terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A CIÊNCIA E O QUARTO ESTADO DA ÁGUA

Maurício Andrés Ribeiro




O avanço do conhecimento científico expande a compreensão do universo e dos riscos a que estamos sujeitos. A ciência ajuda a compreender de modo integral o ciclo da água e  expande a hidroconsciência. A física e a química, a hidrologia, a oceanografia, a climatologia, a hidrogeologia, são ciências naturais que   a estudam. As ciências da saúde e biológicas focalizam a sua presença na biosfera e no ser humano. As ciências humanas e sociais a abordam pelo ângulo das suas relações com as sociedades e indivíduos. As ciências ecológicas são permeadas pela água. Desses e de outros campos do conhecimento científico derivam aplicações práticas, múltiplas e variadas.

Campos emergentes da pesquisa estudam a informação transportada pela água, as fronteiras do seu uso na saúde, a dinamização e procedimentos na homeopatia, as ultradiluições de substâncias biologicamente ativas e seus efeitos nos sistemas vivos, a nanoestrutura e a sua microestrutura molecular.

O Professor Gerald Pollack, da Universidade de Washington em Seattle escreveu o livro "A quarta fase da água".  Ali ele propõe que a água tem uma quarta fase, , além das fases sólida, líquida e gasosa   tradicionalmente reconhecidas. A quarta fase da água é intermediária entre o sólido e o líquido, como uma espécie de gelatina, coloidal, semelhante à clara do ovo, na qual as moléculas de água se organizam de forma coletiva. Ela  se apresenta como H3O2. 

Ele diz que há 75 anomalias no comportamento da água que precisam  de outras explicações e que o quarto estado ou fase da água seria um caminho para explicar tais anomalias. Ele considera que é crítico entender a quarta fase da água para entender a natureza e a vida.

 As pesquisas científicas sobre a sua microestrutura dinâmica podem ser aplicadas em vários campos, como a agricultura, a medicina homeopática, a produção de energia limpa. As aplicações práticas associadas com a quarta fase da água vão desde a geração de energia (a água é um repositório de energia, absorve energia que vem da luz); a obtenção de água potável, a dessalinização de água do mar, a despoluição e descontaminação das águas.

Cientistas e técnicos alertam, a partir do seu conhecimento especializado, sobre temas que escapam à percepção direta, como os riscos à saúde humana e das águas, das  emergências climáticas, da contaminação de águas subterrâneas, dos resíduos radioativos. Entretanto, quando tais alertas não estão formulados em linguagem comunicativa e estão desacompanhados de soluções para os problemas, eles tendem a saturar e criar uma insensibilidade, como defesa psicológica e a serem negados ou ignorados, para que não se constituam numa camada adicional de preocupações.

A consciência da crise hídrica é divulgada por estudos científicos; os relatórios do IPCC – Painel intergovernamental de cientistas sobre a crise do clima – apontam-na como elemento chave nas estratégias de adaptação. 

A vulgarização do conhecimento científico é feita por cientistas com linguagem inteligível para o grande público. Um dos mais conhecidos foi o astrônomo Carl Sagan; no Brasil, Antonio Donato Nobre e os rios voadores; Altair Sales Barbosa em seus estudos sobre o cerrado.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

COMENTÁRIOS SOBRE A LEI BRASILEIRA DE RECURSOS HÍDRICOS

 Maurício Andrés Ribeiro

  


A lei brasileira de recursos hídricos,  n.9.433 de 8 de janeiro de 1997, completou 25 anos em 2022. 

Ela tem méritos. Adotou o espírito da democracia participativa. Deu voz e poder de decisão a representantes de usuários, governos, organizações civis de recursos hídricos e comunidades.

 



Nessas décadas de vigência da lei houve avanços na gestão das águas no Brasil. Muitos conflitos foram evitados, muito conhecimento foi produzido, multiplicaram-se as pessoas capacitadas para gerenciar os recursos hídricos. Implantaram-se conselhos e comitês; criaram-se órgãos gestores e agências reguladoras; aplicaram-se instrumentos de gestão; tornou-se prioritária a busca por segurança hídrica. 

Entretanto a lei tem  algumas limitações.

