Maurício Andrés Ribeiro (*)
Pessoas não humanas têm a capacidade de aprender a cooperar |
Macacos são vistos como coisas para experiências em laboratórios, ou como divindades num templo indiano. |
Pessoas não humanas têm a capacidade de aprender a cooperar |
Macacos são vistos como coisas para experiências em laboratórios, ou como divindades num templo indiano. |
A prontidão para atuar em emergências reais caracteriza um bom sistema de defesa da saúde humana, animal e ambiental. |
O isolamento abre tempo para a contemplação. |
A espiral da evolução, da matéria à vida e da vida à consciência. |
Durante o isolamento físico da quarentena assistimos a apresentações artísticas envolvendo pais e filhos de duas gerações de músicos de excelência e com alto padrão estético. A infância e a adolescência num ambiente musical facilitam o aprendizado. A cultura familiar doméstica é um ponto de partida que influencia vocações musicais e coloca os familiares em condições vantajosas em relação a quem não dispõe de tal patrimônio artístico dentro de casa.
Uma cultura familiar facilita a formação em várias outras profissões: há linhagens de juristas, militares, políticos, artistas, empresários, jornalistas. O convívio familiar, mais do que a educação formal, proporciona uma cultura que influencia escolhas profissionais e especializa as pessoas tornando-as peritas no manejo dos instrumentos de trabalho.
Imaginemos que essas influências culturais aconteçam não apenas entre uma ou duas gerações, mas entre 10, 50 ou cem gerações, a escala de tempo de uma civilização milenar.
Tecendo tapetes - tarefa especializada desempenhada por uma casta funcional. Jaipur |
Tingindo saris - tarefa desempenhada por uma casta funcional |
Imaginemos que os músicos de uma família passem a se casar com músicos de outra família, também durante dezenas de gerações. Combinando as influências culturais com a genética, refina-se ainda mais essa especialização. Na raiz da casteização está a combinação de fatores culturais e biológicos por meio do isolamento reprodutivo pelo qual se casam somente pessoas pertencentes a um mesmo subgrupo funcional ou profissional.
A casteização é o processo pelo qual se formam castas numa sociedade, com
a especialização funcional numa
atividade ou trabalho e o isolamento reprodutivo. Anúncio de casamento arranjado nos classificados em jornal indiano. Neste caso a casta não é barreira, mas prefere-se a casta Iyer.
Tal processo de organização social acontece em várias sociedades em diferentes graus de enraizamento. A Índia foi a sociedade que levou mais longe e por maior tempo esse processo de casteização, tendo se estruturado originalmente em torno de quatro castas que depois se multiplicaram em milhares de castas e subcastas.
O sistema de castas é controverso e polêmico, acusado de perpetuar desigualdades e fomentar a violência e a opressão, bem como de dificultar a mobilidade social. Ao longo da história vários movimentos procuraram escapar dele. A formação de novas religiões como a dos Sikh, fundada pelo Guru Nanak, teve essa motivação. Ambedkar, que redigiu a constituição indiana, propunha que hindus se tornassem budistas para escapar das castas. Há autores que o definem como uma praga que contamina e contagia outras tradições e se multiplica e viraliza na sociedade.
Entretanto, o sistema, experimental e pragmático, demonstra enorme resiliência, instalando-se em outras tradições religiosas como a dos muçulmanos e cristãos. Eminentes indianos como Gandhi, Tagore, Sri Aurobindo não condenavam o sistema de castas em si, que consideravam bem concebido, mas propunham que retomasse seu espírito original sem os defeitos e degenerações que o desvirtuaram. Gandhi reconhecia a maneira pela qual cada casta ocupava um nicho econômico no sistema de produção evitando a competição desenfreada e promovendo a cooperação. Numa perspectiva ecológica o sistema de castas indiano facilitou a adaptação, com cada grupo ocupando um nicho ecológico na exploração dos recursos da natureza. Sri Aurobindo reconhecia sua função prática na organização social ao se apoiar nos aspectos psicológicos de aptidões e temperamentos humanos e vocações para desempenhar tarefas.
Estudar a casteização nas sociedades, como ela se origina, como se desenvolve, qual a razão de sua resiliência diante dos ataques que sofre, é um campo fértil para pesquisadores das ciências políticas, sociólogos, etnólogos, antropólogos, psicólogos e das ciências biológicas quanto a seus componentes ecológicos e genéticos ligados ao isolamento reprodutivo.
Tal estudo poderia lançar luz sobre o futuro do sistema, se ele está fadado a ser abolido e desaparecer à medida que a sociedade humana evoluir ou se seguirá tendo a capacidade de se adaptar às transformações aceleradas do mundo contemporâneo.
