Maurício Andrés Ribeiro (*)
Olhar
para a Índia, para seus problemas e as formas como lida com eles, pode ser uma
valiosa aprendizagem. Ali se encontram os extremos da condição humana, do mais
maravilhoso ao mais abjeto. Sua extrema diversidade social e cultural faz com
que para tudo o que se afirme sobre a India, o inverso e o oposto
também é verdadeiro. Aquela civilização
e a chinesa foram as duas únicas que se sustentaram por mais de 4 mil anos numa
linha continua. Ela soube ser sustentável em sua relação com o ambiente
natural, forjando estilos de vida e padrões de consumo frugais com baixa pressão sobre o meio ambiente.
Soube também ser resiliente em sua relação com outras culturas, por meio da
capacidade de suportar invasões e também de não se deixar destruir ou oprimir
por outros povos[1]; ela
absorveu, recebeu, metabolizou influências e as devolveu transformadas ao
mundo. Soube, ainda, desenvolver uma tecnologia das emoções para lidar com o
equilíbrio físico, emocional, mental e espiritual dos seres humanos.
Por sua diversidade cultural e política e por sua
formação histórica, a Índia é uma nação multinacional, que mantém unidade na
diversidade e que foi celeiro e campo fértil para idéias e propostas
globalistas, mundialistas e voltadas para o federalismo mundial. Nesse sentido,
indianizar é mundializar. O poeta e prêmio Nobel Rabindranath Tagore expressou
essa convicção:
Ao encontrar a solução para nosso problema, teremos
ajudado a resolver também o problema do mundo. O que a Índia já foi, o mundo
todo é agora. O mundo todo se está tornando um único país por meio das
facilidades científicas. Está chegando o momento em que precisamos também
encontrar uma base de unidade que não seja política. Se a Índia puder oferecer
ao mundo sua solução, ela será uma contribuição para a humanidade. Há somente
uma história - a história do homem. Todas as histórias nacionais são meros
capítulos da história maior. E estamos
felizes, na Índia, por sofrer por tão grande causa.[2]
A importância do papel da Índia na construção de uma
arquitetura política global é também enfatizada por A.B. Patel, quando afirma que:
A Índia está destinada a ter um grande papel na
reconstituição global. Sri Aurobindo
atribui à Índia um papel crucial - um destino poderoso e uma pesada
responsabilidade - porque ele considera que a Índia é o repositório da
consciência espiritual, o guardião da Verdade, e ele enxerga que, na nova era
da unificação global, o ser nacional da Índia vai atuar como uma lança,
rompendo as formações mundiais atuais e dando nova forma à história. De seu
ponto de vista, a herança espiritual da Índia e sua renascença tornam-se
significativas não somente para seu próprio crescimento e realização, mas
também para o destino da unidade da humanidade.[3]
Vários
líderes, sábios e poetas indianos professaram sua convicção na
necessidade da evolução política humana para além dos estados-nação.[4]
Disse o líder da independência Jawaharlal Nehru: Eu não tenho dúvidas em
minha mente de que a federação mundial deve vir e virá, porque não há outro
remédio para a doença do mundo.
Afirmou
o Mahatma Gandhi: O nacionalismo não é o conceito mais elevado, a comunidade
mundial é o conceito mais elevado. Eu não gostaria de viver nesse mundo se ele
não se tornasse um mundo unido. O nosso objetivo é o mundo único; temos que
trabalhar por ele e pela fraternidade humana.
A visão mundialista insere a política numa visão
cosmopolita da unidade humana, para além do patriotismo, dos interesses de clãs
e tribos, de interesses étnicos ou nacionais.
Ela expressa a necessidade de unidade política humana e de uma
cosmovisão adequada para compreender os tempos em que vivemos.
Ideias federalistas vigorosas encontram-se
no pensamento político
e social de Sri Aurobindo, que escreveu sobre o ideal da unidade humana e sobre a Federação planetária como a forma mais
adequada de articular o todo e as
partes.
Tendo vivido na Inglaterra dos sete aos 21 anos, Sri
Aurobindo compreendeu profundamente o
hemisfério ocidental, com sua história, cultura e política e
processou esse conhecimento à luz da Vedanta, a milenar sabedoria das escrituras
hindus.
Sri Aurobindo participou
ativamente, no início do século XX, da luta pela independência de seu país.
Mas, muito antes da Índia alcançar a independência em relação aos colonizadores
ingleses, com a aplicação do princípio da não violência pelo Mahatma Gandhi,
concluira que esse assunto já estava bem encaminhado. Passou, então, a
ocupar-se de questões globais.
Seu pensamento vai além da visão conjuntural de curto prazo
e focaliza os ciclos longos da história. Seu pensamento político e social
impressiona pela clareza, capacidade de imaginação e fundamentação histórica. Sua visão integral pioneira no início do século XX é
um farol que permite enxergar entre as
brumas do futuro. É uma referência atual em pleno século XXI, no qual se
valoriza a perspectiva transdisciplinar e holística.
