terça-feira, 5 de julho de 2016

Ecologizar o vocabulário e a língua


 
         Os principais dicionários da língua portuguesa editados no Brasil não oferecem definições atualizadas sobre as ciências ecológicas. Os dicionários Houaiss e o Aurélio focam seu significado na biologia. O Caldas–Aulete menciona a ecologia humana, a ecologia vegetal, a ecologia cultural.
Desde seus primórdios no século XIX o conceito de ecologia extrapolou suas origens nas ciências biológicas e enveredou pelos domínios das ciências humanas e sociais. A Ecologia diferenciou-se em vários e novos campos de atividade, que se reúnem num conceito de Ecologia Integral, que inclui a ecologia do ser, a ecologia social e a ecologia ambiental. Destacam-se, entre outros, os campos da ecologia política, social, humana, cultural, energética, cósmica, pessoal, humana ou do ser; a agroecologia, ecologia urbana, rural, industrial. Por serem recentes e conhecidos, quando muito, pelos especialistas, esses termos ainda não foram captados por aqueles que dicionarizam as novas palavras que circulam em nossa língua.
A abordagem linguística da ecologia precisa abrir-se às suas múltiplas facetas, da cósmica à energética, da cultural à psicológica, penetrar nos domínios da ecologia do ser, integrando ao campo a Psicologia, os processos cognitivos e emocionais bem como outras Ciências Humanas como a Educação, a Antropologia e a Filosofia. Ainda falta realizar um trabalho de integração, de forma que a visão mais abrangente das ecologias seja colocada à disposição do leitor de língua portuguesa. A pobreza conceitual das ciências ecológicas em português pode ser comprovada nas pesquisas nos sítios de buscas na Internet, que costumam mostrar riqueza de conceitos em inglês ou em espanhol.
Nossa sociedade dá mais valor à economia do que à ecologia e isso se reflete na profundidade e grau de atenção e detalhe com que define economia, em comparação com a ecologia.
Comparativamente, no Aurélio, o significado de economia é mais preciso; no Houaiss o vocábulo economia merece definições muito detalhadas (economia de escala, de guerra, de mercado, de palitos, dirigida, doméstica, fechada, informal, invisível, linguística, mista, política, popular, processual). O valor que se dá à economia, em contraste com o que se dá à ecologia, é refletido no modo como essas palavras e conceitos são dicionarizados.  Trata-se de uma valoração perigosa, como adverte Viveret: “Em grego, de fato, oikos nomos significa a organização, a lei, a ordem da casa. A função da economia, portanto, seria cuidar de nossas pequenas casas, aquelas que só podem perseverar em suas atividades se a teoria da grande casa – nosso planeta ou nossa biosfera – for capaz de abrigá-las. Ao mesmo tempo, é igualmente legítimo que a teoria da grande casa, oikos logos, ou, dito de outra maneira, a ecologia, seja a teoria primordial, da qual a oikos nomos constitui um dos pontos de aplicação. Assim, qualquer inversão que faça da ecologia o complemento anímico simpático-marginal da economia será propriamente suicida para a humanidade”. (Reconsiderar a riqueza, Pág. 14).
        Quanto maior é o valor que uma sociedade confere a um tema, mais detalhadas e precisas são as palavras que o definem. Assim, por exemplo, os esquimós usam inúmeras palavras para designar o branco e suas nuances, o que é vital para sua sobrevivência num ambiente gelado e nevado. Do mesmo modo, há muito mais palavras em sânscrito para designar as questões subjetivas se comparadas com as línguas grega ou inglesa, o que indica a sofisticação e profundidade dos conceitos psicológicos e subjetivos na psicologia yogue: “Para cada conceito psicológico em inglês há quatro em grego e quarenta em sânscrito.” observa A.K. Coomaraswamy.[1]
        É difícil tornar parte da cultura de uma sociedade aquilo que não está escrito e não pode ser lido. Assim, é necessário, para o aprimoramento cultural, ampliar o vocabulário e tornar disponíveis palavras que possam ser lidas, compreendidas e que exprimam a riqueza e diversidade de ideias, a noodiversidade.    
Os grandes dicionários tornaram-se lentos em incorporar conceitos emergentes de grande importância no mundo contemporâneo. Tornam-se rapidamente obsoletos, incompletos, ultrapassados. Dicionarizar as ecologias e ecologizar os dicionários são necessários para que eles continuem a ter alguma importância no futuro. Caso não sejam capazes de se atualizar com agilidade, serão superados pelos mecanismos de busca na internet e pela Wikipédia, uma construção coletiva que abrange um vasto campo de vocábulos cujo significado e definições são aprimorados incrementalmente por milhares de pessoas. Usada com cuidado para não induzir a erros, a Wikipedia é muito útil para o grande público que precisa se inteirar do be a bá sobre todos os assuntos.
  À medida que se aprimorar a qualidade do conteúdo que disponibiliza, sua importância como difusora de conhecimentos só tende a crescer.


