quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

HIDROÉTICA

 


 “A água é o que somos em nós mesmos. Nós e a água não somos dois processos diferentes; nós somos a água e a água somos nós.”

                Adaptação de frase de J. Krishnamurti

A consciência de que integramos a natureza ajuda a produzir comportamentos mais amigáveis e menos agressivos em relação a ela. Os cuidados com a água em nosso corpo e com o ambiente interno ao organismo correspondem aos cuidados necessários com a água no ambiente externo.

O utilitarismo subestima o valor dos serviços ambientais prestados gratuitamente pela natureza, tais como a regulação do clima, a produção de água e outros processos fundamentais para sustentar a vida. Manter ecossistemas intocados, espaços protegidos, templos naturais conservados é visto como uma absurda renúncia ao desenvolvimento econômico e ao usufruto das riquezas naturais, a renúncia do ser humano à felicidade e ao conforto material. Nas artes, a postura utilitarista que coisifica a natureza levou a se associar a beleza à utilidade e a defender que o útil é o belo.

A perspectiva utilitarista confronta-se com limites éticos.  O bom nem sempre é o útil, apontou o sábio indiano Sri Aurobindo: “Há somente uma regra segura para o homem ético, alinhar-se ao seu princípio do bem, seu instinto do bem, sua visão do bem, sua intuição do bem, e governar assim sua conduta. Ele pode errar, mas estará no seu caminho, a despeito de todos os tropeços, porque será fiel à lei de sua natureza. A lei da natureza do ser ético é a busca do bem; não pode nunca ser a busca de utilidade.”

Nessa perspectiva crítica se coloca o Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais – MAUSS que questiona a abordagem de considerar a natureza como objeto a serviço do ser humano. O MAUSS advoga uma relação contemplativa e uma ética do não consumo.

A ética utilitária busca o crescimento econômico e o bem-estar material; já a ética autóctone defende seus lugares sagrados e apenas secundariamente busca o crescimento econômico. Numa cosmovisão, a água é um recurso econômico; noutra, ela é um patrimônio ecológico e espiritual.

O grande desafio para implementar uma política de águas é ético e espiritual: evoluir de uma relação agressiva e utilitarista para uma postura amigável, de cuidado e de reverência para com ela.  Dessa questão derivam os demais desafios gerenciais, administrativos e políticos. A promoção da sua gestão sustentável depende da superação de atitudes, hábitos e comportamentos que levam ao seu desperdício. Nesse contexto, cabe desaprender conceitos e visões de mundo, descondicionar a consciência de seu viés utilitarista e fortalecer o valor da proteção e da frugalidade.  

Em fóruns e encontros internacionais há frequentes apelos pela ética nas relações com a natureza e com a água, a exemplo do documento final do G20 social, ocorrido no Rio de Janeiro em 2024, no qual se cobra: “É uma exigência ética que os líderes mundiais assumam um compromisso firme com a redução das emissões de gases de efeito estufa e do desmatamento, bem como a proteção dos oceanos, condições essenciais para limitar o aquecimento global a 1,5oC e evitar danos irreversíveis ao planeta.”[1]

A ética na relação com as águas vai além de uma perspectiva utilitária ou técnica; ela requer uma abordagem holística que envolva justiça, respeito e responsabilidade. Incorporar esses princípios é essencial para garantir que as águas continuem sustentando a vida, as culturas e os ecossistemas, hoje e no futuro. A ética é fundamental para orientar nossa relação com as águas, dado o papel essencial que elas desempenham para a vida, o meio ambiente e as culturas humanas. Incorporar uma ética das águas significa adotar princípios e práticas que promovam o respeito, a sustentabilidade e a justiça no uso e na gestão dos recursos hídricos.

Uma postura ética reconhece que a água não deve ser vista apenas como um recurso utilitário, mas como um elemento vital com valor intrínseco. Exige que respeitemos a água como uma parte essencial dos ecossistemas e da biosfera, não apenas como algo para consumo humano. Nessa perspectiva, adotam-se leis e políticas que reconheçam direitos próprios aos corpos d'água, como o caso do rio Whanganui na Nova Zelândia, reconhecido como entidade jurídica.

Uma postura ética traz a garantia de que a água é um direito humano fundamental, e nenhuma pessoa deve ser privada de acesso à água potável e ao saneamento básico. Ela requer o combate à desigualdade no acesso à água, priorizando as necessidades das populações mais vulneráveis. Para tanto, podem-se criar políticas públicas que assegurem o abastecimento de água para comunidades marginalizadas e reduzir a privatização que restringe o acesso.

A ética orienta o uso consciente das águas, evitando desperdícios e poluição que comprometam as necessidades futuras, respeitando os limites ecológicos e trabalhando para preservar o ciclo hidrológico e os habitats aquáticos. Para que isso aconteça, podem-se implementar tecnologias de reaproveitamento de água, proteger mananciais e adotar práticas agrícolas menos intensivas em uso de água.

A ética das águas exige responsabilidade com as gerações futuras, para que elas também possam usufruir desse recurso essencial. Isso implica adotar práticas de gestão que não esgotem ou degradem os recursos hídricos.

Muitas culturas, especialmente povos indígenas e comunidades tradicionais, têm relações simbólicas e espirituais profundas com a água. A ética exige que esses saberes sejam respeitados e integrados na gestão hídrica. Para facilitar que isso aconteça, pode-se incluir lideranças indígenas e ribeirinhas em processos de decisão sobre a preservação de rios e outros corpos d’água.

A ética das águas reconhece que sua gestão é uma responsabilidade compartilhada entre governos, empresas, comunidades e indivíduos. Promove a participação ativa das comunidades nas decisões sobre uso e proteção das águas. Para tanto, pode-se estabelecer sistemas e processos participativos para a gestão das águas.

A ética exige que aqueles que causam danos aos corpos d'água sejam responsabilizados e promovam a restauração dos ecossistemas afetados. Isso inclui o combate à poluição e a reparação de áreas degradadas. Isso implica regulamentar o descarte de resíduos e criar incentivos para a recuperação de rios e lagos poluídos.

A ética das águas inclui a promoção da educação ambiental para sensibilizar sobre a importância da água e inspirar práticas mais responsáveis. Educar as pessoas para perceberem a interdependência entre humanos e o ciclo da água é essencial. Para tanto, pode-se incorporar temas relacionados à ética hídrica em currículos escolares e campanhas públicas.



[1] Documento final do G20 social, Sustentabilidade, mudanças do clima e transição justa, Rio de Janeiro, 2024.

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