“A água é o que somos em nós mesmos. Nós e a
água não somos dois processos diferentes; nós somos a água e a água somos nós.”
Adaptação de frase de J.
Krishnamurti
A consciência de que integramos a natureza ajuda a produzir
comportamentos mais amigáveis e menos agressivos em relação a ela. Os cuidados
com a água em nosso corpo e com o ambiente interno ao organismo correspondem
aos cuidados necessários com a água no ambiente externo.
O utilitarismo subestima o valor dos serviços
ambientais prestados gratuitamente pela natureza, tais como a regulação do
clima, a produção de água e outros processos fundamentais para sustentar a
vida. Manter
ecossistemas intocados, espaços protegidos, templos naturais conservados é
visto como uma absurda renúncia ao desenvolvimento econômico e ao usufruto das
riquezas naturais, a renúncia do ser humano à felicidade e ao conforto
material. Nas artes, a postura utilitarista que coisifica a natureza levou a se
associar a beleza à utilidade e a defender que o útil é o belo.
A
perspectiva utilitarista confronta-se com limites éticos. O bom nem
sempre é o útil, apontou o sábio indiano Sri Aurobindo: “Há somente uma regra
segura para o homem ético, alinhar-se ao seu princípio do bem, seu instinto do
bem, sua visão do bem, sua intuição do bem, e governar assim sua conduta. Ele
pode errar, mas estará no seu caminho, a despeito de todos os tropeços, porque
será fiel à lei de sua natureza. A lei da natureza do ser ético é a busca do
bem; não pode nunca ser a busca de utilidade.”
Nessa perspectiva crítica se coloca o
Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais – MAUSS que questiona
a abordagem de considerar a natureza como objeto a serviço do ser humano. O MAUSS advoga uma relação
contemplativa e uma ética do não consumo.
A ética utilitária busca o crescimento econômico e o
bem-estar material; já a ética autóctone defende seus lugares sagrados e apenas
secundariamente busca o crescimento econômico. Numa cosmovisão, a água é um
recurso econômico; noutra, ela é um patrimônio ecológico e espiritual.
O grande desafio para implementar uma política de
águas é ético e espiritual: evoluir de uma relação agressiva e utilitarista
para uma postura amigável, de cuidado e de reverência para com ela. Dessa questão derivam os demais desafios
gerenciais, administrativos e políticos. A promoção da sua gestão sustentável
depende da superação de atitudes, hábitos e comportamentos que levam ao seu
desperdício. Nesse contexto, cabe desaprender conceitos e visões de mundo,
descondicionar a consciência de seu viés utilitarista e fortalecer o valor da
proteção e da frugalidade.
Em fóruns
e encontros internacionais há frequentes apelos pela ética nas relações com a
natureza e com a água, a exemplo do documento final do G20 social, ocorrido no
Rio de Janeiro em 2024, no qual se cobra: “É uma exigência ética que os líderes
mundiais assumam um compromisso firme com a redução das emissões de gases de
efeito estufa e do desmatamento, bem como a proteção dos oceanos, condições
essenciais para limitar o aquecimento global a 1,5oC e evitar danos
irreversíveis ao planeta.”[1]
A ética na relação com as águas vai além de uma perspectiva
utilitária ou técnica; ela requer uma abordagem holística que envolva justiça,
respeito e responsabilidade. Incorporar esses princípios é essencial para
garantir que as águas continuem sustentando a vida, as culturas e os
ecossistemas, hoje e no futuro. A ética é fundamental para orientar nossa
relação com as águas, dado o papel essencial que elas desempenham para a vida,
o meio ambiente e as culturas humanas. Incorporar uma ética das águas significa
adotar princípios e práticas que promovam o respeito, a sustentabilidade e a
justiça no uso e na gestão dos recursos hídricos.
Uma postura ética reconhece
que a água não deve ser vista apenas como um recurso utilitário, mas como um
elemento vital com valor intrínseco. Exige que respeitemos a água como uma
parte essencial dos ecossistemas e da biosfera, não apenas como algo para
consumo humano. Nessa perspectiva, adotam-se leis e políticas que reconheçam
direitos próprios aos corpos d'água, como o caso do rio Whanganui na Nova
Zelândia, reconhecido como entidade jurídica.
Uma postura ética traz a garantia
de que a água é um direito humano fundamental, e nenhuma pessoa deve ser
privada de acesso à água potável e ao saneamento básico. Ela requer o combate à
desigualdade no acesso à água, priorizando as necessidades das populações mais
vulneráveis. Para tanto, podem-se criar
políticas públicas que assegurem o abastecimento de água para comunidades
marginalizadas e reduzir a privatização que restringe o acesso.
A ética orienta o uso consciente das águas, evitando
desperdícios e poluição que comprometam as necessidades futuras, respeitando os
limites ecológicos e trabalhando para preservar o ciclo hidrológico e os
habitats aquáticos. Para que isso aconteça, podem-se implementar tecnologias de
reaproveitamento de água, proteger mananciais e adotar práticas agrícolas menos
intensivas em uso de água.
A ética das águas exige responsabilidade com as gerações
futuras, para que elas também possam usufruir desse recurso essencial. Isso
implica adotar práticas de gestão que não esgotem ou degradem os recursos
hídricos.
Muitas culturas, especialmente povos indígenas e comunidades
tradicionais, têm relações simbólicas e espirituais profundas com a água. A
ética exige que esses saberes sejam respeitados e integrados na gestão hídrica.
Para facilitar que isso aconteça, pode-se incluir lideranças indígenas e
ribeirinhas em processos de decisão sobre a preservação de rios e outros corpos
d’água.
A ética das águas reconhece que sua gestão é uma
responsabilidade compartilhada entre governos, empresas, comunidades e
indivíduos. Promove a participação ativa das comunidades nas decisões sobre uso
e proteção das águas. Para tanto, pode-se estabelecer sistemas e processos
participativos para a gestão das águas.
A ética exige que aqueles que causam danos aos corpos d'água
sejam responsabilizados e promovam a restauração dos ecossistemas afetados.
Isso inclui o combate à poluição e a reparação de áreas degradadas. Isso
implica regulamentar o descarte de resíduos e criar incentivos para a
recuperação de rios e lagos poluídos.
A ética das águas inclui a promoção da educação ambiental
para sensibilizar sobre a importância da água e inspirar práticas mais
responsáveis. Educar as pessoas para perceberem a interdependência entre
humanos e o ciclo da água é essencial. Para tanto, pode-se incorporar temas
relacionados à ética hídrica em currículos escolares e campanhas públicas.
[1] Documento final do G20 social, Sustentabilidade,
mudanças do clima e transição justa, Rio de Janeiro, 2024.
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