Macacos em templo hindu |
Macaco em ashram em Rishikesh |
Maurício Andrés Ribeiro (*)
“A grandeza de uma nação e seu progresso moral
podem ser julgados a partir da maneira como seus animais são tratados.”
Mahatma
Gandhi
A Índia reconheceu os golfinhos como pessoas
não humanas. Baniu os parques temáticos que os usam para diversão. Reconheceu
que eles têm alto nível de inteligência e seus próprios direitos ao bem estar,
sendo inaceitável mantê-los em cativeiro.
A percepção e as atitudes
culturais humanas em relação aos animais variam ao longo do tempo. Algumas civilizações tem uma perspectiva
antropocêntrica e outras têm uma cosmovisão bio ou ecocêntrica. Para algumas,
os animais são coisas e objetos, mercadorias, propriedades dos humanos; para
outras, eles são pessoas, para outras
ainda, são divindades.
Alguns se ocupam de seu
bem estar, lembram a condição animal do homo
sapiens e os consideram como animais não humanos. Outros os elevam à
condição de pessoas não humanas. Crescentemente tem-se estendido aos animais o
status de pessoas que se dá às pessoas físicas (indivíduos de carne e osso) e às
pessoas jurídicas (empresas ou instituições). Tal atitude os retira da condição
de coisas e os aproxima da condição humana.
No passado, vacas e
outras espécies animais e vegetais foram divinizadas. Em religiões politeístas
ou panteístas, os deuses assumem fisionomia e aspectos animais. Entre as
grandes civilizações e tradições espirituais hoje existentes, a que mais
explicita isso com clareza é o hinduísmo, no qual várias divindades têm
expressão animal, a exemplo de Ganesh, homem e elefante; do boi Nandi, usado
como meio de transporte por Shiva; de Hanumam, o macaco ou da serpente Subramanian,
entre outras.
Nas
tradições hindu, budista e jainista, entre outras, os seres humanos são vistos
como uma forma de vida e toda a vida é respeitada e tem direitos a viver neste
mundo.
‘Vaca sagrada’ é expressão por demais conhecida
no Brasil e alude à relação dos indianos com os animais. Gandhi dizia que os
antigos sábios de seu país tinham escolhido a vaca para ser sacralizada pela
importância dos serviços que presta e seu valor como uma segunda mãe para
milhões de pessoas, a quem fornece o leite, o adubo, a força no arado e no
carro de boi. Para ele, a vaca significava todo o mundo subumano, estendendo as
simpatias e a compaixão humanas para além de sua própria espécie.
A extensão aos
animais do status de pessoa não humana, a sua sacralização e divinização, assim
como os cuidados para com aqueles que prestam serviços de valor econômico são
aspectos de uma relação respeitosa, que os valoriza.
Na Índia, dois
terços da energia usada no campo, para o arado ou para o transporte rural,
provêm dos animais de carga, principalmente mais de 80 milhões de bois e búfalos,
um milhão de cavalos e outro tanto de camelos. O trabalho com os animais e a
condução dos 13 milhões de carros de boi empregam 20 milhões de pessoas.
Os indianos usam a
ciência e a tecnologia para facilitar o desenvolvimento rural e para aprimorar
as práticas tradicionais, agregando-lhes o conhecimento técnico e aprimorando o
design. Quanto estudei na India, tive contato com pesquisadores do design de
carros de boi. O projeto visava reduzir
o desperdício de energia animal, diminuir a crueldade com que eram tratados os animais
que trabalham para o homem, modernizar o carro de boi e outros implementos
agrícolas movidos à tração animal. O
veiculo foi redesenhado para reduzir sofrimento, danos e esforços
desnecessários. O projeto estimou que a capacidade de carga do carro de boi poderia
ser dobrada sem sobrecarregar o animal. A redução do atrito por meio de uma
plataforma mais leve, o redesenho das rodas, a utilização de pneus e diminuição
do componente vertical de peso sobre o animal, aumenta a vida útil do veículo, reduz
danos nas estradas e evita o aparecimento de nódulos e de câncer no pescoço dos
bovinos.
