Cristián Parker, sociólogo e pesquisador na Universidade do Chile[1]estudou as distintas visões de mundo de grupos indígenas, de empreendedores econômicos, de movimentos ecologistas, bem como os conflitos entre vários atores sociais envolvendo a água e os recursos da natureza na América do Sul. Parker relaciona os diversos discursos éticos, tais como o que propõe o crescimento utilitarista; o que propõe uma ética reguladora para minimizar os impactos ambientais e sociais dos empreendimentos extrativistas e destaca a responsabilidade social das empresas. Há, ainda, o discurso que propõe o desenvolvimento sustentável, com as empresas reguladas pelo estado. Há também o discurso da ética ecológica, que favorece uma mudança completa no modo de produção e nos grandes investimentos em mineração e energia e que coloca as questões da água, dos ecossistemas e populações locais como prioridades que prevalecem sobre o crescimento econômico. As pessoas locais tornam-se os atores principais, em comparação com a prioridade que os investidores recebem em projetos convencionais.” E, por fim, há a ética autóctone dos povos indígenas, que formulam um discurso baseado na defesa de seus territórios e se opõem aos megaprojetos elétricos e de mineração e seus impactos sociais, culturais e ambientais. Seus argumentos estão relacionados ao seu próprio caráter e identidade. As tradições ancestrais têm um lugar importante. No entanto, na maioria das vezes, as manifestações explícitas de sua fala são associadas aos direitos modernos, deixando implícita sua sabedoria, sua cosmovisão e sua visão ética da natureza como pano de fundo.”
Cada cosmovisão enfatiza e valoriza aspectos distintos: a
ética do crescimento, utilitária, busca o aumento do bem estar material e a
água é um recurso para tanto; a ética da regulamentação acredita que é possível
ao mesmo tempo usar com eficiência e gerar riqueza material; a ética do
desenvolvimento sustentável enfatiza a luta contra a pobreza como o objetivo do
uso da água; a ética ecológica coloca as populações locais como atores mais
valorizados diante das grandes empresas e corporações que querem fazer uso da
água para gerar crescimento econômico, muitas vezes em benefício próprio, internalizando lucros e
externalizando custos. A ética autóctone coloca em primeiro plano a defesa do
território e de seus lugares sagrados e apenas secundariamente a busca do
crescimento econômico e do bem-estar material. Essas diferentes cosmovisões
mantêm relações distintas entre si: algumas têm afinidades; outras expressam
oposições radicais. Algumas abordagens enfatizam os valores de troca, outras, o
valor de uso e o valor simbólico. Para um tipo de discurso “o que interessa é o
valor de troca do negócio mineral no mercado global de metais e minerais (os
recursos a serem utilizados)”; para outro discurso “o valor simbólico do
território é primordial, pois está associado à identidade, aos ancestrais, à
vida da comunidade, ao ambiente compartilhado e à vida espiritual (o patrimônio
a ser protegido).” Parker contrasta numa tabela os elementos de duas dessas
éticas e discursos.
TABELA: ÉTICAS E DISCURSOS CONFRONTADOS
As relações humanos/não humanos
Categorias VISÃO AUTÓCTONE VISÃO DO MERCADO
Totalidade Holismo
Dualismo Cartesiano
Racionalidade Englobante/Princípio da Reciprocidade Racionalismo / Positivismo
Sujeito/Objeto Cosmo
coabitado Dualismo Sujeito-Objeto
Matéria Ser
vivo: energias e espíritos Natureza morta: sítio inerte /rochas
Moral Ambivalência Moral Dualismo moral, o bem e o
mal
Seres superiores Multiplicidade dos Espíritos Monoteísmo
Fonte: Parker
Parker constata que “Como parte do processo de
desenvolvimento, as políticas de extrativismo na América Latina geralmente não
respeitam o meio ambiente. Os atores que se confrontam no terreno brandem
discursos econômicos, ideológicos ou éticos. Foi bem analisado que os modos de
vida indígenas se opõem às forças das indústrias extrativas, empresas globais
que consideram as terras indígenas estritamente como recursos (Martinez,
2015).” Têm-se intensificado megaprojetos extrativistas que provocam impactos
ambientais e conflitos sociais, capitaneados por grandes corporações sob
governos de qualquer matiz ideológico.