Sri Aurobindo estudou o passado, visualizou cenários para
o futuro e avaliou as várias possibilidades para alcançar a união mundial. Para
ele, as crises políticas, econômicas e culturais que atravessamos são
expressões de uma crise maior, a crise da espécie humana dentro de seu processo
evolutivo; o próprio ser humano é um ser em transição, que ainda deverá evoluir
física, mental e espiritualmente. Sua visão prospectiva volta-se
para o processo evolutivo pelo qual passa a espécie humana e todo o planeta.
Ele dizia que nossa tarefa é ajudar a acelerar a evolução humana e que vivemos
uma crise da evolução da espécie. Considerando–se
a história passada, a humanidade não chegou ainda ao último estágio da sua
evolução política, com as democracias e os estados-nação. Sri
Aurobindo postulou que os Estados-Nação não constituem a última etapa do
desenvolvimento político humano e defendeu a unidade econômica e administrativa
do planeta.[5]
Seu
pensamento influenciou a construção da cidade de Auroville, em Pondicherry, no
sul da Índia, que se propõe a ser um laboratório internacional de paz, harmonia
e concórdia, com base na ideia de que a espécie humana não é o último passo da
evolução. Foi a imprensa de Auroville que publicou pioneiramente, em 1977, o
anteprojeto de uma Constituição para a federação da Terra elaborado por
movimentos sociais federalistas mundiais.
O pensamento politico e social de Sri Aurobindo encontra-se
expresso nos livros O ciclo humano, A guerra
e a autodeterminação e O ideal da
unidade humana. Escritos na segunda
década do século XX e revisados em notas de pé de página depois da segunda
guerra mundial, esses textos continuam atuais. Não tratam de temas conjunturais,
mas dos grandes ciclos da evolução humana e não envelhecem, têm a qualidade dos
clássicos. O livro O ciclo humano
ressalta a importância da visão
subjetiva da vida e explora o universo interior do homem, ainda pouco conhecido; aprofunda a discussão sobre a razão, seu
papel e suas limitações, e sobre a
evolução que a racionalidade sofreu ao longo da história. Na fase evolutiva seguinte, suprarracional, transformações
espirituais moldariam uma nova etapa
na vida da espécie. Em O ideal da unidade
humana, estudou os impérios e as
nações, com sua formação e seus estágios de desenvolvimento; antecipou a unificação da Europa; abordou as
possibilidades de um império mundial e as
enormes dificuldades no caminho em direção à unidade internacional; tratou também dos princípios necessários para se constituir uma
confederação livre de nações e as condições
para que ocorresse tal união mundial livre. A unidade humana, central no pensamento de Sri Aurobindo,
estende-se aos domínios militar, econômico e
administrativo. Ela é buscada em escala global, sendo respeitada e
valorizada a diversidade.
O tema da guerra e da autodeterminação dos povos é
abordado no terceiro livro dos pensamentos políticos e sociais que integram sua
obra completa, editada em trinta volumes por ocasião do centenário de seu
nascimento, em 1972. Escritos na segunda década do século XX e revisados em
notas de pé de página depois da segunda guerra mundial, esses textos continuam
atuais.
Ele conclui que, entre todas as outras, a melhor
alternativa para a organização política global é a proposta federativa, quando
comparada com as alternativas de um
eventual império uno mundial ou uma confederação de nações.
(*) Autor dos livros
Ecologizar, Tesouros da Índia e Meio Ambiente & Evolução Humana.
[1]
A
civilização indiana foi resiliente em relação à colonização
ocidental e a outras invasões, absorveu influências e agora por sua vez
influencia o mundo ocidental que a colonizou.Apenas recentemente vem sendo resgatada a cosmovisão dos povos andinos originários, preservada a partir do povo Q'eros, isolado nos altos dos Andes.
[3] PATEL, A.B. Towards a new
world order, p.17. Meu interesse pelo Federalismo mundial
começou a nascer em 1977. Eu estava na Índia
numa bolsa como pesquisador visitante do Instituto Indiano de Administração em
Bangalore e assisti a uma palestra de A.B. Patel, presidente da ONG World
Union, no India International Centre em Delhi.
Alguns dias depois, visitei Pondicherry e Auroville onde tomei contato
com a vasta obra e as ideias mundialistas de Sri Aurobindo. Revisitei o tema do
Federalismo Mundial em 1987, em parceria
com Jarbas Medeiros, em artigos publicados na revista da Fundação Joao
Pinheiro. Quando publiquei o livro Tesouros da India em 2003, também voltei a
abordar o tema, devido à força que têm na India tais ideias e perspectivas
universalistas, tanto em termos de politica como também articuladas com a
cosmologia e a cosmovisão das tradições espirituais que ali se desenvolveram –
hinduísmo, budismo, Jainismo.
[5] Os estudantes que
desejam transcender os limites dos autores e referências ocidentais têm em Sri
Aurobindo uma rica fonte de conhecimentos históricos, lastreada na cultura
milenar indiana e em seu profundo conhecimento do ocidente. Nele poderão
inspirar-se numa visão integral da evolução humana e desfrutar cenários
prospectivos,
valiosos para suas
reflexões. Sri Aurobindo dá um crédito especial ao movimento Teosófico por seu
papel em reconhecer o valor da cultura indiana, no final do século XIX e início do Século XX,
num tempo em que ela era menosprezada e diminuída pela visão ocidental então
dominante.
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