Maurício Andrés Ribeiro
Por
que interessa a um brasileiro no século XXI saber o que um indiano pensava da
Europa no início do século XX?
Um
brasileiro está imerso na cultura greco-romana e judaico cristã; localizado no
extremo ocidente, com fortes influências norte-americanas e europeias. No
Brasil a visão eurocêntrica de mundo ainda é dominante, herdada da história
colonial.
Já
um indiano está inserido numa matriz cultural distinta, de uma civilização milenar
que soube ser resiliente e preservar sua cultura anterior ao período de
colonização europeia, além de aproveitar dessa e de outras invasões vários
elementos que a enriquecem. O lugar de fala, ou melhor, o lugar de escrita de
Sri Aurobindo é o de um indiano que conhecia profundamente os fundamentos da
cultura védica de seu país e conhecia com profundidade a civilização europeia
em que viveu na infância e juventude.
Pertencendo
a uma matriz cultural distinta da greco-romana e judaico cristã, ele tinha a
lucidez de perceber suas qualidades e fraquezas, seus acertos e erros, com um
distanciamento crítico que ajudava a dar nitidez à sua percepção.
Seu
ângulo de visão e abordagem é evolucionista, abarca os grandes ciclos da
história; quando ele diz neste momento, refere-se a um agora
alargado, o que torna atuais seus textos escritos há mais de um século.
Além
disso, tendo sido um pioneiro na luta pela independência e um formulador da
doutrina da resistência passiva, Sri Aurobindo foi um ator político importante
em seu país. Ele estudou a fundo a cultura e a filosofia ocidental então
centrada na Europa, continente que durante séculos colonizou outras regiões nas
Américas, África e Ásia. No
contexto da luta pela independencia ele
escreveu que “A Europa em sua
atitude atual parece ser o mais firme inimigo
da liberdade de todos os povos, exceto
de sua própria”. (Bande
Mataram, CALCUTTA, July22nd, 1907)
Ele
fez uma crítica das ideias e práticas sobre liberdade no ocidente: “As idéias gregas da
liberdade e a democracia penetraram
na mente
europeia e criaram
o grande
impulso do nacionalismo
democrático que dominou
a Europa no século
XIX. A
ideia de
que o
despotismo de qualquer
espécie era uma
ofensa contra a humanidade
tinha
se cristalizado em um
sentimento instintivo, e
a moralidade e o sentimento
modernos se revoltaram contra a
escravização da nação
por nação,
de classe
por classe
ou do
homem pelo
homem. O imperialismo teve que
se justificar a este
moderno sentimento e
só poderia
fazê-lo fingindo ser
um administrador
de liberdade, encomendado a partir do
alto para civilizar o incivilizado e treinar
os não
treinados até chegar o
momento
quando o benevolente
conquistador tenha feito
o seu
trabalho e poderia
se aposentar desinteressadamente”. (Bande Mataram, pag. 362)
Ao correlacionar as ideias
europeias de direitos e deveres com a concepção indiana do dharma ele
identifica nesse ponto uma falha e fraqueza da Europa:“Quando os ideais de
liberdade, igualdade e
fraternidade foram declarados
no momento
da Revolução
francesa e a humanidade
exigiu que a
sociedade os reconhecesse
como a
fundação de sua
estrutura, eles foram
associados com uma
feroz revolta
contra as relíquias
do feudalismo
e contra
a farsa
da religião
Cristã que tinha
se tornado
parte integrante
do Feudalismo. Esta foi
a fraqueza
da democracia
europeia e a origem da
sua falha.
Tomou como
seu motor
os direitos
do homem
e não
o Dharma
da humanidade;
apelou para o
egoísmo das classes
inferiores contra o
orgulho da parte
superior. Ela fez o ódio e a guerra intestina os aliados permanentes dos ideais
cristãos e forjou uma confusão inextricável que é a doença moderna da Europa.” (16 March 1908 931)
Ele constata que a existência espiritual foi
deixada de lado no ocidente e propõe o advento de uma era espiritual para a
humanidade: “O Ocidente fez
o crescimento
do ser
intelectual, emocional, vital
e material
do homem o seu
ideal, mas deixou
de lado
maiores possibilidades de sua
existência espiritual. Seus
mais altos
padrões são ideais
de progresso,
de liberdade,
de igualdade e de fraternidade, de razão
e ciência,
de eficiência
de todos
os tipos,
de uma
melhor política, Estado
social e econômico,
da unidade
e da
felicidade terrena da
raça. Estes
são grandes
esforços, mas experimento
após experimento
mostraram que eles não
podem ser
realizados em sua
verdade pelo poder
da ideia
e do
sentimento sozinhos: sua
verdade real e prática
só podem
ser fundadas no espírito. O Ocidente colocou sua fé na ciência e na maquinaria
e está sendo destruido pela sua
ciência e esmagado por sua carga mecânica. Não
entendeu que uma mudança
espiritual é necessária
para a
realização de seus
ideais. O Oriente
tem o
segredo daquela mudança espiritual, mas ele
há muito tempo virou
os olhos para longe da terra.
Chegou a hora de
curar a
divisão e de unir a vida
e o
espírito.” (510 From the Standard
Bearer)
No
início do século XX ele detectava os sinais da decadência ocidental e questionava a postura de construir cegamente
sobre tal base que estava afundando:
“A sociedade
ocidental científica, racionalista, industrial, pseudodemocrática, está em
processo de dissolução e seria, para nós, um absurdo lunático, neste momento,
construir cegamente sobre essa base que está afundando.” (AUROBINDO, Sri. Complete
Works, v.17, p.196.)
Ele
apontar também as falhas e fraquezas da Índia: “Na Europa e na Índia,
respectivamente, a negação do materialista e a recusa do asceta buscaram
afirmar-se como a única verdade e a impor sua concepção da Vida. Na Índia, se o
resultado foi
uma grande
acumulação dos tesouros do Espírito – ou
de alguns deles – foi também uma imensa falência da Vida; na Europa, a
acumulação de riquezas e o domínio triunfante dos poderes e posses do mundo
progrediram em direção a uma igual falência nas coisas do Espírito. E o
intelecto, que buscava a solução de todos
os
problemas no princípio único da Matéria, tampouco se satisfez com a resposta
que recebeu. Por isso, o momento está maduro, e a tendência do mundo se move
para uma afirmação nova e abrangente no pensamento e na experiência interna e
externa e
para seu
corolário, uma autorrealização nova e rica – para o indivíduo e para a espécie
humana – em uma existência humana integral. ( A Vida Divina, capítulo II, “As
Duas Negações”, parágrafos 7 e 8).
A
Índia pode ter um papel relevante na história nessa etapa em que ele vislumbrava uma era subjetiva e espiritual
para a humanidade.