Maurício Andrés Ribeiro (*)
Quando um cidadão urbano bebe um
copo d’água, raramente sabe de onde ela veio, por qual tipo de tratamento
passou para tornar-se potável, qual o manancial em que foi produzida, de onde
vieram as nuvens das quais choveu ou como tais nuvens se formaram. Quando toma
banho ou lava as mãos, tampouco sabe para onde vai aquele líquido, se será
tratado antes de ser devolvido a um rio ou lago, e se esse corpo d’água servirá
como fonte de abastecimento para alguém rio abaixo. Tornou-se hidroalienado.
A sensação de abundância de água
gera a atitude de descaso para com ela. Quando ela falta, acorda-se para seu
valor e toma-se consciência de sua importância vital. A hidroalienação começa a
se dissolver quando a água torna-se um assunto devido à sua escassez ou devido ao
seu excesso, que traz inundações. O
cidadão se pergunta, então: se o Brasil dispõe de 12% de toda a água doce do
mundo, por que ela falta na minha torneira, na minha casa ou no meu bairro? Por
que a infraestrutura para captar, transportar, tratar e distribuir a agua é desigual,
cara, beneficia os que mais podem?
Para superarmos o hidroanalfabetismo
e aprendermos a conviver de modo harmônico com a água são valiosas várias
abordagens.
Precisa-se aprender que a água
passa pelo nosso corpo e pelos corpos dos demais seres vivos animais e vegetais
e que somos parte do ciclo integral da água. A instalação de balanças hídricas
em museus de ciência e tecnologia, que pesem e mostrem a quantidade de água
existente no corpo de cada pessoa, criança ou adulta, é um instrumento poderoso
para despertar tal consciência.
Do mesmo modo, visitas guiadas a
estações de tratamento de água são valiosas para que se perceba o investimento
necessário para colocar a água num padrão de qualidade que a torne potável.
Visitas a estações de tratamento de esgoto são úteis para perceber os custos de
sua despoluição.
A observação de sistemas para
captar água de chuva e de cisternas para armazená-la também é valiosa: ajuda a
conceber modos de aproveitar de modo descentralizado a água que vem da
atmosfera para finalidades úteis no cotidiano, tais como regar jardins e uso
não potável.
É relevante aprender sobre as
bacias hidrográficas e como se interconectam as águas superficiais e as subterrâneas.
Conhecer o valor dos serviços prestados pela natureza quando há áreas de
proteção de mananciais que facilitam a infiltração de água no solo e a formação
de reservas subterrâneas. Cada vez que se perdem tais serviços ambientais,
aumenta a necessidade de investir em obras de infraestrutura hídrica –
reservatórios, aquedutos, estações de tratamento, o que encarece o custo da
água.
Em nosso tempo de mudanças
climáticas, o tema da água veio para ficar, pois ela é o elemento da natureza
que responde mais diretamente a variações de temperatura. Eventos extremos de
seca e inundação tornam-se mais frequentes e intensos. É positivo conhecer as
ilhas de calor que se formam sobre as cidades aumentam os riscos de inundações.
Na escala global, saber como
funciona o ciclo da água na natureza e sua presença em estado gasoso, liquido
ou solido, como evapora ou congela, ajuda na tomada de consciência. Isso
envolve também saber sobre a formação e a movimentação de nuvens e chuvas e sobre
o grande serviço prestado pela evaporação nos oceanos, que dessaliniza água de
modo natural. Na escala de um continente como a América do Sul, é relevante
saber como os rios voadores, as nuvens que se movimentam a partir da Amazônia,
contribuem para as chuvas no centro oeste e no sudeste, e as conexões que
existem entre as torneiras secas no sudeste e o desmatamento da Amazônia.
A abordagem econômica pode ser
realçada ao se evidenciarem os prejuízos sofridos na indústria, na agricultura,
nos transportes e na geração de energia quando falta água; e ao se valorizarem
os serviços hídricos prestados gratuitamente pela natureza.
No contexto das mudanças
climáticas aumenta a imprevisibilidade, as séries históricas de dados de chuva
e vazão tornam-se referências menos úteis e aumentam os riscos de conflitos entre
os vários usuários da água (por exemplo, entre hidrovias x geração de energia;
geração de energia x agricultura; agricultura x abastecimento humano). Tais
conflitos tendem a crescer à medida que a população aumenta e a demanda por
água também se expande. Aprender sobre os conflitos que ocorrem entre países,
estados e municípios que disputam uma mesma água traz a dimensão social e política
do assunto.
Há a necessidade de aprender como
reduzir o consumo e desenvolver tecnologias que levem à redução de desperdícios.
Os arquitetos, engenheiros e urbanistas podem projetar ambientes construídos e
cidades que se relacionem de modo harmônico com a água e nos quais ela esteja
integrada.
