Viver
sem deixar rastro era o ideal dos seus antepassados, conforme relata o índio
Kaká Werá da tribo Guarani. As marcas impressas em baixo relevo pelo peso do
corpo no solo são pistas que o caçador usa para identificar o animal passou por
ali. Povos ancestrais procuravam caminhar com leveza sobre a Terra, conviver
com as diferentes paisagens, cultivar relações harmônicas consigo mesmo, com a
família, com a natureza e com o todo. Mostravam sua gratidão pela Terra por
meio de festas, celebrações, danças e cantos e interferiam com gentileza no
ambiente, evitando degradá-lo, poluí-lo ou desequilibrá-lo.
Esse
ideal na cultura guarani tem forte afinidade com o de antigas civilizações
sustentáveis, como a indiana, para quem a meta era alcançar a vida
contemplativa, o silêncio, a redução dos impactos dos hábitos de vida sobre o
ambiente, por meio de disciplina e exercícios de respiração, alimentação
vegetariana, o uso mínimo de objetos na vida cotidiana.
As
visões ancestrais de povos indígenas ou de antigas civilizações têm forte
afinidade com movimentos contemporâneos pela redefinição do que seja progresso,
tais como aquelas que defendem a simplicidade voluntária, o conforto essencial,
a austeridade feliz e o consumo sustentável.
Um
indicador contemporâneo de sustentabilidade é a pegada ecológica, que mostra quanta área produtiva de terra é
utilizada para produzir o que se usa e se consome e para assimilar os resíduos.
Compara-se o uso dos recursos naturais com a
capacidade da natureza em fornecê-los e indica-se a insustentabilidade, no caso
de haver déficit ecológico. A pegada ecológica contrasta o consumo dos
recursos pelas atividades humanas com a capacidade de suporte da natureza;
mostra se os impactos no ambiente são sustentáveis em longo prazo; possibilita
que se estabeleçam comparações entre indivíduos, cidades e nações, pois pode
ser aplicada em várias escalas, da escala individual à de uma cidade ou de um país.
[1]
Os
componentes do cálculo da pegada ecológica individual são os hábitos de vida
cotidianos na habitação, na alimentação, na geração de resíduos, nos modos de transporte,
no consumo de bens e serviços e, especialmente, no consumo de energia. Na
habitação, considera-se o número de pessoas que ali vivem, o tipo de
climatização utilizado, o número de torneiras usadas; a origem da alimentação,
se é animal ou vegetal, se as refeições são realizadas em casa ou fora dela; o
consumo de alimentos produzidos localmente
.
Quanto aos transportes, examinam-se o tipo de veículo, o deslocamento e a
distância casa-trabalho, as viagens em férias e em fins de semana. No que se
refere ao consumo, verifica se houve compras significativas e se ocorreu a
opção por produtos energeticamente eficientes; no que se refere aos resíduos,
se foram adotadas ações para reduzir sua produção, aproveitamento de resíduos
orgânicos na compostagem, separação do lixo, qual o volume produzido.
Vários
sites na internet disponibilizam testes auto-aplicáveis sobre a pegada
ecológica, que medem o impacto que a vida de cada pessoa, cidade ou país causa
na natureza, o rastro que deixa como marca sobre o planeta. Em site o teste para cálculo da pegada ecológica individual é completado com um
questionário cujas respostas podem significar um compromisso de adotar mudanças
na vida cotidiana – nos transportes, no consumo de energia, na alimentação -
que levam à redução do numero de hectares necessários para sustentar o estilo
de vida. Responder a tal questionário é
em si um teste de honestidade, que pode levar a uma tomada de consciência e
optar por abandonar aspirações de consumo induzidas, renunciar a comodismos e
ao conformismo. O teste é equivalente a um exame de consciência. Mostra o peso
ecológico de meu caminhar. A auto aplicação do teste revelou que minha
pegada ecológica ultrapassa em muito a média mundial,
já que se todos tivessem uma pegada ecológica semelhante à minha, precisaríamos
de 3,1 planetas como o nosso. Apliquei esse teste em classe com alunos da
Universidade Católica de Brasília e o resultado foi que nossa pegada
ecológica é mais do que o dobro da média per capita brasileira.
Se
vivêssemos num mundo eqüitativo e justo, teríamos direito a 1,8 hectares globais de área biologicamente produtiva por
pessoa. A pegada ecológica
ressalta questões de justiça e de equidade.
O
estudo intitulado Planeta Vivo (2004), do Fundo Mundial para a Vida Selvagem –
WWF estimou a pegada ecológica em hectares[2]
per capita e obteve os resultados seguintes: Alemanha 4,5;
Argentina 2,3;
Austrália 6,6;
Brasil 2,1;
China 1,6;
Estados Unidos 9,6 (a maior pegada ecológica média);
Japão 4,4;
Suécia 6,1; sendo que a média
do m
undo é de 2,2 hectares por
pessoa.
