quinta-feira, 7 de junho de 2018

As castas no livro Os indianos de Florência Costa



Maurício Andrés Ribeiro

Florência Costa, jornalista brasileira que viveu muitos anos na Índia e se casou com um indiano escreveu o livro Os indianos (Editora Contexto, 2012). Em linguagem jornalística e de fácil comunicação ela informa sobre aspectos contemporâneos da sociedade indiana. Não se aprofunda em questões filosóficas ou mitológicas, ou na história e resiliência das castas, mas traz pertinentes informações sobre a atualidade da questão.


Os hindus acreditam na origem divina das castas no corpo do Deus Brahman: da cabeça, vêm os brahmins ou intelectuais; dos braços, os kshastrias, políticos ou militares; das pernas, os vaishas ou comerciantes; dos pés, os sudras ou servos. Já os dalits ou intocáveis teriam sido formados pela poeira da sola dos pés de Brahman.
 
As quatro castas originais se multiplicaram e hoje elas são mais de 3000, com 10000 subcastas.Para os hindus, o sistema de castas é parte integrante da cosmovisão de reencarnações, carma de vidas passadas e crenças religiosas. Pela lei do carma, quem errou paga, nesta vida ou em outras. Milhões de indianos seguem sem maiores questionamentos tal sistema e se adaptam a ele, casando-se na mesma casta, cumprindo as responsabilidades de seu grupo de nascimento.
Cada casta tem seu papel na sociedade cabendo aos indivíduos que nasceram naquele grupo social cumprir com responsabilidade o seu darma ou missão. O Bhagavad Gita é um dos textos sagrados hindus mais conhecidos. Nele, o Deus Krishna exorta o guerreiro Arjuna a cumprir seu dharma, sua missão. “Deve lutar, não importam as consequências. Krishna proclama, assim, a necessidade de todos seguirem os deveres de sua casta. Não há salvação individual fora da responsabilidade social.” (Os indianos, pág. 173)

