terça-feira, 13 de setembro de 2016

CAMINHANDO COM LEVEZA: A PEGADA ECOLÓGICA



Viver sem deixar rastro era o ideal dos seus antepassados, conforme relata o índio Kaká Werá da tribo Guarani. As marcas impressas em baixo relevo pelo peso do corpo no solo são pistas que o caçador usa para identificar o animal passou por ali. Povos ancestrais procuravam caminhar com leveza sobre a Terra, conviver com as diferentes paisagens, cultivar relações harmônicas consigo mesmo, com a família, com a natureza e com o todo. Mostravam sua gratidão pela Terra por meio de festas, celebrações, danças e cantos e interferiam com gentileza no ambiente, evitando degradá-lo, poluí-lo ou desequilibrá-lo.
Esse ideal na cultura guarani tem forte afinidade com o de antigas civilizações sustentáveis, como a indiana, para quem a meta era alcançar a vida contemplativa, o silêncio, a redução dos impactos dos hábitos de vida sobre o ambiente, por meio de disciplina e exercícios de respiração, alimentação vegetariana, o uso mínimo de objetos na vida cotidiana.
As visões ancestrais de povos indígenas ou de antigas civilizações têm forte afinidade com movimentos contemporâneos pela redefinição do que seja progresso, tais como aquelas que defendem a simplicidade voluntária, o conforto essencial, a austeridade feliz e o consumo sustentável.
Um indicador contemporâneo de sustentabilidade é a pegada ecológica, que mostra quanta área produtiva de terra é utilizada para produzir o que se usa e se consome e para assimilar os resíduos. Compara-se o uso dos recursos naturais com a capacidade da natureza em fornecê-los e indica-se a insustentabilidade, no caso de haver déficit ecológico. A pegada ecológica contrasta o consumo dos recursos pelas atividades humanas com a capacidade de suporte da natureza; mostra se os impactos no ambiente são sustentáveis em longo prazo; possibilita que se estabeleçam comparações entre indivíduos, cidades e nações, pois pode ser aplicada em várias escalas, da escala individual à de uma cidade ou de um país. [1]
Os componentes do cálculo da pegada ecológica individual são os hábitos de vida cotidianos na habitação, na alimentação, na geração de resíduos, nos modos de transporte, no consumo de bens e serviços e, especialmente, no consumo de energia. Na habitação, considera-se o número de pessoas que ali vivem, o tipo de climatização utilizado, o número de torneiras usadas; a origem da alimentação, se é animal ou vegetal, se as refeições são realizadas em casa ou fora dela; o consumo de alimentos produzidos localmente
. Quanto aos transportes, examinam-se o tipo de veículo, o deslocamento e a distância casa-trabalho, as viagens em férias e em fins de semana. No que se refere ao consumo, verifica se houve compras significativas e se ocorreu a opção por produtos energeticamente eficientes; no que se refere aos resíduos, se foram adotadas ações para reduzir sua produção, aproveitamento de resíduos orgânicos na compostagem, separação do lixo, qual o volume produzido.
Vários sites na internet disponibilizam testes auto-aplicáveis sobre a pegada ecológica, que medem o impacto que a vida de cada pessoa, cidade ou país causa na natureza, o rastro que deixa como marca sobre o planeta. Em  site o teste para cálculo da pegada ecológica individual é completado com um questionário cujas respostas podem significar um compromisso de adotar mudanças na vida cotidiana – nos transportes, no consumo de energia, na alimentação - que levam à redução do numero de hectares necessários para sustentar o estilo de vida.  Responder a tal questionário é em si um teste de honestidade, que pode levar a uma tomada de consciência e optar por abandonar aspirações de consumo induzidas, renunciar a comodismos e ao conformismo. O teste é equivalente a um exame de consciência. Mostra o peso ecológico de meu caminhar. A auto aplicação do teste revelou que minha pegada ecológica ultrapassa em muito a média mundial, já que se todos tivessem uma pegada ecológica semelhante à minha, precisaríamos de 3,1 planetas como o nosso. Apliquei esse teste em classe com alunos da Universidade Católica de Brasília e o resultado foi que nossa pegada ecológica é mais do que o dobro da média per capita brasileira.
Se vivêssemos num mundo eqüitativo e justo, teríamos direito a 1,8 hectares globais de área biologicamente produtiva por pessoa.  A pegada ecológica ressalta questões de justiça e de equidade.
O estudo intitulado Planeta Vivo (2004), do Fundo Mundial para a Vida Selvagem – WWF estimou a pegada ecológica em hectares[2] per capita e obteve os resultados seguintes: Alemanha 4,5;
Argentina 2,3;
Austrália 6,6;
Brasil 2,1;
China 1,6;
Estados Unidos  9,6 (a maior pegada ecológica média);
Japão 4,4;
Suécia 6,1; sendo que a média do m
undo é de 2,2 hectares por pessoa. 
O teste coloca em evidência as injustiças nos padrões de consumo e a importância de ter como referência povos que souberam se organizar para sustentar-se com uma leve pegada ecológica, como os indianos. A Índia tem uma pegada ecológica de 0,87 hectares per capita. Aquele país acumulou, durante milênios, amplo conhecimento de como lidar com a sustentabilidade e dispõe de grande inteligência ecológica e espiritual; aplica valores como o da não-violência e o desprendimento em relação às coisas materiais; combina conhecimento ancestral com alta densidade populacional, sacralizou a natureza e adotou hábitos de consumo sustentáveis tais como o vegetarianismo; organizou-se espacialmente numa rede de milhares de aldeias interconectadas e semiautosuficientes. Essa combinação de motivos, e não apenas as privações materiais, ajuda a explicar a sua reduzida pegada ecológica e a torna portadora de tesouros culturais valiosos para a sustentabilidade. Seis planetas seriam necessários se cada indiano vivesse como um americano.

