Como na fita de Moebius, no Dharma direitos e deveres recuperam sua unidade. |
Por Mauricio Andres Ribeiro
Sobre a democracia dos direitos
Herdeiro da civilização greco-romana
e da tradição judaico-cristã, o mundo ocidental inventou o Estado democrático
de direito. Os grandes impérios da matriz ocidental enfatizaram o direito: no
passado, o império romano concebeu o direito romano. Em 1789, a revolução
francesa proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, afirmando o
direito à liberdade, à igualdade, à propriedade e o direito de resistir à opressão.
Em 1948, a ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Na
história recente, o império americano se fundamenta na democracia dos direitos.
Os direitos se expandiram. Dos direitos individuais - à liberdade, à
vida, à expressão -, evoluiu-se para os direitos sociais, econômicos e
culturais – à educação e à saúde, ao trabalho e à greve. Daí se evoluiu para a
terceira geração, a dos direitos e interesses difusos, que ultrapassam a
perspectiva individual e que incluem a proteção da coletividade, da paz e da
segurança pública, do patrimônio histórico e cultural e do meio ambiente.
Estudiosos da democracia dos direitos, ao mesmo tempo em que apregoam
suas virtudes, pois seria o regime político mais avançado das sociedades
humanas, apontam suas fragilidades. O sociólogo Manuel Castells fala da
necessidade da democracia reinventar-se. O filósofo Jürgen Habermas ressalta as
tensões que permanentemente desafiam o Estado democrático de direito, entre
elas destacando-se o terrorismo do início do século XXI. A pretexto de garantir
a segurança e de combater o terrorismo, governos de países que se dizem
democráticos montaram sistemas de vigilância sobre os cidadãos e de
bisbilhotagem eletrônica que criam situações de medo, de coerção e alimentam
desconfianças. Diante das ameaças reais ou imaginárias do terrorismo, os
governos colocam em segundo plano as conquistas da democracia, como os direitos
civis, o direito individual ou o direito à privacidade.
Os diversos regimes políticos - totalitários, autocráticos, teocráticos e,
também, as democracias dos direitos - estão sob pressão das populações. Os
movimentos sociais dos últimos anos em todo o mundo explicitaram a crise de
representatividade e de confiança nos políticos e nos sistemas que os
sustentam. Expressaram descrença na política partidária. Número crescente de
cidadãos declara que ninguém os representa, não se sentem representados por
nenhum partido político. Número crescente de eleitores se ausenta e vota nulo
ou branco. A insatisfação social que eclode em várias partes reflete a
aspiração por uma humanidade com mais justiça e menos violência, o que inclui
mais justiça ambiental e menos violência contra a natureza. A insatisfação
manifestada nos movimentos sociais em vários países clama contra a corrupção e
pela transformação do sistema político. A democracia dos direitos é um sistema
que vem sendo questionado em muitos países. É preciso ter cuidado ao analisar criticamente
a democracia dos direitos e ao propor modos de aprimorá-la, para não jogar fora
a criança com a água do banho, ou seja, para não se desvalorizarem as suas boas
qualidades. Há sistemas políticos autocráticos, totalitários, despóticos, que
inibem ou reprimem a liberdade de expressão de que se desfruta em democracias.
A insatisfação social pede por relações políticas que sejam mais amplas
e generosas, ao tomarem o planeta como a principal unidade de referência.
Ecologista respeitado, James Lovelock, em seu livro “A vingança de Gaia”,
considera insuficiente a abordagem a partir dos direitos e necessidades
humanos: “Meu desejo há muito tempo é que as religiões e os humanistas
seculares se voltem para o conceito de Gaia e reconheçam que os direitos e
necessidades humanos não são suficientes.”[3](p.132). Ele afirma que “nossa tarefa
como indivíduos é pensar em Gaia primeiro. Isso não nos torna desumanos ou
indiferentes. Nossa sobrevivência como espécie depende totalmente de Gaia e de
aceitarmos sua disciplina.” (p. 137).
Experimentos de democracia participativa reduzem as distâncias entre
quem governa ou decide e cada cidadão. Audiências e consultas públicas,
plebiscitos, estruturação de órgãos colegiados com presença das partes
interessadas são instrumentos da democracia participativa. Entretanto, tais
experiências positivas sofrem quando os colegiados são capturados por lobistas
ou por atores que os influenciam em favor de interesses particularistas.