 “Se na morte da pessoa o carma for predominantemente positivo, acredita-se que ela renascerá em uma condição melhor, em uma casta superior, por exemplo. Se for negativo, a pessoa será rebaixada na próxima vida, ou poderá renascer com uma forma de vida inferior, como um animal.”  “A crença tradicional é a de que os indianos de casta baixa acreditam que pagam nessa vida um “carma ruim” do passado, e que somente na próxima encarnação poderão nascer em melhor condição se praticarem boas ações.”
Observa Florência Costa que “Mesmo sendo uma praga milenar, as castas são um dos assuntos que mais pegam fogo na Índia do século XXI. A política de ação afirmativa pioneira do governo indiano (desde 1950), que busca corrigir as injustiças históricas, alimentou a fogueira das castas. Tudo começou com a promulgação da Constituição, três anos após a independência: 22,5% das vagas em cargos públicos e em instituições de ensino foram reservadas aos dalits e à população indígena.” ( Os indianos, Pág. 41).
 Os intocáveis são considerados impuros e essa impureza contamina quem passa pela sua sombra ou os toca. O sistema racionaliza ou justifica a discriminação: o carma de terem nascido dalits seria o produto de atos cometidos em vidas passadas, em outras encarnações.
Grandes números de eleitores dalits elegem representantes políticos para defender seus interesses.  Com as políticas de cotas para excluídos e castas baixas, tem havido movimentação social intensa, às vezes mal aceita pelas castas mais altas quando um intocável ascende economicamente. Tem havido uma inversão de antigos privilégios e status social, quando brâmanes, que teoricamente seriam as castas mais poderosas não encontram oportunidades de trabalho na Índia e emigram para os EUA, Europa e outros lugares que valorizam o conhecimento. Com as leis de cotas na Índia, brahmins empobrecidos são levados a emigrar. Brahmins pobres encontram-se no pior dos mundos, não usufruem das cotas para empregos ou acesso à educação e universidades e não tem a renda para se manterem. A diáspora é uma saída e buscam oportunidades no exterior. Em 2015, os Patel do Gujerat, também supostamente poderosos, fizeram um grande movimento questionando o sistema de cotas por castas e propondo que o critério de renda seja adotado.
Atualmente há um movimento de rebaixamento, diz Florência Costa: “Dessa vez, muitos deverão agir de forma pragmática, ignorando o status social, e deverão identificar-se como pertencentes às castas mais baixas, pois assim poderão ser beneficiados com as cotas. O fenômeno do “rebaixamento” do status de castas já existe.
Há um grupo de indianos que considera as castas como uma maldição, perpetuadora de injustiças e desigualdades. Vivekananda foi contra o sistema de castas. A escritora Arundathi Roy, autora de O Deus das pequenas coisas, o considera uma tragédia.  
Ambedkar, o dalit que se tornou um eminente advogado e que redigiu a constituição indiana depois da independência em 1947, propôs um movimento para conversão ao budismo e para sair do sistema hindu das castas. “Ambedkar dizia que a intocabilidade nunca seria abolida enquanto as castas existissem. Ele questionava Gandhi por sua postura de inclusão dos dalits, que ele chamava de harijans, (filhos de Deus) numa perspectiva mais cristã do que hindu: “Como se pode acreditar que o senhor Gandhi é amigo dos intocáveis quando ele deseja manter a casta? Intocabilidade é apenas uma extensão de castas. Sem abolição das castas não há abolição da intocabilidade.” (Florência Costa, no livro Os indianos)
Fotos: Ambedkar. Agra, India.2013.
Ambedkar, o dalit que redigiu a constituição da India, era contra o sistema de castas.
Florência Costa observa que os dalits migram para as cidades, estão se fortalecendo economicamente, voltam das cidades bem vestidos, mudam de profissão, não mais se escondem ou submetem, rompem as amarras do sistema e, quando são agredidos, buscam que a justiça seja feita.
Na Índia existem cerca de 50 mil guerrilheiros maoístas. “Os maoístas acreditam que a tradição feudal da Índia, a opressora hierarquia de castas que massacra os que estão na base da pirâmide e o explosivo problema de distribuição de terras são ingredientes suficientes para fermentar uma revolução.”
 Florência Costa se alinha com a parcela dos indianos que contesta o sistema e refere-se a elas como uma praga: “a praga das castas persegue os indianos há milhares de anos e resiste até hoje.  A cultura cosmopolita falhou em abolir o casteísmo.”
“Várias religiões tiveram origem na luta contra o sistema de castas, como o sikhismo, o budismo, que surgiu criticando a divisão de castas e o sacrifício de animais em templos como oferendas aos deuses.”(Florência Costa). “Vários movimentos reformistas dentro do hinduísmo durante a história pregavam a igualdade entre as pessoas. O movimento bati, por exemplo, na idade média, se rebelou contra as distinções de casta e descartou rituais bramânicos.” (Pág.21). “A estratégia da conversão para outras religiões que não têm o sistema de casta foi e continua sendo usada pelos dalits para tentar fugir da opressão. Muitos migraram para o cristianismo, para o sikhismo e para o islamismo. (Os indianos, Pág. 38). “Muitas das supostas castas baixas recontam com orgulho os seus mitos de origem, bem diferentes da mitologia bramânica.”
Entretanto essas tentativas de escapar ao sistema de castas levaram a um resultado inverso: a casteização das demais religiões, como o sikhismo, o islamismo, o cristianismo, ou seja, o seu contágio pela lógica e pelas práticas de distinção de grupos. Nota Florência Costa que “apesar da pregação igualitária, o preconceito de castas acabou migrando para o sikhismo, assim como aconteceu com outras religiões que teoricamente negam o casteísmo.” (Pág. 74) Do mesmo modo ocorreu com o islamismo “Os muçulmanos não formam um grupo coeso único. Há vários tipos de divisões. A primeira delas é a de casta, que migrou para o islamismo, apesar de essa religião rejeitar oficialmente essas diferenças. Assim, os ashraf (nobres) – descendentes dos turcos, árabes e persas – olham com desprezo para a maioria ajlaf, cujos antepassados foram hindus de “casta baixa”. Mais desprezados ainda são os arzal, correspondentes aos dalits. ” Pág. 78)
 Também no cristianismo ele foi incorporado: “Bamonn, título de nova subcasta dos brâmanes, somente para cristãos. O sucesso na conversão em Goa foi justamente o de ter permitido aos brâmanes manterem seu status social. Os católicos brâmanes, segundo os historiadores, mantinham seu orgulho de casta e o hábito de casarem entre si, nunca se unindo com pessoas de casta inferior. São cristãos, mas se destacam da maioria hindu de Goa, pois tem uma identidade brâmane que os diferencia das castas baixas.” (Pág. 81) -
A intelectualidade de esquerda indiana não se envolveu na postura anticastas por avaliar que o socialismo as superaria, o que não ocorreu.  Com a urbanização da Índia e a sua industrialização alguns estudiosos esperavam que haveria uma erosão do sistema e seu enfraquecimento, mas isso de fato não ocorreu. Persiste a sua força mesmo em áreas urbanas adensadas.
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