sexta-feira, 24 de julho de 2015

Segurança e ecologia



          Entramos num novo período da história do planeta, o antropoceno. Nele, o homo sapiens transforma o meio ambiente e causa mudanças climáticas e perdas de biodiversidade. Por outro lado, com sua capacidade de autoconhecimento e de compreender como funciona a natureza, é agente preservador e restaurador. A evolução é crescentemente influenciada por suas ações.
Em 2011, a ONU divulgou relatório com projeções de população: sete bilhões neste ano; 9,3 em 2050 e 10 em 2100. Alguns cenários que integram o clima às projeções de população são catastróficos. James Lovelock, o formulador da Teoria Gaia, estimou para 2100 uma população reduzida a um bilhão de pessoas. Se existe tal grau de divergência quanto a projeções de população - variando de um até 15 bilhões, cenário que considera altas taxas de fertilidade - seria conveniente que os demógrafos integrassem em suas projeções aquilo que os cientistas do clima estimam como conseqüências das mudanças climáticas.  A confiabilidade das projeções demográficas de longo prazo é questionável quando elas fazem de conta que as mudanças climáticas não impactarão sobre a população.  Segurança climática é crucial para a segurança humana. Qualquer que venha a ser seu tamanho, a população humana precisa se abastecer de água, energia, alimentos e materiais, o que exerce pressão sobre os recursos ambientais. A multiplicação das classes médias, com grandes quantidades de pessoas saindo da subsistência para condições de consumo material mais intenso, gera intensa pressão e impactos sobre esses recursos. Em nome de pretensa defesa do desenvolvimento econômico, da geração de emprego e de renda, geram-se colapsos.  Um deles ocorreu no Mar de Aral, cuja morte começou em 1960: na ex-União Soviética, planejadores conceberam um ambicioso programa econômico que redirecionava a água de diversos rios para converter terras devolutas num cinturão de produção do algodão. Não obstante o sucesso inicial, o projeto resultou na devastação do Mar de Aral que, em duas décadas, tornou-se uma superfície seca e contaminada, com solos e água salinizados e erodidos por tempestades de poeira, com os leitos de desova dos peixes destruídos, o conseqüente colapso da indústria pesqueira e a ruptura da navegação. Hoje a paisagem ali resultante é desoladora, com grandes navios encalhados na areia. A lição do mar de Aral precisa ser relembrada no momento em que o Brasil debate o código florestal, pois aqui, também, vozes pré-ecológicas se manifestam com força. Pretensamente defendem interesses sociais e econômicos legítimos; na prática, podem provocar resultados desastrosos.
Cada cidadão, empresa, país, tem sua pegada ecológica, de carbono, hídrica, associada a seu modo de vida. Convém saber mais a respeito delas e reduzir desperdícios. No futuro, será cada vez mais necessário um processo seletivo para escolher quais os produtos e serviços devem ser priorizados. Continuará, por exemplo, a ser tolerável destinar quantidades vultosas de energia e minerais para a produção de armamentos? Os subsídios econômicos, os critérios para concessão de crédito e demais sinais emitidos pela gestão econômica podem atuar a favor ou contra a ecologização da economia. Hoje, bancos prestam um desserviço ecológico ao concederem crédito a atividades degradadoras. 

Segurança hídrica e energética  
Quanto à gestão da água, um avanço necessário é considerar, de forma integrada, todo o ciclo hídrico: em estado de vapor na atmosfera, em estado líquido nas águas subterrâneas e superficiais, em estado sólido nas geleiras e pólos. Na União Européia, a gestão das águas promove sua integração com as políticas do clima e do meio ambiente e harmoniza interesses de vários países que compartilham bacias hidrográficas. Em Portugal, por exemplo, a lei define como recursos hídricos, além as águas, os respectivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas. Na legislação brasileira não existe uma definição clara do que são os recursos hídricos. Outro tema relevante é o da segurança energética. O acidente nuclear na usina de Fukushima, no Japão, reacendeu o debate sobre os perigos dessa fonte de energia. Mas há crescentes controvérsias, pois alguns ecologistas passam a considerar que esses riscos são suportáveis, se comparados com as conseqüências desastrosas de fontes de energia baseadas em combustíveis fósseis, que emitem gases de efeito estufa. Há possibilidades crescentes de uso de fontes de energia renovável – eólica, solar, dos oceanos, bem como das fontes mais convencionais. São cruciais, também, a redução de desperdícios de água e de energia.