Ele constata ainda que “Nos últimos tempos, os discursos
ecológicos dos povos indígenas, identidades locais e regionais se
multiplicaram; são demandas e mobilizações pela justiça social e ambiental e
pelo emprego. Essa virada em direção ao território e à ecologia converge para
uma linguagem comum que ilustra a inovadora interseção entre o discurso da
comunidade indígena e o discurso ambiental (Svampa, 2013).”
Ele propõe “enfatizar a importância da visão de mundo
indígena, que tem uma ética de participação com a natureza que se opõe à
mercantilização da terra e do território. Ética que se baseia no valor
simbólico do bem comum e não no seu valor de mercado ou valor de uso.” E ainda:
“O discurso autóctone é um discurso ético que promove o respeito pela vida e
pela natureza. O pensamento cosmológico dos povos indígenas mostra uma atitude
ética em relação à vida, baseada no respeito por ela e em harmonia com a
sacralidade da natureza, como uma peculiaridade específica de sua consciência
planetária.”
Parker conclui que “Num tempo em que os sintomas visíveis
das alterações climáticas têm se intensificado, vemos um confronto mais agudo,
às vezes subterrâneo e imperceptível, às vezes em conflito aberto, de dois
polos de éticas planetárias fundamentais: uma ética utilitarista de explotação
e uma ética ecológica, entre as quais há na verdade uma gama de posições. De
fato, no pensamento racionalista e colonialista ocidental, a natureza é
considerada um objeto sujeitado à exploração (incluindo aí aqueles humanos
considerados inferiores). Essa é a lógica da acumulação capitalista imediata,
acentuada pela ética da sociedade pós-industrial no contexto do modelo
neoliberal da globalização recente. Por outro lado, as injustiças sociais e a
proteção do meio ambiente e do ecologismo trazem à luz questões de
desigualdades ecológicas e, portanto, de justiça e equidade intergeracional,
social e geográfica. No centro deste confronto global, a ética indígena que
resiste à mercantilização dos territórios, como apresentamos, acentua uma
dimensão da relação humanidade-natureza que está próxima de certas éticas
ecológicas, como a proposta, entre outros, por Pierre Dansereau.”
A emergência climática atual clama pela ética ecológica e
leva a revalorizar a ética indígena e sua cosmovisão. Diferentes cosmovisões influenciam diferentes atitudes e
comportamentos diante da água. Aqueles povos indígenas que a sacralizam e a
veneram tendem a zelar por sua qualidade.
Um bom relacionamento com as águas se inicia com a cosmovisão. Mas isso
não é suficiente, pois grupos econômicos que têm interesses pragmáticos
privilegiam os aspectos utilitários do uso e abuso da água. Assim, os rios
sagrados indianos, o Yamuna e o Ganges, nos quais se banham milhões de pessoas
durante festivais religiosos, atualmente encontram-se gravemente poluídos e
colocam riscos à saúde humana.
Os valores
ligados à valorização da vida humana, tais como a solidariedade e a
sustentabilidade são uma força poderosa para induzir mudança de comportamentos
em relação à água. A postura
ética no relacionamento com a água é um diferencial que leva a atitudes como
não a desperdiçar, a usá-la com parcimônia, proteger suas reservas, cuidar de
sua distribuição com justiça social, sacralizá-la.
[1] Parker, Cristián - Les acteurs
sociaux et les éthiques écologiques dans le conflit extractif: l’éthique
autochtone sud-américaine, pgs 173-188, Atores sociais e ética ecológica no
conflito extrativista: ética indígena sul-americana (publicado em francês no
livro L’espoir malgré tout – L’oeuvre de Pierre Dansereau et l’avenir des
sciences de l’environnement, Normand Brunet, Paulo Freire Vieira, Marie Saint –
Arnaud, René Audet, Presses de l’Université du Québec, 20170
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