terça-feira, 13 de setembro de 2016

Hidroalfabetização

Maurício Andrés Ribeiro (*)
Quando um cidadão urbano bebe um copo d’água, raramente sabe de onde ela veio, por qual tipo de tratamento passou para tornar-se potável, qual o manancial em que foi produzida, de onde vieram as nuvens das quais choveu ou como tais nuvens se formaram. Quando toma banho ou lava as mãos, tampouco sabe para onde vai aquele líquido, se será tratado antes de ser devolvido a um rio ou lago, e se esse corpo d’água servirá como fonte de abastecimento para alguém rio abaixo. Tornou-se hidroalienado.
A sensação de abundância de água gera a atitude de descaso para com ela. Quando ela falta, acorda-se para seu valor e toma-se consciência de sua importância vital. A hidroalienação começa a se dissolver quando a água torna-se um assunto devido à sua escassez ou devido ao seu excesso, que traz inundações.  O cidadão se pergunta, então: se o Brasil dispõe de 12% de toda a água doce do mundo, por que ela falta na minha torneira, na minha casa ou no meu bairro? Por que a infraestrutura para captar, transportar, tratar e distribuir a agua é desigual, cara, beneficia os que mais podem?
Para superarmos o hidroanalfabetismo e aprendermos a conviver de modo harmônico com a água são valiosas várias abordagens.
Precisa-se aprender que a água passa pelo nosso corpo e pelos corpos dos demais seres vivos animais e vegetais e que somos parte do ciclo integral da água. A instalação de balanças hídricas em museus de ciência e tecnologia, que pesem e mostrem a quantidade de água existente no corpo de cada pessoa, criança ou adulta, é um instrumento poderoso para despertar tal consciência.
Do mesmo modo, visitas guiadas a estações de tratamento de água são valiosas para que se perceba o investimento necessário para colocar a água num padrão de qualidade que a torne potável. Visitas a estações de tratamento de esgoto são úteis para perceber os custos de sua despoluição.
A observação de sistemas para captar água de chuva e de cisternas para armazená-la também é valiosa: ajuda a conceber modos de aproveitar de modo descentralizado a água que vem da atmosfera para finalidades úteis no cotidiano, tais como regar jardins e uso não potável.
É relevante aprender sobre as bacias hidrográficas e como se interconectam as águas superficiais e as subterrâneas. Conhecer o valor dos serviços prestados pela natureza quando há áreas de proteção de mananciais que facilitam a infiltração de água no solo e a formação de reservas subterrâneas. Cada vez que se perdem tais serviços ambientais, aumenta a necessidade de investir em obras de infraestrutura hídrica – reservatórios, aquedutos, estações de tratamento, o que encarece o custo da água.
Em nosso tempo de mudanças climáticas, o tema da água veio para ficar, pois ela é o elemento da natureza que responde mais diretamente a variações de temperatura. Eventos extremos de seca e inundação tornam-se mais frequentes e intensos. É positivo conhecer as ilhas de calor que se formam sobre as cidades aumentam os riscos de inundações.
Na escala global, saber como funciona o ciclo da água na natureza e sua presença em estado gasoso, liquido ou solido, como evapora ou congela, ajuda na tomada de consciência. Isso envolve também saber sobre a formação e a movimentação de nuvens e chuvas e sobre o grande serviço prestado pela evaporação nos oceanos, que dessaliniza água de modo natural. Na escala de um continente como a América do Sul, é relevante saber como os rios voadores, as nuvens que se movimentam a partir da Amazônia, contribuem para as chuvas no centro oeste e no sudeste, e as conexões que existem entre as torneiras secas no sudeste e o desmatamento da Amazônia.
A abordagem econômica pode ser realçada ao se evidenciarem os prejuízos sofridos na indústria, na agricultura, nos transportes e na geração de energia quando falta água; e ao se valorizarem os serviços hídricos prestados gratuitamente pela natureza.
No contexto das mudanças climáticas aumenta a imprevisibilidade, as séries históricas de dados de chuva e vazão tornam-se referências menos úteis e aumentam os riscos de conflitos entre os vários usuários da água (por exemplo, entre hidrovias x geração de energia; geração de energia x agricultura; agricultura x abastecimento humano). Tais conflitos tendem a crescer à medida que a população aumenta e a demanda por água também se expande. Aprender sobre os conflitos que ocorrem entre países, estados e municípios que disputam uma mesma água traz a dimensão social e política do assunto. 
Há a necessidade de aprender como reduzir o consumo e desenvolver tecnologias que levem à redução de desperdícios. Os arquitetos, engenheiros e urbanistas podem projetar ambientes construídos e cidades que se relacionem de modo harmônico com a água e nos quais ela esteja integrada.