Historicamente, desde o Código de Águas de 1934, o tema era da alçada do setor elétrico, devido à importância da hidroeletricidade na matriz energética brasileira. A lei brasileira foi concebida num momento em que o usuário dominante era o setor elétrico. Na origem conceitual e no DNA da lei  9.433 há forte influência do setor elétrico. A lei traz a influência do pensamento e das práticas desse usuário, a geração de hidroeletricidade. O Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – DNAEE era responsável por cuidar do tema. (No ano 2000 a Agência Nacional de Águas - ANA o sucedeu nessa tarefa). Para esse uso o grande segmento de interesse é o curso médio dos rios onde há volume e quedas com potencial para gerar energia. Os trechos superiores e as nascentes em geral têm pouca água e nas zonas costeiras e estuarinas há poucas diferenças de altitudes para  gerar energia. As subterrâneas não são aproveitáveis para gerar energia e foram colocadas sob o domínio dos estados. A questão da qualidade é secundária para a geração de energia. Assim, a gestão dos recursos hídricos privilegiou aspectos ligados à parcela das águas utilizáveis na geração de energia. 


 Há um contraste com a legislação europeia. As leis  no Brasil e na Europa  são bastantes diferentes em suas concepções. 

Na Europa, a Diretiva Quadro das águas foi aprovada no ano 2000 e enfatizava a meta de alcançar o bom estado ecológico das águas e a sua importância como patrimônio a ser protegido. 

Na União Europeia, o primeiro considerando da norma que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água diz que “ A água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido e tratado como tal. ”


Características das leis das águas europeias

  • patrimônio hídrico 

  • proteção dos ecossistemas aquáticos

  • abordagem ecológica 

  • âmbito de aplicação abrangente

Outras limitações são sua supervalorização dos aspectos econômicos, sua desconsideração para com  as águas na atmosfera, sua subvalorização do patrimônio ecológico, seu caráter pouco voltado para a proteção e a preservação. 

No Brasil, a Lei nº 9.433 explicita duas vezes que a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico, mas não explicita em nenhum momento que ela tenha valor ecológico. A lei brasileira tem um viés utilitarista, ao considerar a água como um objeto, um insumo da produção econômica, um recurso hídrico ao qual se pode recorrer para atender a necessidades essenciais ou a demandas supérfluas da sociedade. As outorgas ou autorizações para uso das águas visam repartir esse recurso, crescentemente disputado para a produção agrícola, o abastecimento humano, a indústria, além de usos que não a consomem mas que influenciam sua gestão, como a geração de energia e o transporte hidroviário

A lei menciona 174 vezes a palavra recurso. Entretanto, a legislação brasileira em nenhum dispositivo define o que são os recursos hídricos. Recursos hídricos se referem basicamente àquela porção das  águas aproveitável como insumo para a economia: as águas doces superficiais e subterrâneas. Não são consideradas como recursos hídricos as águas dentro dos seres vivos (biosfera), nos oceanos,  nas nuvens (atmosfera) no interior quente da terra (pirosfera), no espaço sideral (cosmosfera). 

 Todo recurso hídrico é água, mas nem toda água é recurso hídrico. Por isso, a lei 9.433 pode ser chamada de lei de recursos hídricos, mas é impróprio chamá-la de lei das águas. Ela as concebeu como um recurso a ser utilizado e não como patrimônio de valor ecológico a ser, também, protegido. A lei não menciona uma única vez a palavra patrimônio, uma riqueza a ser cuidada. 

 Para tornar-se efetivamente uma lei das águas, sua concepção precisaria ser ampliada para abranger as demais formas de presença da água nos oceanos e mares, nas nuvens, nos corpos vivos etc.

A visão utilitarista que está na sua origem ou DNA tem repercussões em toda a política e na gestão que  se faz baseada no texto legal.  Quando se deseja proteger um curso d’água como patrimônio é necessário recorrer a outras legislações, tais como os planos diretores e os macrozoneamentos de uso e ocupação do solo, na lei  urbanística, e o tombamento, na legislação relativa ao patrimônio cultural.

 Caso venha a se ecologizar a legislação brasileira de recursos hídricos, alterar o seu DNA e sua concepção ela poderá,  à maneira da Diretiva Quadro das águas europeia, valorizar seus aspectos ecológicos e de proteção do patrimônio. Poderá então ser chamada, corretamente,  de Lei das Águas.


 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Rumo ao homo oecologicus

 


Maurício Andrés Ribeiro

A perspectiva humanista, característica da modernidade, coloca no centro a espécie humana, seus direitos, demandas e desejos.  A visão humanista reflete a perspectiva do ser humano como o ápice da evolução.

