quarta-feira, 15 de junho de 2016

Redução de desigualdades depende de fraternidade





Na relação de nossa espécie com a natureza houve numerosas interações que resultaram em domesticação de espécies.  O arroz, o feijão, o milho, a mandioca, o trigo, entre outras espécies vegetais, foram domesticadas e cultivadas na agricultura. O cão, o gato, o boi, a ovelha, as galinhas, entre outras espécies animais, foram domesticadas e convivem com nossa espécie em grande proximidade.
Do mesmo modo, as águas são um elemento do ambiente natural que foi controlado em represas, reservatórios, diques e dutos, tendo sido colocada a nosso serviço para gerar energia, abastecer cidades e para finalidades múltiplas.
O dinheiro é uma criação humana com grande força e capacidade de provocar transformações, construtivas ou destrutivas. Os fluxos de capitais que circulam pelo mundo são capazes de provocar impactos e consequências benéficos ou maléficos. O capitalismo selvagem é um modo de se relacionar com o dinheiro que não controla os seus impactos destrutivos e predatórios.
Do mesmo modo como se domesticaram animais, vegetais e águas, também o dinheiro pode ser domesticado, controlado ou ecologizado, reduzindo-se os impactos destrutivos de sua circulação desenfreada.
Há obstáculos e dificuldades para controlar a energia do dinheiro, especialmente porque fortes detentores do capital resistem à sua regulação e controle, pois se beneficiam de liberdade na sua alocação. Isso tem levado a um aumento das desigualdades econômicas tanto em escala global como de países e regiões. É inviável a redução das desigualdades caso não se pratique a fraternidade. A evolução humana fraternal vai bem além da evolução liberal.
Sobre isso já observou o poeta mexicano Octavio Paz: “Dadas as diferenças naturais entre os seres humanos, a igualdade é uma aspiração ética que não pode ser concretizada sem se recorrer ao despotismo ou a um ato de fraternidade. Minha liberdade fatalmente se confronta com a liberdade do outro e procura destruí-la. A única ponte capaz de reconciliar essas duas irmãs que continuamente se atacam de faca é uma ponte feita de braços interligados: a fraternidade. ” Do mesmo modo o pensador indiano Sri Aurobindo observou que:
"a fraternidade é a chave para o triplo evangelho da ideia de ‘humanidade’. A união de liberdade com igualdade só pode ser alcançada pelo poder da fraternidade humana e não pode ser fundada em qualquer outra coisa".
Atualmente surge entre os investidores e capitalistas engajados um sentimento que vai além dos motivos de obtenção de lucro com suas aplicações financeiras. Tais tipos de investidores lutam também por mais responsabilidade social e ecológica em empresas. São motivados por sentimentos de fraternidade e solidariedade para com os demais stakeholders, ou partes interessadas na atuação de uma empresa e que usualmente são deixadas em segundo plano. Tais acionistas engajados podem induzir a uma necessária e desejável ecologização do capital.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Água e cidades: as lições de Fatehpur Sikri para Brasília



 O imponente complexo de edifícios públicos, palácios, monumentos e templos foi planejado e construído, num curto período de tempo, para ser a capital e a sede do governo. Esse conjunto, de onde se aprecia um céu esplendoroso e um belo pôr do sol, tornou-se patrimônio arquitetônico da humanidade, protegido pela UNESCO.
Essa descrição, que poderia se aplicar a Brasília, refere-se a Fatehpur Sikri, no Rajastão. A cidade funcionou como capital durante apenas 10 anos. Foi abandonada  devido a uma mudança climática e seca na região, que fez desaparecer a água para abastecê-la. É uma cidade fantasma, local de visitação turística e pesquisa arqueológica, construída na Índia para ser a capital do império mogul pelo imperador Akbar, entre 1571 e 1585.  


 Fotos de Fatehpur Sikri, Índia. Maurício Andrés, 2013.