A hidroalfabetização para a gestão da água inclui conhecer processos participativos e instrumentos de ação, bem como o que é feito para conservá-la e dar-lhe uso sustentável. Um dos modos de educação é o que se faz a partir do bolso; pode-se incentivar, inclusive com estímulos econômicos, que o produtor rural passe a se interessar pela produção da água. Por meio da cobrança pelo uso da água pode-se induzir a redução de desperdícios. É relevante conhecer os instrumentos de ação disponíveis na política ambiental e na política das águas – o licenciamento ambiental, os planos de recursos hídricos, o enquadramento de corpos d’água, a outorga, os sistemas de informação e saber utilizá-los com perícia, de forma articulada e integrada.
É um desafio promover a hidroconsciência dos cidadãos e da sociedade. Existem várias formas de fazê-lo, por meio da hidroalfabetização, de sinais econômicos emitidos pelo sistema de preços e da implementação da gestão participativa e descentralizada das águas.
Em situações de carência e escassez torna-se imperiosa a conservação da água. Boas práticas muitas vezes derivam de conceitos e ideias, da aplicação de conhecimentos científicos e tecnológicos, bem como da sabedoria culturalmente acumulada.
Empresas, organizações sociais, indivíduos, governos locais têm realizado boas práticas. A comunicação é fundamental para a mudança cultural e para reduzir a hidroalienação. Nesse sentido, bons serviços são prestados por programas de televisão produzidos por jornalistas ecologicamente conscientes, que divulgam soluções urbanas e rurais e contribuem para disseminá-las. Na internet, muitos sites divulgam boas práticas de gestão da água. Em alguns condomínios em Brasília sujeitos à escassez hídrica, os condôminos financiam pesquisas tecnológicas voltadas para o reuso e a conservação da água, o reaproveitamento de água de chuva, a recarga de aquíferos, conservação do solo e da cobertura vegetal. Estímulos e reconhecimento a essas boas práticas têm sido dados pelos prêmios oferecidos àqueles que as desenvolvem.
A hidroalfabetização é um passo para tornar o cidadão hidroconsciente e para que suas atitudes para com a água sejam de respeito e de cuidado. Também as empresas, organizações e os vários setores do governo precisam ser hidratados e tornar-se hidroconscientes.
De especial importância é a hidroalfabetização de governantes – prefeitos e vereadores, governadores e deputados, presidentes, ministros e senadores, juízes e promotores – pois de sua consciência depende a formulação e colocação em prática de políticas e programas que levem a uma relação consciente da sociedade e dos cidadãos com a água.
É necessário promover a hidroconsciência e o conhecimento, a capacitação dos cidadãos, dos usuários da água, dos técnicos, dos gestores públicos e dos empresários. Programas e campanhas de comunicação são parte relevante da hidroalfabetização. Jornalistas e comunicadores têm papel relevante na hidroalfabetização, assim como professores de crianças, jovens e adultos. Do mesmo modo, nas escolas e nas universidades, em cada disciplina o tema da água pode ser abordado com criatividade, de modo a despertar a curiosidade dos estudantes e a formar pesquisadores e cientistas hidroconscientes. Profissionais de todos os campos podem aplicá-la, intelectuais usar a razão para expandir e elevar a relação das pessoas com ela. Na ciência e na escala cósmica, saber como ela se apresenta nos demais planetas, cometas e corpos celestes traz a dimensão que une o macro e o micro, da água no universo àquela que existe no próprio corpo.
Por fim, os artistas podem usar a emoção e impulsionar a aprendizagem sobre a água na agenda cultural – na música, na literatura, no cinema, no paisagismo, na arquitetura e no urbanismo e sua importância para a saúde e o bem estar humano.
Para reduzir o consumo pode ser eficaz aumentar as contas para quem consome mais. Mas isso não necessariamente ajuda a formar a hidroconsciência daqueles mais abastados, para quem faz pouca diferença pagar uma conta normal ou o triplo dela. A hidroalfabetização precisa ir além da simples educação pelo bolso e buscar desalienar efetivamente os cidadãos em relação à agua.
Algumas das abordagens que podem compor um programa holístico e transdisciplinar incluem: capacitar municípios para que conduzam com responsabilidade hídrica o planejamento e a gestão de uso e ocupação do solo, bem como seus sistemas locais de saneamento; preparar os estados para que tenham capacidade de gestão ambiental e de recursos hídricos, e de colocar em prática planos de contingência para quando ela faltar; integrar as instituições federais articuladas em todos os âmbitos da federação; formar pessoas capazes de formular e cumprir leis hidroconscientes.
Aprender esse bê-á-bá é essencial na hidro alfabetização, que por sua vez é parte da hidroconsciência. Pode-se saber soletrar, ler palavras, escrever, mas não compreender o seu significado. É necessário desenvolver uma visão orgânica de como a água flui no ambiente, para além de visões sistêmicas parciais e setoriais; ampliar a consciência da água como parte de um sistema hídrico, que por sua vez é componente vital de um organismo vivo, seja ele o corpo humano, uma bacia hidrográfica ou o planeta Terra. A hidroconsciência pode contribuir para formar novas atitudes e posturas coletivas e individuais mais responsáveis para com a água.

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