A hidroalfabetização para a
gestão da água inclui conhecer processos participativos e instrumentos de ação,
bem como o que é feito para conservá-la e dar-lhe uso sustentável. Um dos modos
de educação é o que se faz a partir do bolso; pode-se incentivar, inclusive com
estímulos econômicos, que o produtor rural passe a se interessar pela produção
da água. Por meio da cobrança pelo uso da água pode-se induzir a redução de
desperdícios. É relevante conhecer os instrumentos de ação disponíveis na
política ambiental e na política das águas – o licenciamento ambiental, os
planos de recursos hídricos, o enquadramento de corpos d’água, a outorga, os
sistemas de informação e saber utilizá-los com perícia, de forma articulada e
integrada.
É um desafio promover a hidroconsciência dos cidadãos e da
sociedade. Existem várias formas de fazê-lo, por meio da hidroalfabetização, de
sinais econômicos emitidos pelo sistema de preços e da implementação da gestão
participativa e descentralizada das águas.
Em situações de carência e escassez torna-se
imperiosa a conservação da água. Boas práticas muitas vezes derivam de
conceitos e ideias, da aplicação de conhecimentos científicos e tecnológicos,
bem como da sabedoria culturalmente acumulada.
Empresas, organizações sociais, indivíduos,
governos locais têm realizado boas práticas. A comunicação é fundamental para a
mudança cultural e para reduzir a hidroalienação. Nesse sentido, bons serviços
são prestados por programas de televisão produzidos por jornalistas
ecologicamente conscientes, que divulgam soluções urbanas e rurais e contribuem
para disseminá-las. Na internet, muitos sites divulgam boas práticas de gestão
da água. Em alguns condomínios em Brasília sujeitos à escassez hídrica, os
condôminos financiam pesquisas tecnológicas voltadas para o reuso e a
conservação da água, o reaproveitamento de água de chuva, a recarga de
aquíferos, conservação do solo e da cobertura vegetal. Estímulos e
reconhecimento a essas boas práticas têm sido dados pelos prêmios oferecidos
àqueles que as desenvolvem.
A hidroalfabetização é um passo
para tornar o cidadão hidroconsciente e para que suas atitudes para com a água
sejam de respeito e de cuidado. Também as empresas, organizações e os vários
setores do governo precisam ser hidratados e tornar-se hidroconscientes.
De especial importância é a hidroalfabetização
de governantes – prefeitos e vereadores, governadores e deputados, presidentes,
ministros e senadores, juízes e promotores – pois de sua consciência depende a
formulação e colocação em prática de políticas e programas que levem a uma
relação consciente da sociedade e dos cidadãos com a água.
É necessário promover a
hidroconsciência e o conhecimento, a capacitação dos cidadãos, dos usuários da
água, dos técnicos, dos gestores públicos e dos empresários. Programas e
campanhas de comunicação são parte relevante da hidroalfabetização. Jornalistas
e comunicadores têm papel relevante na hidroalfabetização, assim como
professores de crianças, jovens e adultos. Do mesmo modo, nas escolas e nas
universidades, em cada disciplina o tema da água pode ser abordado com
criatividade, de modo a despertar a curiosidade dos estudantes e a formar
pesquisadores e cientistas hidroconscientes. Profissionais de todos os campos
podem aplicá-la, intelectuais usar a razão para expandir e elevar a relação das
pessoas com ela. Na ciência e na escala cósmica, saber como ela se apresenta
nos demais planetas, cometas e corpos celestes traz a dimensão que une o macro
e o micro, da água no universo àquela que existe no próprio corpo.
Por fim, os artistas podem usar a
emoção e impulsionar a aprendizagem sobre a água na agenda cultural – na
música, na literatura, no cinema, no paisagismo, na arquitetura e no urbanismo
e sua importância para a saúde e o bem estar humano.
Para reduzir o consumo pode ser
eficaz aumentar as contas para quem consome mais. Mas isso não necessariamente
ajuda a formar a hidroconsciência daqueles mais abastados, para quem faz pouca
diferença pagar uma conta normal ou o triplo dela. A hidroalfabetização precisa
ir além da simples educação pelo bolso e buscar desalienar efetivamente os
cidadãos em relação à agua.
Algumas das abordagens que
podem compor um programa holístico e transdisciplinar incluem: capacitar municípios
para que conduzam com responsabilidade hídrica o planejamento e a gestão de uso
e ocupação do solo, bem como seus sistemas locais de saneamento; preparar os estados
para que tenham capacidade de gestão ambiental e de recursos hídricos, e de
colocar em prática planos de contingência para quando ela faltar; integrar as instituições
federais articuladas em todos os âmbitos da federação; formar pessoas capazes
de formular e cumprir leis hidroconscientes.
Aprender esse bê-á-bá é essencial
na hidro alfabetização, que por sua vez é parte da hidroconsciência. Pode-se
saber soletrar, ler palavras, escrever, mas não compreender o seu significado. É
necessário desenvolver uma visão orgânica de como a água flui no ambiente, para
além de visões sistêmicas parciais e setoriais; ampliar a consciência da água
como parte de um sistema hídrico, que por sua vez é componente vital de um
organismo vivo, seja ele o corpo humano, uma bacia hidrográfica ou o planeta
Terra. A hidroconsciência pode contribuir para formar novas atitudes e posturas
coletivas e individuais mais responsáveis para com a água.
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