[1] Citado por RUSSELL, Peter. Acordando em Tempo – encontrando a paz interior em tempos de mudança acelerada. São Paulo: WHH, Antakarana, 2006.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Vozes ecológicas pela federação planetária



O que pensam que sou e o que realmente sou


Durante a Conferência de Estocolmo sobre o meio ambiente humano, em 1972, Josué de Castro, autor de Geografia da Fome, sugeriu que os delegados nacionais ali presentes deveriam trabalhar pela criação de instituições globais, que se originariam da delegação parcial de soberania dos estados-nação. Sua proposta baseava-se na ideia de que a biosfera só pode ser protegida por algum tipo de lei mundial. 
Josué de Castro
Várias décadas se passaram desde então e nesse período as questões ambientais e climáticas deixaram de ser periféricas. No século XXI, a crise ecológica é uma realidade evidente, que agrega um forte motivo para se caminhar na direção de unidade política capaz de dar respostas a desafios ambientais que ultrapassam fronteiras nacionais.
Fritjof Capra, em O Ponto de Mutação (p.389) escreveu que: “Durante a segunda metade do século XX, tornou-se cada vez mais evidente que a Nação-Estado já não é viável como unidade eficaz de governo. É grande demais para os problemas de suas populações locais e, ao mesmo tempo, confinada por conceitos excessivamente estreitos para os problemas de interdependência global. Os governos nacionais altamente centralizados de hoje não são capazes de atuar localmente nem de pensar globalmente.[1]                                                
Edgar Morin
Edgar Morin nos lembra, em O grande projeto: “É necessário abandonar o humanismo que faz do homem o único sujeito num universo de objetos e lhe propõe como ideal a conquista do mundo. Esse humanismo pode fazer do homem um Gengis Khan do sistema solar e conduzi-lo à autodestruição pelos próprios poderes que engendrou. É também necessário abandonar o naturalismo que asfixia e dissolve o homem na natureza. Entretanto, devemos fazer regenerar a ideia de homem e a de natureza. O homem não é uma invenção arbitrária desmascarada pelo estruturalismo, mas um produto singular da evolução biológica que se autoproduz na sua própria história. A natureza não é uma imagem de poeta, é a realidade ecológica mesmo, a realidade de nosso planeta Terra.” ... “Uma consciência nova apareceu depois dos anos 60. Antes de tudo, a ecologia nos mostrou que a biosfera constituía uma espécie de eco-organização natural, e que sua degradação teria consequências irremediáveis não apenas para a vida em geral, mas para o próprio homem. ”...."Lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva," disse Holderlin. O perigo nos aconselha uma alta autoridade planetária, superior às nações e aos impérios, que teria poder sobre os problemas eco biológicos vitais da Terra”.[2] 
 Outras vozes, como a de James Lovelock, formulador da teoria de Gaia, também faz a crítica ao humanismo e ao antropocentrismo e afirma que “nossa tarefa como indivíduos é pensar em Gaia primeiro. Isso não nos torna desumanos ou indiferentes. Nossa sobrevivência como espécie depende totalmente de Gaia e de aceitarmos sua disciplina.” (Gaia, Pg. 137)
 À medida que os recursos naturais se esgotam ou escasseiam, tendem a se acirrar disputas e conflitos de interesses, violência e guerras. Tais conflitos também se acirram em períodos de crise econômica, nos quais o estrangeiro, o migrante, o refugiado é visto como um competidor pelo emprego, um adversário ou um inimigo a ser derrotado.
A consciência ecológica ajuda a avançar de um egoísmo míope e ignorante para uma forma mais ilustrada e esclarecida de egoísmo; ou, até mesmo, para o altruísmo. A eco ação focaliza o interesse da vida em que a missão de zelar pelos bens comuns e de cuidar do patrimônio coletivo cabe a todos e a cada um, de acordo com suas competências e atribuições, no seu próprio auto interesse.
Isso pode parecer utópico ou irrealizável num mundo cuja consciência dominante é regida pela competição e pela busca de interesses gananciosos particularistas.
Diante de iminente colapso climático, a união numa federação planetária é uma estratégia de fortalecimento mútuo. A diplomacia solidária, a cooperação sem imposição de condicionalidades e sem fins lucrativos, a não ingerência em assuntos internos de outros povos e sociedades, proporcionam mais segurança coletiva e distensionam o ambiente social e político. 