Algumas tradições religiosas colocam o ser humano como o coroamento da criação, com mandato para dominá-la. O historiador da cultura Thomas Berry apontou as deficiências dessa cosmovisão: “Tanto nossas tradições religiosas como humanistas são primordialmente comprometidas com uma exaltação antropocêntrica do humano.”  

A perspectiva humanista tem sido crescentemente questionada, diante da constatação de que nossa espécie se tornou um grande fator de pressão sobre a natureza e da devastação, ao dizimar habitats, provocar a extinção de espécies e mudar o clima.

James Lovelock, autor da teoria de Gaia, é crítico da visão humanista, que teria levado a sobre explorar o planeta e a precipitar a atual crise hídrica, ecológica e climática. Ele considera que “A humanidade, totalmente despreparada por suas tradições humanistas, enfrenta seu maior teste”. Ele propõe que se priorize o bem-estar e a saúde do planeta, Gaia, tendo em vista que sua existência saudável é precondição para a vida humana e para todas as outras espécies.

A ecologia profunda, que tem uma abordagem distinta do ambientalismo superficial, também rejeita o humanismo. Atribui os problemas ambientais ao antropocentrismo, que procura preservar recursos para o uso pelo homem e não pelo valor intrínseco da natureza.

As respostas para a crise ecológica atual devem estar à altura das dimensões épicas das transformações pelas quais passa o planeta. Isso inclui uma mudança de perspectiva semelhante àquela adotada por Copérnico, que demonstrou que o sol, e não a Terra era o centro do sistema. Galileu sofreu por demonstrar essa realidade. Somos mais periféricos do que eles imaginavam, pois o sol é apenas uma estrela de quinta grandeza situada na periferia de uma das milhões de galáxias no universo.

Cabe à educação transcender a perspectiva humanista e adotar princípios e conteúdo que facilitem a transição para a era da evolução consciente do planeta. Thomas Berry propõe um papel para a educação: “O objetivo da educação não é treinar pessoal para explorar a Terra, mas apoiar os estudantes numa relação íntima com a Terra e estabelecer um caminho mais viável para o futuro.”

Para superar a atual crise  hídrica e da evolução cabe uma perspectiva pós-antropocêntrica. Nela, o ser humano ecologizado e hidroconsciente deixa de ser uma presença devastadora, para tornar-se uma presença benigna diante do mundo natural.  Ele pode tornar-se um cogestor consciente da evolução da Terra e de sua própria evolução. 

Migrar de um ângulo de visão antropocêntrico e humanista para uma perspectiva Gaiacêntrica, que coloca como ponto de partida a saúde do planeta,  demanda humildade e desprendimento. O Homo sapiens não é o fim da evolução, mas é um ser em transição, como definiu Sri Aurobindo. Esse ser poderá ser sucedido por um ser trans-humano, pós-humano ou, numa perspectiva ecológica, eco-humano: o homo ecologicus.

Abolição de usos da água

Maurício Andrés Ribeiro 

No passado, quando a sociedade aceitava a escravidão, era necessário produzir os instrumentos e  equipamentos para subjugar os escravos: gargalheiras, troncos, chibatas, correntes, algemas, pelourinhos. Cada um desses objetos demandava uma quantidade de água para ser produzido.

No passado, quando se aceitava a tortura, era necessário produzir instrumentos para essa finalidade, como as forquilhas, parafusos, chicotes, garrotes etc e aplicar as práticas  como os afogamentos.  Era necessário usar água para produzir tais instrumentos ou  práticas. Quando a tortura deixou de ser socialmente aceitável,  deixou de ser necessário usar água para essas finalidades. Abolir a tortura e a escravidão aboliu também a demanda por uma parte da água que era então consumida.

Na medida em que as sociedades evoluem, mudam as demandas e as necessidades  de uso da água. Alguns usos são abolidos junto com as práticas que os demandavam, outros caem em desuso.

Ao longo do tempo surgem, por outro lado, novas demandas de uso da água. Atualmente há outras atividades humanas, como as guerras, que demandam grande quantidade de água para  a fabricação de tanques, aviões e navios de guerra, submarinos, armamentos de todo tipo. Enorme quantidade de água é demandada para produzir tais objetos bélicos. Caso as guerras fossem abolidas, deixaria de ser necessário o uso de grandes quantidades de água, que poderiam ser liberadas para outras utilizações ou para a proteção e conservação.