O destino de Fatehpur Sikri no século XVI traz lições para o século XXI. A falta de planejamento hídrico pode inviabilizar cidades, regiões ou países. As limitações na disponibilidade e no abastecimento de água se tornaram fator de restrição ao crescimento demográfico e ao desenvolvimento econômico em muitas regiões do planeta. Restrições hídricas impõem  limites máximos de população e de atividades humanas.
Novas cidades, bairros, condomínios ou assentamentos precisam ser hidroconscientes desde o momento da concepção do projeto e durante cada etapa de sua implementação. Dispor de conhecimentos específicos sobre o local em que serão implantados é pré-requisito para se elaborar projetos e normas urbanísticas conscientes e responsáveis, invertendo o processo, ecológica e hidricamente temerário,  pelo qual primeiro se executa um empreendimento  para depois constatar seus problemas e definir como resolvê-los.
Um assentamento  humano que perdure ao longo do tempo precisa ser hidroconsciente; saber qual é  a disponibilidade de água de superfície para abastecê-lo; estimar o volume que os aqüíferos locais podem produzir. Proteger nascentes e cuidar do uso do solo. Definir como será  feita a gestão das águas usadas e seu tratamento, bem como as questões de drenagem, escoamento de águas superficiais e recarga de águas subterrâneas. Avaliar também os fatores macro regionais,  tais como os rios voadores e as perspectivas de pluviosidade e da água em estado meteórico.
Na região do planalto central, o desenvolvimento urbano precisa levar em consideração esses limites. A lição de Fatehpur Sikri pode ser valiosa para Brasília.


Fotos de Brasília. Maurício Andrés 2014.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Carnivorismo




 
Cadeias alimentares são as transferências de energia alimentar desde os produtores básicos – as plantas –, para os animais herbívoros – consumidores primários –, até os animais carnívoros que se alimentam dos herbívoros ou de outros carnívoros. A cada degrau que se sobe na cadeia  trófica, há perdas de energia. As plantas absorvem e metabolizam cerca de 1% da energia solar que sobre elas incidem. Os animais  herbívoros aproveitam cerca de 10% da energia contida nos vegetais.  Os animais carnívoros ou os seres humanos que se alimentam de carne  de animais aproveitam apenas 10% da energia que eles absorveram dos vegetais.

O homem está entre as espécies que absorvem energia de vários elos da cadeia alimentar e tem uma diversidade de dietas alimentares, em função do ambiente em que vivem de seus hábitos culturais, de seus valores  espirituais ou religiosos. Há seres humanos onívoros, carnívoros, frutívoros, vegetarianos, veganos etc e uma combinação deles. O carnivorismo é o habito sistemático de comer carne e a defesa de tal hábito. O carnivorismo se espalha pelo mundo de modo diferenciado. No Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Austrália, nos EUA e no Canadá se come mais de 30 kg per capita de carne bovina por ano. À medida que aumenta a renda média,  tende a aumentar o consumo per capita de carne, o que é ainda estimulado por campanhas de propaganda do carnivorismo nas TVs, nos jornais, em revistas e na internet.
 A dieta alimentar baseada em proteínas animais, quando comparada a dietas baseadas em grãos, hortaliças e proteína vegetal, tem elevado custo energético e sua produtividade energética é baixa. A  demanda por alimentos que se encontram no alto da cadeia alimentar – constituídos pelos produtos de origem animal – consome grande quantidade de terra, água, recursos naturais e defensivos agrícolas; motiva os fazendeiros a expandir as áreas destinadas a pastagens, provoca a destruição de florestas e perdas de solo fértil. Os impactos ambientais de uma dieta carnívora são maiores do que os de uma dieta baseada em produtos vegetais.

