Num planeta sem os seres humanos todas as águas estavam em
seu estado natural. Algumas tinham altos teores de minerais diluídos ou
dissolvidos, em função de sua origem e dos terrenos que atravessavam.
No Brasil pré-cabralino a população humana era pequena e não
causava maiores danos aos rios. “Águas são muitas, infindas”, escreveu Pero Vaz
de Caminha. Águas eram muitas, tinham qualidade especial e eram de primeira
classe. Entretanto, como se verifica 500 anos depois da Carta de Caminha, não
são infindas.
Ao serem poluídos e contaminados com os resíduos e efluentes
das atividades humanas, muitos rios e águas subterrâneas perderam essa condição
especial.
Restaurar a qualidade original pode ser o objetivo de um
pacto pelas águas, com a meta de alcançar com que todos os ribeirões, rios e
lagos, voltem a seu estado natural. Talvez essa meta seja utópica, mas não faz
mal colocá-la como um ideal a ser buscado no horizonte.
Cada uso da água tem certas exigências de qualidade: a água
destinada ao consumo humano sem tratamento deve ser pura o suficiente para não
provocar doenças e ter uma classe especial. Já as águas destinadas para o esgotamento
de resíduos, por exemplo, não precisam ter boa qualidade.
O sistema de classificação de corpos d’água definido na
resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente n.357 de 2005 as classifica
segundo a qualidade requerida para seus usos preponderantes.
Rios ou trechos de
rios podem ser enquadrados como de classe especial, de primeira, segunda,
terceira e quarta classes.
Essa classificação é semelhante àquela que classifica os
hotéis com estrelas: seis ou cinco estrelas, quatro, três, duas ou uma estrela,
em função de seu padrão de qualidade. Em geral os hotéis de cinco estrelas são
mais caros do que aqueles com menor classificação.
Do mesmo modo, para se alcançar a meta dos rios serem de
primeira classe ou classe especial, podem ser necessários investimentos em
saneamento e despoluição. Nos casos em que esses rios já se encontram naturalmente
na condição especial, basta o controle ambiental, evitando que se localizem nas
suas bacias hidrográficas atividades que poluam as águas superficiais ou
subterrâneas. O licenciamento ambiental e a outorga de direito de uso das águas
são dois instrumentos valiosos para tal controle.
Ao se tomar cuidados preventivos para que eles não sejam
poluídos, evita-se que no futuro seja necessário investir em obras para
limpá-los. Prevenir para que não sejam sujos é uma medida com alto valor
econômico, pois protege esse patrimônio valioso e evita gastos com despoluição.
Um passo na caminhada no rumo de que os rios voltem a ser
especiais é alterar a norma ambiental concebida e aprovada no passado, quando
ainda não se colocavam com clareza as questões de segurança hídrica, a crise
hídrica e as mudanças no clima que a agravam. Essa norma considera como de
segunda classe as águas doces que não tenham sido enquadradas, ou seja, que não
tenham um objetivo de qualidade a ser alcançado através de metas progressivas aprovado
por um conselho de recursos hídricos. Uma consequência dessa norma ainda
vigente tal como foi então concebida, é que mesmo aqueles corpos d’água que
hoje apresentem uma qualidade especial ou sejam de primeira classe estão
vulneráveis a serem poluídos por atividades que venham a ser instaladas em suas
bacias hidrográficas. A boa qualidade de
suas águas não é valorizada como um patrimônio a ser protegido.
Mudar esse dispositivo, considerando que os rios não
enquadrados deixem de ser de segunda classe e sejam valorizados como rios de primeira
classe é uma medida que pode contribuir para protege-los, pois, os
licenciamentos ambientais, as outorgas de direito de uso das águas e outras
ações de gestão precisam levar em consideração as metas de qualidade.
Combinada com recursos para promover a sua restauração e a
recomposição ambiental em suas bacias, essa pode ser uma medida valiosa para
proteger a qualidade das águas e para reduzir os custos para tratar a água que
se usa para abastecimento humano e urbano.
No contexto das crises hídricas que tendem a se tornar cada
vez mais severas à medida que as mudanças no clima avancem, é vital proteger
cada gota d’água de boa qualidade. Esse é um patrimônio que merece ser
valorizado. Enquadrá-lo como de primeira classe é um pequeno, mas importante
passo para protege-lo, preventivamente. Talvez medidas como essa contribuam
para que, um dia, todos os rios voltem a ser especiais.
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