As
ênfases entre direitos e responsabilidades variam. Em algumas sociedades
enfatizam-se os direitos individuais em detrimento das responsabilidades
sociais ou coletivas. Em outras, restringem-se os direitos individuais e se
priorizam as responsabilidades coletivas. Compatibilizar a liberdade individual
com as responsabilidades coletivas demanda um delicado equilíbrio.
Sobre a Dharmacracia
Cada civilização é movida por cosmovisões, motivações, mitos e modelos
mentais próprios. As várias civilizações desenvolveram conceitos distintos a
partir dos quais orientam as diferentes formas de organização social e
política.
Enquanto direitos e deveres são conceitos criados na civilização
ocidental de matriz greco-romana e judaico-cristã, dharma é um conceito
originário da civilização indiana, na Ásia. Mais de um século atrás, em 1908,
um dos grandes sábios indianos, Sri Aurobindo, escreveu:
“Tem-se dito que a democracia baseia-se nos direitos do homem; foi
respondido que deveria basear-se nos deveres do homem; mas ambos, direitos e
deveres, são ideias europeias. Dharma é a concepção indiana em que os direitos
e deveres perdem o antagonismo artificial criado por uma visão do mundo que faz
do egoísmo a raiz da ação, e recupera a sua unidade profunda e eterna. Dharma é
a base da democracia que a Ásia deve reconhecer, pois nisso reside a distinção
entre a alma da Ásia e da alma da Europa. Por meio do dharma a evolução
asiática se realiza; este é o seu segredo.” [4]
A imagem usada por Sri Aurobindo para definir o dharma ressalta a
importância da unidade ao invés da contraposição. Direitos e deveres, que
aparentemente se opõem, na realidade constituem uma unidade, como numa fita de
Moebius, na qual um lado é a continuação do outro.
No contexto atual da crise ecológica, a proposta de Sri Aurobindo para a
Ásia pode ser estendida para todo o mundo. Não só a evolução asiática, mas a
evolução política humana mais ampla também pode se beneficiar desse conceito.
Especialmente o Brasil, que não se situa na Europa nem na Ásia, e que
recebeu forte influência das ideias europeias, poderia se beneficiar dessa
concepção do dharma. No Brasil ainda não se realizam os direitos humanos
básicos: vide os déficits no direito à educação e à saúde, a situação das
populações carcerárias, os déficits de proteção à segurança pública, a
ocorrência de trabalho escravo, entre outras. Tampouco se realizam os direitos
difusos de terceira geração: vide a falta de saneamento ambiental, as poluições
e agressões à natureza.
Do mesmo modo no Brasil se desconhecem conceitos como o do dharma. Sendo
este país uma sociedade aberta e receptiva ao novo, “antropofágica”, que sabe
deglutir e metabolizar o que vem de fora, seria valioso conhecer o que é o
dharma e aplicá-lo à vida e à política.
O conceito de dharma é fecundo no atual contexto em que se valoriza o
que é sustentável. Heinrich Zimmer[5] nota que dharma é um substantivo
proveniente da raiz do sânscrito dhr, que significa sustentar, carregar: “É a
lei, aquilo que sustenta, mantém unido ou erguido.”
Dharma tem, nesse sentido, uma relação direta com as questões da
sustentabilidade e a dharmacracia é um caminho para a democracia sustentável.
O ex-presidente indiano S. Radhakrishnan, em livro sobre a visão hindu
da vida, explora um significado similar, dizendo que “Dharma sustenta os meios
os quais prendem uma coisa e mantém sua existência. Toda forma de vida, todo
grupo de homens tem seu dharma, que é a lei do seu ser. Dharma ou virtude está
em conformidade com a verdade das coisas; adharma ou vício é a oposição disto.”[6] O cumprimento do dharma é central
numa civilização sustentável.