[2] Edgar Morin, em O Grande Projeto, (Anal. & Conj., Belo Horizonte, v. 3, n. 2, maio/ago.1988)

terça-feira, 28 de junho de 2016

Como conheci a Constituição Planetária


 Em 1977 obtive uma bolsa do CNPq para estudar como pesquisador visitante no Indian Institute of Management em Bangalore, com uma pesquisa sobre Habitat e transferência de Tecnologia.[1]

No India International Centre, onde me hospedei em Nova Delhi, assisti a uma palestra sobre Sri Aurobindo e seu pensamento político e social, por A.B.Patel, que presidia uma ONG chamada World Union com sede em Pondichery. Fui encontrá-lo lá em dezembro daquele ano, ocasião em que ele me presenteou com uma Constituição para a Federação do Planeta Terra que acabara de ser publicada pela imprensa de Auroville.[2] A constituição planetária é um exercício de uma rede de organizações não governamentais federalistas que postula um novo estágio, pós Estados-Nação, para a evolução política da humanidade. Muitos sábios e pensadores indianos expressaram ideais supranacionais, entre eles Gandhi, Tagore, Jawaharlal Nehru, Sri Aurobindo.     

O Matrimandir – templo no centro de Auroville, India.

Auroville é a cidade-laboratório internacional, situada em Pondichery, e construída com o apoio da India e da UNESCO, inspirada nas ideias de Sri Aurobindo sobre a evolução humana.
Em Pondichery fiquei impressionado com a vastidão da obra de Sri Aurobindo em vários campos. Um ano depois, ao retornar da Índia, adquiri os 30 volumes de sua obra completa e estudei especialmente de seu pensamento político e social, suas ideias mundialistas e sobre a unidade humana. Para ele, os estados-nação e a democracia dos direitos não constituem o último estágio da evolução política da humanidade.
 A World Constitution and Parliament Association - WCPA, dirigida por Philip e Margaret Isely, reunia os federalistas mundiais que trabalhavam sobre a constituição planetária. Participei de encontros dessa associação em Miami em 1987 e em Troia-Portugal, em 1991 onde assembleias constituintes mundiais não governamentais propuseram emendas a esse documento.
Pierre Weil era um conhecido professor da UFMG e psicólogo. Ao saber de meu envolvimento com a pesquisa da paz e com o movimento federalista mundial, Pierre me convidou para apresentar um trabalho sobre o tema no I Congresso Holístico Internacional, no Centro de Convenções de Brasília, em abril de 1987.
Eu impulsionava o tema, em colaboração com o cientista político Jarbas Medeiros. Um dos números da revista Análise e Conjuntura da Fundação João Pinheiro, de maio/agosto de 1988, traz um conjunto de textos sobre o Federalismo mundial, entre eles um artigo de Pierre Weil sobre “A origem da fragmentação e suas soluções”. Naquele artigo ele dizia que “Quanto ao federalismo mundial, sou um dos que lutou e luta por ele. Sempre lutei por essas ideias. Mas aos poucos me dei conta de que isso era muito superficial. ”  Ele já se dirigia, então, para o campo da ecologia interior e conta que, em dúvida entre se associar a um movimento pacifista ou evoluir em seu próprio autoconhecimento, optou por fazer um retiro de três anos na Europa com um grande mestre tibetano, aprofundando-se no estudo de suas próprias divisões e conflitos e na descoberta da natureza da mente.[4]               
Traduzi para o português a Constituição Planetária e providenciei uma edição independente, publicada em nome da Fundação Cidade da Paz em 1991.

[1] O livro Tesouros da Índia para civilização sustentável, que publiquei em 2003, contém uma síntese dessa pesquisa e também um capítulo sobre o Federalismo mundial.
[2] A Constitution for the Federation of Earth. Auroville Press, 1977.
[3]Ribeiro, Mauricio Andrés. Ecological Security: a transforming concept.  IPRA Newsletter, vol. XXVII n.1, january 1989. Editor Clovis Brigagão, Rio de Janeiro.
[4] Weil, Pierre -  A origem da fragmentação e suas soluções, in Revista Análise & Conjuntura, v.3, n.2 maio/agosto de 1988. Belo Horizonte.