções, saem do palco de forma
melancólica, desmoralizados ou desgastados. Alguns saem discretamente; outros
se indignam e disparam metralhadoras giratórias;
há os que ao sair de cena chamam a atenção para si, dramaticamente. Outros se
retiram de maneira digna e conquistam admiração. Há os que morrem jovens, fazem
falta e deixam saudades. Os que sofrem morte súbita causam comoção. Algumas são
saídas honrosas e dignas, outras são saídas à francesa, de fininho.
Sair de cena se aplica aos jogos e às guerras. Num jogo, pode-se
sair expulso ou contundido. Na guerra do Vietnam, o presidente americano
Richard Nixon recebeu o conselho de um general: “Declarar vitória e bater em
retirada”.
Sair de cena é um exercício que ensina a lidar com a vaidade, com
o orgulho, com a revolta, com a indignação e transformá-los em humildade e
aceitação. Ensina a aceitar a mudança, a transformação, a perda e a renovação. Saber
o momento de retirar-se e encontrar a melhor forma de fazê-lo exige
sensibilidade, percepção e senso de oportunidade. A coragem para retirar-se e
para render-se à vontade maior requer, ainda, treinamento espiritual.
A arte de sair de cena aplica-se, também, aos processos da
evolução. Em seu livro “A vingança de Gaia” James Lovelock questiona a
viabilidade do desenvolvimento sustentável e propõe uma retirada sustentável. A
proposta por Lovelock diante das forças da natureza é a de uma retirada
honrosa, evitando a derrota trágica. Ele é o criador da Teoria de Gaia, pela
qual a terra é um organismo vivo com um
sistema nervoso central e no qual a espécie humana ocupa o lugar da massa
cinzenta do cérebro de Gaia. Substituir
a proposta de desenvolvimento pela de retirada implica em mudar a direção do
pensamento e das ações e em abandonar alguns supostos antropocêntricos. A
proposta lembra o episódio bíblico da expulsão do paraíso. É como se, antes de ser
expulsos, Adão tomasse a iniciativa de se retirar, voluntariamente.
Essa retirada pode ser econômica ou demográfica. Entre as formas possíveis
de retirada econômica existem ações brandas, tais como a redução dos impactos
ambientais das atividades humanas por meio da melhoria da ecoeficiência e a
redução de emissões de poluentes, entre eles os gases de efeito estufa; a
desativação progressiva de atividades ecologicamente destrutivas; a imposição
de limites e restrições à realização de atividades poluidoras; finalmente o
banimento ou eliminação de atividades não essenciais, supérfluas ou
desnecessárias e que produzem impactos climáticos e ambientais.
Assim por exemplo, a abolição
das guerras como forma de resolução de conflitos poderia promover uma
substancial redução da emissão de gases do efeito estufa, gerados no processo
de produção das guerras, desde a extração de minerais até sua transformação
industrial, o transporte de equipamentos militares, seu uso e atividades de
reconstrução posteriores à destruição material, provocada pelos conflitos
armados. Mas pergunta-se: As sociedades estão dispostas a não guerrear?
Outra atividade a reduzir seria o turismo consumista e o viajismo.
Vôos internacionais e nacionais, transporte terrestre, serviços e comércio
sofrem a pressão das atividades turísticas e provocam fortes impactos
ambientais. Será necessário reduzir as viagens aéreas não essenciais que emitem
gases? Que resistências serão encontradas? Os viajantes estão dispostos
voluntariamente a abdicar de viajar? Será necessário sobretaxar os
deslocamentos ou limitá-los de outras formas?
Pelo lado do consumo, uma forma de retirar-se é reduzir a pressão
sobre a natureza, por meio de educação, da cultura ecologizada e da imposição
de ônus econômicos e taxação sobre o consumo. Além disso, são formas de reduzir
os impactos das atividades humanas:
·
Redesenhar as edificações e cidades dentro de normas e padrões que
ajudem a conservação de energia.
·
Adotar vida contemplativa e prezar a meditação e o uso do tempo de
formas criativas que não pressionem o ambiente e o clima.
·
Reduzir a pegada ecológica, a pegada hídrica e a pegada energética
de indivíduos, cidades, países. Criar imposto progressivo sobre a pegada
ecológica.
·
Conter o crescimento econômico insustentável para que a evolução
humana se faça dentro de limites dos recursos do planeta.
- Reduzir a ação sobre o meio físico e limitar a produção de bens materiais que demandam o uso de recursos naturais.
- Maximizar as atividades menos impactantes, tirar objetos de cena, dissolver desejos e promover menor consumo material.
As retirada demográfica pode ser branda ou
drástica. Há um movimento biocêntrico, disseminado pela Internet, pela
auto-extinção voluntária da espécie humana, por meio da proposta de filho zero,
que em poucas gerações extinguiria ou reduziria a quantidade de indivíduos da
espécie. Essa proposta cortaria pela
raiz os efeitos das atividades humanas, mas é utópica, devido às dificuldades
para promover a adesão voluntária a ela.
Comenta Lovelock: ”As mulheres nas
sociedades prósperas, se dotadas de uma chance justa de desenvolver seu
potencial, optam voluntariamente por ser menos fecundas.” O controle do
crescimento demográfico é uma maneira de fazer o tamanho da população humana
caber nos limites da capacidade de suporte do planeta. Um exemplo é o
planejamento familiar com redução da natalidade e do incentivo ao filho único,
tal como realizado na China. A retirada demográfica pode-se dar por meio de formas
extremas e dolorosas de redução da população, tais como as guerras e o
genocídio, bem como a exposição a pragas e doenças. Aqui se colocam questões éticas, como lembra Pierre
Weil : “Entre aceitar a morte como processo vital e provocá-la se encontra a diferença
fundamental entre um valor construtivo e um destrutivo.”[1]
Lovelock estima que chegaremos ao final do século XXI
reduzidos a um bilhão de pessoas, devido aos efeitos das mudanças climáticas em
curso.
(*) Autor de Ecologizar e de Tesouros da Índia para a
civilização sustentável. www.ecologizar.com.br ecologizar@gmail.com
[1] Weil,
Pierre, in Valores éticos em ciência e tecnologia, palestra no simpósio
sobre “Ética e tecnologia, onde podemos ir?”, Unipaz, 1989.
Excelente artigo, Maurício! Questões cruciais, complexas, que merecem ampla divulgação, reflexão e tomada de posição! Muito sério e muito bom! Parabéns!
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