Do mesmo modo, caso se mudassem as dietas alimentares, de hábitos carnivoristas para outros mais vegetarianos, veganos, grandes quantidades de água deixariam de ser necessárias para  irrigação, uso em frigoríficos, matadouros, lavagens de resíduos etc e poderiam ser liberadas para finalidades social e ambientalmente menos impactantes.

O consumismo, o viajismo, o belicismo, o carnivorismo estão presentes na sociedade contemporânea e merecem uma abordagem crítica para que sejam reduzidos ou abolidos, do mesmo modo como no passado a escravidão e a tortura foram questionadas e abolidas depois de lutas e embates.

Hoje a sociedade se encontra diante de situações em que é necessário usar a água de modo responsável, parcimonioso, frugal, austero. É necessário não a desperdiçar em usos que não sejam os socialmente prioritários. Uma sociedade que se dispusesse a rumar para uma melhor qualidade de vida para todos deveria escolher que atividades, bens e serviços deve proporcionar e usar a água prioritariamente para tais finalidades. 
Trata-se de escolhas, definições e diretrizes que as sociedades precisam tomar e que repercutem direta ou indiretamente sobre as demandas por água.

No contexto da mudança do clima e da crise ecológica e hídrica, está na hora de levantar tais questões e colocá-las para a reflexão e o debate social, ético, econômico e político. Uma vez feitas tais escolhas ou definições, os gestores das águas teriam um balizamento mais claro sobre como aplicar a cobrança pelo uso da água, que desincentiva seu desperdício, ou a outorga de direitos de uso, que ajuda a reduzir conflitos, o planejamento de recursos hídricos e os demais instrumentos de que dispõem para bem usar ou proteger o patrimônio hídrico.

 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

UTILITARISMO E HIDROÉTICA

 Maurício Andrés Ribeiro 

Mas pra que
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar,
Pra que
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem

Tom Jobim

 

Na perspectiva utilitarista, a natureza é um objeto para ser usado e consumido, com seus recursos minerais, sua água, os vegetais e animais, atendendo aos desejos, à demanda e à voracidade do ser humano. Na sociedade utilitarista, a água é valorizada por suas possibilidades mercadológicas e para exploração comercial. Cientificidade e tecnicismo predominam. Adota-se uma abordagem pragmática e ela é percebida como um recurso a utilizar, a ser apropriado privadamente e sua utilidade publica fica em segundo plano.

No mundo contemporâneo, prevalece a força das corporações e empresas internacionais e o valor de troca da água se impõe a ferro e fogo sobre o valor simbólico que é caro aos povos indígenas e a populações tradicionais.

A relação com essa coisa – a Terra objeto - é objetiva, sem afeto, pragmática. Nesse tipo de relação, a principal questão deixa de ser a do sentido: o que significa? – para se tornar a da utilidade: para que serve? Que serviços presta? Se é inútil e não serve para nada, não tem valor de uso. Não é funcional, não contribui para o conforto material e portanto não é valorizada.

O utilitarismo subestima o valor dos serviços ambientais prestados gratuitamente pela natureza, tais como a regulação do clima, a produção de água e outros processos fundamentais para sustentar a vida. Manter ecossistemas intocados, espaços protegidos, templos naturais conservados é visto por aqueles com visão utilitarista como uma absurda renúncia ao desenvolvimento econômico e ao usufruto das riquezas naturais, a renúncia do ser humano à felicidade e ao conforto material. Nas artes, a postura utilitarista que coisifica a natureza levou a se associar a beleza à utilidade e a defender que o útil é o belo.

A perspectiva utilitarista e pragmática confronta-se com limites éticos.  O bom nem sempre é o útil, apontou o sábio indiano Sri Aurobindo: “Há somente uma regra segura para o homem ético, alinhar-se ao seu princípio do bem, seu instinto do bem, sua visão do bem, sua intuição do bem, e governar assim sua conduta. Ele pode errar, mas estará no seu caminho, a despeito de todos os tropeços, porque será fiel à lei de sua natureza. A lei da natureza do ser ético é a busca do bem; não pode nunca ser a busca de utilidade.”

Nessa perspectiva crítica se coloca o Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais – MAUSS que questiona a abordagem de considerar a natureza como objeto a serviço do ser humano. O MAUSS advoga uma relação contemplativa e uma ética do não consumo. 