Segurança e mediação de conflitos - A área ambiental trata de temas controversos que exigem a construção de convergências.
Na sociedade, sucedem-se episódios de violência e assassinatos de ativistas ambientais. Devido ao crescente grau de polêmicas, de interesses econômicos e políticos contraditórios, bem como de questões de segurança, cada vez mais o arbitramento sobre os temas ambientais migra da área ambiental para instâncias de governo que mediam conflitos políticos. As áreas de articulação institucional dos governos dispõem de autoridade para convocar as demais secretarias ou ministérios e funcionam como agentes aglutinadores. Isso significa um aumento na relevância que o tema assume e na capacidade de se mediarem posições conflitantes dentro do governo e com os demais atores da sociedade. A autoridade governamental máxima – presidente, governador, prefeito – tem sido cada vez mais chamada a arbitrar os debates dos temas climáticos e ambientais. Mudanças climáticas, código florestal e sistema de prevenção de desastres ambientais são exemplos de temas que merecem esse modo de tratamento. 

Consciência e modelos mentais - Há grande diversidade de estágios de consciência quanto às questões ecológicas.
Um dos modelos mentais que ainda perdura é o ecoalienado. Alinhamento com interesses econômicos imediatistas sem visão de longo prazo o caracterizam. Baixa sensibilidade e percepção estão freqüentemente atreladas a interesses econômicos imediatos; também eles, pré-ecológicos. As motivações para essa visão podem variar da simples ignorância, até os interesses de conservação do status quo e a resistência às transformações. Sistemas de abastecimento cultural e científico produzem e disseminam informação e conhecimento que permitem se agir com sabedoria. Ecologizar os sistemas de abastecimento cultural passa a ser elemento fundamental para a sociedade humana.
Há quem acredite que a consciência ecológica, como as demais formas de consciência social, é movida pelo medo: “Consciência é a voz interior a nos advertir que alguém talvez esteja olhando”, define H.L.Mencken. Para quem é religioso, Deus seria esse alguém que sempre olha. Para outros, esse alguém pode ser a vigilância policial ou a câmera eletrônica, a imprensa livre, o cidadão interessado, o competidor, o ministério público ou o tribunal de contas. Eles vigiam e podem colocar em apuros quem comete ação condenável. Iluminar e dar transparência são formas de dar visibilidade e reduzir riscos de comportamentos ecoirresponsáveis.
A natureza é, ela própria uma grande mestra, que, por meio de desastres, ensina lições que, caso sejam adequadamente aprendidas, podem levar a mudanças de comportamentos individuais e coletivos. Por meio do sofrimento causado por deslizamentos de encostas, inundações urbanas e rurais, a natureza se manifesta e dá margem a que se aprendam lições de prudência ecológica e que se evitem comportamentos temerários, tais como a ocupação de áreas vulneráveis e de risco. A visão ecológica integral genuína explicita as conexões entre decisões tomadas dentro de um modelo mental pré-ecológico e suas conseqüências ambientais. Há uma crescente percepção da centralidade das questões ambientais e uma consciência cada vez mais difundida sobre sua importância. Falta ainda transpô-las para a ação.

Segurança alimentar - No sistema de abastecimento alimentar há relações de causa e efeito entre o desmatamento para a produção pecuária ou de soja para alimentar animais e os hábitos alimentares e de consumo. O hábito alimentar é um campo em que cada pessoa pode reduzir seu impacto sobre o ambiente ou a emissão de gases de efeito estufa. Nas escolhas alimentares, há variações de A a Z. Cada um desses modos reflete um estágio de consciência ecológica: há pessoas que adotam hábitos alimentares formados desde a infância; as que se sensibilizam, mas não mudam atitudes; as que desejam que se limpe o processo de produção, que seja identificada a origem da carne na cadeia produtiva e evitam comprar carne não certificada e que provoca desmatamentos na Amazônia. Há, também, os que, por razões de ecologia energética, renunciaram a ingerir a carne vermelha; os que não se alimentam com qualquer tipo de produto de origem animal, por terem compaixão para com os animais e preocuparem-se com seus efeitos na saúde. Um indivíduo que reduza seu consumo de carne faz pouca diferença no cômputo global. Mas quando tal mudança ocorre em toda a sociedade, com milhões (ou bilhões) de pessoas adotando-a, o benefício ecológico torna-se significativo.  No sentido inverso, à medida que sociedades emergentes prosperam economicamente, há uma tendência a aumentar o consumo per capita de carne.
Mudanças de estágios de consciência, de atitudes e comportamentos podem acontecer rapidamente, com avanços e retrocessos. Quanto mais pessoas se transportarem de uma visão ecoalienada para um estágio mais avançado de consciência ecológica e adequarem seus hábitos de consumo, menores podem ser os impactos negativos associados às mudanças climáticas.

Nesse início de era ecológica e do período antropoceno, o homo sapiens, um ser em transição, precisará evoluir para o homo ecologicus.

(*) Autor de Ecologizar e de Tesouros da Índia para a civilização sustentável. ecologizar@gmail.com                     WWW.ecologizar.com.br

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