Outro aspecto do dharma se relaciona com a ação e a missão humanas. Isso
é enfatizado num dos textos sagrados hindus, a Bhagavad Gita, parte integrante
do épico Mahabharata (Grande Índia). Ali se mostra como Krishna, a divindade,
estimula Arjuna, o guerreiro, a lutar e a assumir seu próprio dharma:
“Lembra-te que é melhor cumprir a própria tarefa, ainda que seja humilde
e insignificante, do que querer fazer a tarefa de um outro, por mais nobre e
excelente que seja.”[7]
No campo da ação, há uma relação do dharma com o conceito de carma (ou
karma). Carma é a lei da causa e efeito aplicada à vida. Mais cedo ou mais
tarde boas ações produzem circunstâncias positivas na vida de quem as pratica,
enquanto as más ações produzem sofrimento para quem as realiza. Dayananda
observa que “De acordo com o dharma, a ação humana tem um resultado invisível
bem como um resultado imediato e tangível. O resultado invisível da ação
soma-se de forma sutil na conta do ‘fazedor da ação’ e, com o tempo,
frutificará, tangivelmente, para ele como uma experiência ‘boa’ ou ‘má’ - algo
prazeroso ou doloroso.”[8] Para ele, uma boa ação frutifica
como prazer e uma má ação frutifica como dor ou sofrimento. Traduzindo tais
ideias em uma linguagem contemporânea, é como se cada indivíduo tivesse uma
conta ou cartão de crédito cármico, um “credicarma”, com seus créditos e
débitos, que se acumulam e que são pagos ou resgatados, cedo ou tarde,
imediatamente, nos médio e longo prazos. Ao cumprir seu dharma, o indivíduo liquida
o débito do carma passado e obtém um crédito para se libertar.
Na Bhagavad Gita, recomenda-se que as ações sejam realizadas
desinteressadamente. Sri Ramakrishna esclarece: “Quando a Gita pede para
realizarmos nossas ações sem qualquer pensamento sobre o resultado, não espera
que eliminemos todos os motivos como tais, mas que eliminemos todos os motivos
mundanos e que tenhamos o desenvolvimento de nossa natureza espiritual como o
único motivo para nossas ações”. [9]
Ao cumprir a tarefa que lhe cabe, o indivíduo ou a sociedade aceitam sua
missão e reconhecem aquilo para o que foram destinados. Todo indivíduo tem um
dharma próprio, exigido pelas circunstâncias de sua vida - positivas ou
negativas - em que ele é compulsoriamente colocado pelo destino para que
equilibre ações passadas.
O mestre Swami Dayananda esclarece a importância do autoconhecimento e
da autoconsciência, bem como a relevância da ação bem realizada: “Como não há
um certo absoluto e nem um errado absoluto nesse mundo relativo, o senso de
dharma tem que crescer dentro de cada um. Uma pessoa que entende o dharma pode
decidir sobre uma ação apropriada a qualquer situação, assim como o bom
motorista sabe como comportar-se em qualquer nova situação do tráfego. [...] O
dharma é a justiça ideal que se fez vida; a virtude é medida pela perfeição
atingida por cada um no exercício do seu papel”.[10]
Na história das culturas, a consciência humana já foi predominantemente
mítica, mágica, baseada na crença em leis divinas, teocrática. A partir de
certo momento, baseou-se no logos, na razão, tipo de consciência que exige a
capacidade de um indivíduo observar o mundo e observar-se a si próprio. Ele se
compreende por meio do autoconhecimento: toma consciência de si mesmo, tem
consciência do próprio dharma, ou de seu papel no palco da história. Quem sabe
o seu dharma torna-se autoconsciente, conhece as ações que lhe cabe realizar
nesta vida e procura exercê-las virtuosamente.
A dharmacracia pode ser vista como uma meta que evolui a partir do
patamar alcançado pela democracia dos direitos. Dharmacratizar a política é um
modo proativo, voltado para a frente e para o alto, de responder às
insatisfações sociais quanto à democracia dos direitos, direcionar os governos
para aspirações coletivas, afastar os cleptocratas, reduzir a corrupção e seus
danos. Numa dharmacracia, a ética ecológica é internalizada como parte
integrante da política e os governantes se pautam por ela.
Há um caminho a percorrer para se evoluir das cleptocracias e das
democracias dos direitos para a dharmacracia. Isso pode ser realizado com as
práticas individuais, de baixo para cima (Seja a mudança que você quer ver no
mundo, dizia Gandhi). Isso também pode ser realizado por meio das construções
políticas globais, de cima para baixo.
Esses podem ser caminhos na transição da democracia dos direitos,
representativa ou participativa, em crise, para a dharmacracia. Isso inclui ir
além e evoluir dos direitos para o dharma. Especialmente nos temas da
governança global e colocando Gaia em primeiro lugar, seria promissora a adoção
do dharma como princípio norteador da ação política e da ação ecológica.
1-DIAMOND,
Jared - Guns, Germs and Steel, the fates of human societies, W.W. Norton
&company Ltd., NY 1997, pág .288.
4-SRI AUROBINDO Complete Works,
vol.1, p.759. [4] Sri Aurobindo foi um ativista político que participou da luta
pela independência da Índia, foi preso, depois passou a dedicar-se a questões
globais e da evolução humana. AUROBINDO, Sri. Complete works, v.1, p.759.
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.51.
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