segunda-feira, 3 de abril de 2017

O fim da Índia frugal?




Maurício Andrés Ribeiro 

Por milhares de anos a Índia foi capaz de se adaptar às invasões estrangeiras, absorvendo seus aspectos desejáveis ​​e positivos e descartando o resto. Ela fez isso na luta pela independência e usou alguns princípios antigos, como o da ahimsa ou não violência como recursos úteis nessa luta. Libertou-se dos ingleses, mas agregou a língua inglesa às muitas línguas faladas no país, o que lhe facilita inserir-se no mundo globalizado.
Durante outras ondas no passado, a força, tolerância e resiliência da cultura milenar foram capazes de absorver as pressões de fora. Tendências e forças recentes ameaçam a frugalidade indiana baseada na sua alma, em sua história e cultura. Forças opostas estão em ação e a resultante desse conflito apontará para que rumo caminhará a Índia. Atualmente, a onda de influências externas não se faz pela força militar e a ocupação política, ou pelo domínio econômico. A atual onda é mais sutil, entra por meio da comunicação de massa e das interconexões globalizadas. Atua diretamente nas aspirações mentais e emocionais de cada indivíduo. As aspirações das pessoas para estarem conectadas com o mundo através da TV e da internet são muito fortes e suas necessidades mentais e emocionais são influenciadas por aquilo que vêem. A propaganda na televisão influi sobre as aspirações e demandas. As redes de televisão são regidas por interesses comerciais. A indústria da propaganda influencia as mentes das pessoas com mensagens pró-consumo. Os meios de comunicação de massa são poderosos e disseminam valores consumistas. Neles também se veiculam mensagens não consumistas, pois há uma grande produção de filmes e programas indianos, muito populares e poderosos meios de transmissão de valores.  A força da comunicação impulsiona  mudanças.
A pegada ecológica é um indicador de sustentabilidade e um hectare global per capita refere-se ao espaço necessário para sustentar o estilo de vida de um indivíduo.  Os Emirados Árabes Unidos (10,7 hag/pc), Qatar (10,5) e Estados Unidos (8,0) são aqueles países com pegada ecológica per capita  mais pesada, ou seja, que muito ameaçam a sustentabilidade global. Um alemão médio precisa de 5,1 hectares, um brasileiro, 2,9, um chinês, 2.2. No Japão 4,7. Rússia, 4,4, Portugal, 4.5, Argentina, 2,6. A pegada mundial é de 2,7 hectares globais per capita. O indiano médio tem uma pegada ecológica leve,  de 0,9 hag/pc.
 A crescente classe média urbana indiana tem uma mentalidade aberta a influências consumistas. Essa parte da sociedade adota estilos de vida com níveis extremamente elevados de consumo, que tendem a produzir pegadas ecológicas mais pesadas. Porque são centenas de milhões, essas populações podem provocar expressivo impacto contrário à sustentabilidade da espécie humana.
Muitos indianos de classe média e alta aspiram ser como os ingleses ou americanos. Esse tipo de aspiração não é apenas insustentável em si, mas torna-se modelo para os pobres, muitos dos quais aspiram a ser como os ricos quando ganharem rendimentos mais elevados. Os estilos de vida estão mudando na Índia rural, com o aumento do uso de plástico, dos automóveis e motos, da televisão.
Os celebrados dias da Índia frugal podem chegar ao fim, se prevalecerem as forças do consumo exagerado da elite e da classe rica em cidades.  Novas cidades, enclaves de alta tecnologia  impulsionados pelo capital globalizado, vem sendo construídos em várias partes. Com o crescimento das cidades e a mudança nas aspirações e modelos mentais, a Índia está testando sua capacidade de continuar a ser sustentável, como tem sido há milhares de anos.  Em uma perspectiva histórica, não sabemos ainda como essas forças opostas irão se comportar e qual será o resultado dessa tensão. Se a força do capital global conseguirá destruir e impor-se sobre os valores milenares ou se esses mais uma vez sobreviverão  à energia criadora e destruidora do capital. O deus Shiva, destruidor do velho e  criador  do novo, com sua dança, está em ação.
O lastro cultural da India frugal será capaz de contrapor-se a essa onda que valoriza o conforto material e o bem estar, os prazeres da dieta carnívora, o uso crescente de eletrodomésticos para aliviar o trabalho doméstico? Será que finalmente, após mais de quatro milênios, a alma da Índia frugal sucumbirá diante da avassaladora pressão do mundo globalizado? Ou a India será capaz de devolver a esse mundo a sua resposta, lastreada por sua cultura e pela inteligência coletiva sedimentada durante milênios?
Para sustentar estilos de vida conscientemente frugais, há valores educacionais e culturais. A frugalidade conscientemente vivida é distinta da pobreza imposta a pessoas privadas de necessidades básicas em uma sociedade desigual.


A fim de encontrar maneiras de sustentar estilos de vida frugais, a Índia pode fazer uso do seu poder de persuasão e das forças de sua cultura, através das comunicações. Neste sentido, pode ser importante trabalhar a mente e os modelos emocionais, a fim de reduzir os desejos que pressionam os recursos naturais e tornam mais pesada a pegada ecológica.
Uma questão estratégica é como lidar com o poder dos meios de comunicação de massa, a TV, a indústria do cinema e da internet. Diferentemente de outras sociedades, a Índia tem já uma cultura frugal a ser relembrada  e ajustada ao contexto atual. Processos democráticos de gestão no nível local, orçamentos participativos e incentivos econômicos podem ser usados para induzir o consumo menos agressivo e para sustentar uma pegada ecológica leve.

(*) Autor de Tesouros da Índia para a civilização sustentável www.ecologizar.com.br  ecologizar@gmail.com

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