Maurício Andrés Ribeiro
A pandemia acelerou a consciência sobre os perigos que ameaçam a sociedade e os indivíduos.
Vivemos na sociedade do risco, escreveu o sociólogo Ulrich Beck. Ele nota que riscos estão crescentemente associados a causas globais inicialmente invisíveis. A percepção do dia a dia é insuficiente para identificá-los. A vida prática real torna-se cega e incapaz de gerar as defesas necessárias diante deles. É necessário conhecimento técnico especializado para compreender o mundo e saber como lidar com ele. Por virem de dimensões pouco perceptíveis aos sentidos humanos (vírus, radiações atômicas) depende-se cada vez mais de ciência (matemática, química, física, biologia) e tecnologia (microscópios, radiômetros etc) para detectar tais ameaças.
A ciência e a tecnologia são valiosas para lidar com novos riscos imperceptíveis pelos sentidos humanos, tais como os virus e as radiações. |
Para proteger a população
dos vírus os epidemiologistas,
infectologistas, patologistas, imunologistas e profissionais da saúde são
convocados por governos. Eles detêm conhecimento especializado para lidar com as situações, reduzir os danos
à vida e orientar sobre as medidas de controle para evitar sua propagação. Revaloriza-se então o conhecimento prático, como
lavar as mãos e colocar máscaras.
Medidas de isolamento físico e de higiene são adotadas, aceleram-se pesquisas e
estudos para compreender a doença e para produzir vacinas.
A produção e distribuição de riscos prejudica os mais pobres. A vulnerabilidade e a exposição a riscos se distribuem desigualmente na sociedade, prejudicando mais os menos capazes de se protegerem. Na escala local de uma cidade, pessoas nas periferias não tem condições de fazer quarentena e isolamento físico, por necessidade de trabalhar e ganhar o pão de cada dia ou por falta de espaço. Elas se viram como podem e se expõem a riscos.
Pandemias, mudanças do clima, incêndios, furacões, enchentes, secas são eventos críticos nesse estágio da evolução, o estágio terminal da era cenozoica. Mudanças de temperatura alteram o ciclo da água e potencializam eventos críticos.
A noção de segurança precisa ser ecologizada e hidratada. A concepção de segurança é reconceituada e a biossegurança torna-se tema central, juntamente com as questões de segurança ecológica, segurança climática, segurança hídrica, segurança alimentar, emergências que estão na origem e na raiz de outras formas de insegurança pública, econômica, social, política.
Numa abordagem proativa, aprender como prevenir futuras pandemias (por exemplo protegendo habitats de animais silvestres, alteando o relacionamento humano com os animais) é um modo econômico e ecológico de lidar com a segurança biológica. Mais estratégico do que atuar sobre os eventos críticos depois que ocorreram é desenvolver ações preventivas, de alerta precoce, proativas, de planejamento e gestão, que reduzam a possibilidade de ocorrência de desastres e que evitem o sofrimento social.
O princípio da precaução, presente na Declaração do Rio de 1992, afirma que, na ausência da certeza científica formal, a existência de risco de um dano sério ou irreversível requer medidas que previnam este dano. Esse princípio garante contra riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados. Defender-se de tais riscos e desastres, por meio de ações preventivas e não apenas reativas depois que já ocorreram, pode fazer a diferença entre a vida e a morte, a diferença entre maiores ou menores prejuízos econômicos e sociais.
Os governos e populações locais têm um grande papel potencial nas ações para prevenir emergências e precisam ser desalienados e conscientes de suas responsabilidades. Diante dessas realidades emergentes é sábio capacitar os agentes de defesa para lidar com a segurança biológica, ecológica, climática e ambiental e prover os recursos necessários para enfrentar os novos riscos a que estão expostas as populações.
No meio da neblina da pandemia é
pouco previsível o que está à frente,
além da sensação de que atravessamos uma zona de turbulência na história
natural e na história humana. Sabemos que tudo passa e os ciclos do tempo
mostram um pêndulo que oscila do caos à ordem e novamente ao caos, num
movimento caórdico, que é o padrão na evolução.
No meio da pandemia há por um
lado um cenário distópico em que se visualiza o colapso, a extinção, catástrofes,
desastres, o impulso para a morte e a busca de salvação em protetores externos.
Esse cenário traz o desejo de voltar a um passado bucólico imaginário – fechamento, tribalismos, nacionalismos e ao
medo do futuro. Por outro lado, há o cenário de uma utopia possível com mais solidariedade,
cooperação construtiva, coevolução, unidade humana e com as demais espécies
vivas. Paciência e prudência, calma, coragem e confiança são atitudes sensatas diante da
pandemia.