O teste demonstra com clareza a dissociação entre pensamento, discurso e vida prática, as resistências subjetivas a desapegar-se daquilo que proporciona prazer e conforto físico, os limites subjetivos da capacidade de ser generoso em prol do bem comum. Também aponta para a necessidade de se promoverem mudanças nas regras econômicas, no design urbano ou da habitação e em decisões coletivas, com o objetivo de se reduzir a pegada ecológica. Assim, por exemplo, a reforma tributária ecológica pode criar um sistema de incentivos e desincentivos econômicos que apliquem sanções em quem tem uma pesada pegada ecológica e que estimulem aqueles que deixam um rastro mais leve. Ela indica que o sistema econômico e o ecológico devem caminhar em sintonia e que a sociedade precisa acertar o passo da economia com o passo da ecologia, sob pena da caminhada não se sustentar por longo tempo.


Assim, a pegada ecológica mostra as distorções produzidas pelo modelo de produção e consumo insustentável. Ao apontar para as injustiças e desigualdades, mostra que a ética e cidadania ecológicas exigem a inclusão social de milhões de pessoas marginalizadas, invisíveis para o mercado, porque não consomem bens materiais. A capacidade de consumo deve estar relacionada ao limite físico de recursos naturais disponíveis, e não à quantidade de dinheiro acumulado para ser gasto. Consumir com responsabilidade ecológica deve ser um imperativo não apenas devido à limitada capacidade de suporte do planeta[3], mas também porque o padrão de consumo insustentável usurpa o direito ao consumo mínimo de milhões de seres humanos. Ao usarmos mais do que a capacidade de suporte do planeta, é como se estivéssemos sacando no cheque especial. Estamos nos empobrecendo ao destruir o capital principal ao invés de usar os rendimentos do patrimônio, pois não se pode sacar indefinidamente mais do que se ganha. O nosso limite de crédito logo se esgotará.
O teste da pegada ecológica estimula a virar pelo avesso noções produtivistas ou consumistas e suscita questões: vale a pena sacrificar-me individualmente se os outros também não o fizerem? Como mudar hábitos e reduzir a pegada chegando ao limite médio per capita global de 1,8 ha? Tornando-me cada vez mais vegetariano? Andando a pé? Reduzindo viagens e deslocamentos físicos que gastam muita energia? Mudando-me para cidades que exijam menor dispêndio de energia e uso do automóvel? Quais as renúncias voluntárias ao excesso de consumo, qual a redução de desperdícios, qual a mudança necessária de atitudes e comportamentos devo adotar? Como reduzir a pegada ecológica da cidade ou do país, em direção à sustentabilidade da vida da espécie humana no Planeta?


[1] WWF - Três indicadores são complementares e permitem analisar os múltiplos aspectos das consequências das atividades humanas sobre o capital natural:
Pegada Ecológica – Mede os impactos da ação humana sobre a natureza, analisando a quantidade de área bioprodutiva necessária para suprir a demanda das pessoas por recursos naturais e para a absorção do carbono. Pegada de Carbono – Mede os impactos da humanidade sobre a biosfera, quantificando os efeitos da utilização de recursos sobre o clima. Pegada Hídrica - Mede os impactos que as atividades humanas causam na hidrosfera, monitorando os fluxos de água reais e ocultos.


[2] Um hectare corresponde a 10.000m2.

[3] Cada ambiente ou ecossistema tem uma capacidade de suporte, além da qual aquele sistema se estressa, torna-se degradado ou deteriora-se. Os ecossistemas têm uma dinâmica própria e cada variável interfere e influencia as demais. Dessa forma, a capacidade de suporte não é estática e permanente. Ela varia com o tempo, com as condições e circunstâncias, precisando ser permanentemente monitorada, para que se identifiquem a tempo tais fatores e se possam tomar as decisões adequadas para evitar o estresse ambiental e sua conseqüente degradação.


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