A India apresenta uma
longa história de valorização dos animais, por seu valor intrínseco e também
pelo valor dos serviços que prestam. As populações das aldeias respeitam os
códigos religiosos criados por seus antepassados. Ainda hoje há na Índia devoção
pelos animais, que tem raízes na tradição religiosa e no princípio do ahimsa
ou não violência, que inclui tanto o mundo humano quanto o animal. Nos templos
e em alguns centros de pesquisa do governo indiano se podem obter preciosidades
genéticas e espécimes de qualidade. O gado leiteiro de boa qualidade nos
templos atende a necessidade de alimentar os pobres.
Casa em Kechankuppe, Karnataka, tem pátio e espaço para o gado. |
elacionamento da
população humana com a população animal condiciona o tipo de desenvolvimento
socioeconômico naquele país. Nas aldeias, cada búfalo ou vaca é objeto de
cuidados domésticos. A alimentação e o pastoreio do gado são atividades diárias
que ocupam as crianças e mulheres. À tardinha, eles são levados para pastar às
margens das estradas ou nas terras públicas; à noite são trazidos para junto
das casas de seus donos, para que o precioso esterco possa ser recolhido de manhã.
Nas cidades indianas, há uma diversidade de veículos nas ruas: autoriquixás,
cavalos, camelos, elefantes, bois. Existe a convivência pacífica nas cidades,
entre homens, bois, búfalos, macacos, pavões e corvos e outros animais.
Usa-se o boi vivo
para o transporte, o arado e o adubo, mas evita-se que seja morto para servir
como alimento. O vegetarianismo baseia-se no princípio da
não violência estendida para o mundo animal. Presente nos Vedas, antigos
textos sagrados, tal princípio foi atualizado pelo budismo. A ideia de
abstenção está presente nos principais preceitos e na ética budista que propõe
abster-se de causar danos a outros seres vivos. Os estudos de ecologia
energética revelam a superioridade dos alimentos de origem vegetal sobre os de
origem animal quanto à produtividade energética. O hábito vegetariano é muito
menos impactante sobre o ambiente e o clima do que outros hábitos alimentares:
a quantidade de água, a quantidade de insumos agrícolas e a área de terra
necessária para alimentar vegetarianos são menores que as necessárias para
alimentar carnívoros.
A civilização indiana foi guardiã de valores
como a sacralização dos animais, a não violência estendida a eles, o
vegetarianismo. Tais valores e práticas hoje influenciam pessoas de outras
formações culturais em várias partes do mundo.
Cientistas têm
estudado a sensibilidade, a inteligência e a consciência nos humanos e as
capacidades cognitivas e o comportamento emocional dos animais. Eles estudam os
sistemas nervosos de polvos, de aves tais como o papagaio cinzento africano. Também
os mamíferos terrestres e marinhos (baleias, golfinhos) têm sensibilidade, afeto,
consciência, inteligência. Eles constatam afinidades no funcionamento cerebral
entre essas diversas espécies e realçam processos evolutivos similares. Como os
humanos, os animais têm percepção por meio dos sentidos. O olfato, a visão e a audição
de cada um cobre faixas diferentes daquelas percebidas pelos humanos. Eles veem
e percebem, portanto, outros mundos.
Animais não são coisas,
são seres vivos, com afeto, sensibilidade, sentem dor e medo. Têm valor intrínseco.
Estudos científicos resgatam essa forma de considerá-los.
O status de pessoas não
humanas que a India concedeu aos golfinhos é uma referência para atitudes na
mesma direção a serem tomadas em outras sociedades.
Artistas e ecologistas de
valor, como Paul McCartney, militam pela causa dos animais e sensibilizam a sociedade,
que se mostra cada vez mais aberta a questionar os pressupostos utilitaristas
que justificam uma relação mercantilista dos humanos com os animais, tomados
como mercadorias, com valor de uso e de troca. Evoluimos de uma postura em que
são considerados como coisas usadas ao bel prazer, para outra atitude em que
são valorizados como pessoas não humanas.
Tais mudanças no modo de
relacionamento de nossa espécie humana com os animais, reconhecendo o seu valor
intrínseco e natural, e não apenas o seu valor como coisa ou objeto a ser explorado
economicamente, são partes da mudança cultural necessária para ingressarmos
numa era ecológica na evolução neste planeta.
(*) Autor de Ecologizar,
Tesouros da Índia e Meio Ambiente & Evolução Humana.
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