No Brasil, pressão sobre as florestas e desmatamento decorrem do plantio de soja para alimentar animais na China ou da pecuária para exportar carne ou abastecer o mercado interno.
Várias sociedades regularam suas dietas como estratégia para não romper a capacidade de suporte do seu território e reduzir os riscos de colapso. A Índia é uma das mais conhecidas, com o vegetarianismo e a sacralização dos animais. Diamond (2005, p. 356) relata o caso da ilha de Tikopia, no Pacífico Sul, com 4,7km2 e densidade de 309 pessoas por quilômetro quadrado, continuamente habitada há quase três mil anos. Uma das estratégias para garantir a capacidade de sustentação do ambiente foi a mudança de hábitos alimentares, eliminando aqueles que implicam competição pelo uso da terra:
Uma decisão significativa tomada conscientemente por volta de 1.600 d.C, e registrada pela tradição oral, mas também atestada arqueologicamente, foi a matança de todos os porcos da ilha, substituídos como fonte de proteína pelo aumento do consumo de peixe, moluscos e tartarugas.
Tikopia e a India são exemplos de sociedades que superaram o carnivorismo ao constatarem os benefícios sociais que essas mudanças de hábitos alimentares trariam. Aquilo que a Índia estruturou há milênios e o que os ilhéus de Tikopia decidiram há algumas centenas de anos, pode ser uma decisão sábia de ser adotada globalmente no contexto das mudanças climáticas e da atual crise da evolução. Uma das vozes que defende esse caminho é Lovelock (Gaia-Alerta final, pg. 80) que observa 
“Nossos líderes, se fossem todos excelentes e poderosos poderiam proibir a manutenção de animais de estimação e gado, tornar compulsória a dieta vegetariana e incentivar um grande programa de síntese de alimentos por indústrias químicas e bioquímicas; fazer isso apenas restringirá a perda de vida a animais de estimação e gado. É alentador que o presidente do IPCC, Dr. Pachauri, tenha recomendado uma dieta vegetariana como um caminho a seguir.”
Atualmente cresce a consciência e os alertas sobre esse tema. O biólogo Erlich (1999, p. 10) afirma que “a capacidade de suporte do planeta seria aumentada se todos se tornassem predominantemente vegetarianos”. O professor E. O. Wilson, de Harvard,  em seu livro “O Futuro da vida” expressa as vantagens de renunciar ao consumo de carne: "Se todos aceitassem uma dieta vegetariana, o atual 1,4 bilhão de hectares de terras aráveis seria suficiente para produzir alimentos para 10 bilhões de pessoas." O vegetarianismo poupa espaço, recursos naturais e o meio ambiente, conseguindo, com baixo uso de recursos naturais, um alto rendimento energético alimentar.
A mudança de dieta alimentar é um processo cultural e encontra resistências em hábitos arraigados. O prazer da mesa é um aspecto sensorial que produz apego e constitui um obstáculo à aceitação de argumentos racionais, como os baseados na ecologia energética, nas perdas de energia que ocorrem nas cadeias alimentares, nos impactos ambientais devastadores associados ao consumo de carnes.
No contexto da crise alimentar, climática, ecológica e hídrica, hábitos alimentares de baixo consumo de proteína animal podem facilitar o acesso da população humana  a alimentos e ao mesmo tempo não pressionarem excessivamente a capacidade de suporte do planeta. Superar o carnivorismo é um passo  em direção à sustentabilidade no planeta. A mega crise da evolução atual, da qual as mudanças climáticas são um dos aspectos, clama por evolução da consciência humana que induza a mudanças de hábitos tão básicos e elementares como o de se alimentar.
Quando grandes empresas produtoras  de alimentos passam a disputar o mercado  de hamburguer vegetal e de produtos de origem vegetal, isso é um sinal da força dos consumidores cuja tendência de adotar dietas menos baseadas em carne induz o mercado a oferecer novos produtos. Adeus carnivorismo!, parecem sinalizar parte dos consumidores  responsáveis por sua própria saúde, pela saúde do ambiente e  que demonstram ter compaixão para com os animais.
Duas paginas de propaganda de hamburguer vegetal publicadas por empresas concorrentes em O Globo em 6-8-2019