O teste coloca em evidência as injustiças nos padrões de
consumo e a importância de ter como referência povos que souberam se organizar
para sustentar-se com uma leve pegada ecológica, como os indianos. A Índia tem uma pegada ecológica de 0,87 hectares per
capita. Aquele país
acumulou, durante milênios, amplo conhecimento de como lidar com a
sustentabilidade e dispõe de grande inteligência ecológica e espiritual; aplica
valores como o da não-violência e o desprendimento em relação às coisas
materiais; combina conhecimento
ancestral com alta densidade populacional, sacralizou a natureza e adotou
hábitos de consumo sustentáveis tais como o vegetarianismo; organizou-se
espacialmente numa rede de milhares de aldeias interconectadas e
semiautosuficientes. Essa combinação de motivos, e não apenas as privações materiais,
ajuda a explicar a sua reduzida pegada ecológica e a torna portadora de
tesouros culturais valiosos para a sustentabilidade. Seis planetas seriam
necessários se cada indiano vivesse como um americano.
O teste demonstra com clareza a dissociação entre
pensamento, discurso e vida prática, as resistências subjetivas a desapegar-se
daquilo que proporciona prazer e conforto físico, os limites subjetivos da
capacidade de ser generoso em prol do bem comum. Também aponta para a
necessidade de se promoverem mudanças nas regras econômicas, no design urbano
ou da habitação e em decisões coletivas, com o objetivo de se reduzir a pegada
ecológica. Assim, por exemplo, a reforma tributária ecológica pode criar um
sistema de incentivos e desincentivos econômicos que apliquem sanções em quem
tem uma pesada pegada ecológica e que estimulem aqueles que deixam um rastro
mais leve. Ela indica que o sistema econômico e o ecológico devem caminhar em
sintonia e que a sociedade precisa acertar o passo da economia com o passo da
ecologia, sob pena da caminhada não se sustentar por longo tempo.
Assim,
a pegada ecológica mostra as distorções produzidas pelo modelo de produção e
consumo insustentável. Ao apontar para as injustiças e desigualdades, mostra que
a ética e cidadania ecológicas exigem a inclusão social de milhões de
pessoas marginalizadas, invisíveis para o mercado, porque não consomem
bens materiais. A capacidade de consumo deve estar relacionada ao limite físico
de recursos naturais disponíveis, e não à quantidade de dinheiro acumulado para
ser gasto. Consumir com responsabilidade ecológica deve ser um imperativo não
apenas devido à limitada capacidade de suporte do planeta[3],
mas também porque o padrão de consumo insustentável usurpa o direito ao consumo
mínimo de milhões de seres humanos. Ao usarmos mais do que a capacidade de
suporte do planeta, é como se estivéssemos sacando no cheque especial. Estamos
nos empobrecendo ao destruir o capital principal ao invés de usar os
rendimentos do patrimônio, pois não se pode sacar indefinidamente mais do que
se ganha. O nosso limite de crédito logo se esgotará.
O teste da pegada ecológica estimula a virar pelo avesso
noções produtivistas ou consumistas e suscita questões: vale a pena
sacrificar-me individualmente se os outros também não o fizerem? Como mudar
hábitos e reduzir a pegada chegando ao limite médio per capita global de
1,8 ha? Tornando-me cada vez mais vegetariano? Andando a pé? Reduzindo viagens
e deslocamentos físicos que gastam muita energia? Mudando-me para cidades que
exijam menor dispêndio de energia e uso do automóvel? Quais as renúncias
voluntárias ao excesso de consumo, qual a redução de desperdícios, qual a
mudança necessária de atitudes e comportamentos devo adotar? Como reduzir a pegada ecológica da cidade ou do
país, em direção à sustentabilidade da vida da espécie humana no Planeta?
[1] WWF - Três indicadores são complementares e permitem
analisar os múltiplos aspectos das consequências das atividades humanas sobre o
capital natural:
Pegada
Ecológica – Mede os impactos da
ação humana sobre a natureza, analisando a quantidade de área bioprodutiva
necessária para suprir a demanda das pessoas por recursos naturais e para a
absorção do carbono. Pegada de Carbono – Mede os impactos da
humanidade sobre a biosfera, quantificando os efeitos da utilização de recursos
sobre o clima. Pegada Hídrica - Mede os impactos que as
atividades humanas causam na hidrosfera, monitorando os fluxos de água reais e
ocultos.
[2] Um
hectare corresponde a 10.000m2.
Nenhum comentário:
Postar um comentário