A crítica ao utilitarismo vem também de uma voz indígena.   Escreve Ailton Krenak[1] que “os povos originários ainda estão presentes neste mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam, é interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta, resistiram com toda força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário... Escapar dessa captura, experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida, cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que sofreram uma forte interferência utilitária da vida, essa experiência de silêncio foi prejudicada.” (pg 111) 

Para Ailton Krenak, “A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária. Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil?” Ele continua :”Nós estamos, em nossa relação com a vida, como um peixinho num imenso oceano, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida. Mas nós somos o tempo inteiro cobrados a  fazer coisas úteis.”

A ética utilitária busca o crescimento econômico e o bem estar material; já a ética autóctone defende seus lugares sagrados e apenas secundariamente busca o crescimento econômico. Numa cosmovisão, a água é um recurso econômico; noutra, ela é um patrimônio ecológico e espiritual.

O grande desafio para implementar uma política de águas é ético e espiritual: transformar uma relação agressiva e utilitarista em uma postura amigável, de cuidado e de reverência para com ela.  Nesse contexto, cabe desaprender conceitos e visões de mundo, descondicionar a consciência de seu viés utilitarista e fortalecer o valor da  proteção e da frugalidade.  A demanda por água, se descontrolada e desregulada, se não balizada por limites técnicos e éticos, pode levar a sua exaustão e fazer com que desapareça e se torne escassa, prejudicando a vida e a qualidade de vida. A postura utilitarista enxerga a água como um recurso, sem questionar o uso que  é feito dela.
 

A legislação brasileira é diferente de outras legislações, como a europeia, por exemplo, que enfatiza a importância ecológica da água como um patrimônio a ser protegido. O viés utilitarista da lei brasileira precisa ser contrabalançado com uma valorização da água por seu valor ecológico.



[1] Krenak,Ailton Avida não é útil  Companhia das Letras, São Paulo, 2022. Pgs 108 e 111.

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

GERENCIAMENTO INTEGRAL DO CICLO DA ÁGUA

Maurício Andrés Ribeiro

 


Figura: Fonte USGS. É possível gerenciar integralmente o ciclo da água?


O gerenciamento das águas de superfície é uma tarefa difícil e complexa que depende de conhecimentos técnicos, domínio de instrumentos de ação, capacidade de articulação entre níveis de governo e com a sociedade e integração de sistemas  de informação.

O gerenciamento das águas subterrâneas tem as mesmas complexidades, acrescidas do fato de que é mais difícil detectar a sua presença e conhecer a sua dinâmica.

O gerenciamento integrado de águas superficiais e subterrâneas soma mais complexidade técnica, política e administrativa.

Praticamente todo o volume de água do planeta – nos oceanos, na atmosfera, no permafrost, no gelo, nos seres vivos encontra-se fora do alcance da gestão das águas, que atualmente prioriza a gestão das águas doces superficiais e secundariamente as subterrâneas.

  

Neste texto, proponho que se enfrente o gerenciamento integral do ciclo da água, que inclui as águas atmosféricas. As águas atmosféricas correspondem a apenas 0,04% do volume total de agua no planeta, mas uma pequena variação desse volume traz grandes impactos e eventos climáticos extremos. A evaporação dos oceanos, das florestas, das águas superficiais aumenta com o aumento da temperatura global.  

A gestão integral do ciclo vai além da gestão integrada de recursos hídricos superficiais e subterrâneos. Ela agrega uma complexidade e uma dificuldade ainda maior aos já enormes problemas envolvidos com o gerenciamento integrado das águas subterrâneas e superficiais. 

Uma gestão do ciclo integral envolve todos os aspectos, desde a água na atmosfera, as nascentes, a proteção florestal e o uso do solo. Uma abordagem holística e transdisciplinar considera o ciclo integral, inclusive sua fase meteórica ou na atmosfera, pois cada vez mais a gestão de recursos hídricos está dependente do clima e de suas variações.  Tal gestão considera as interconexões entre o que ocorre quando ela escorre superficialmente, se infiltra nos solos e forma os lençóis subterrâneos e  quando se encontra em estado meteórico, no vapor na atmosfera.

A gestão integral do ciclo considera todas as suas formas de presença na natureza: sólida, líquida, gasosa; meteórica, superficial e subterrânea. Ela exige uma compreensão ampla desse ciclo.

 A caixa de ferramentas da lei de recursos hidricos é insuficiente para  lidar  com a gestão integral do ciclo da água.

É necessário um grande conjunto de ferramentas que vai muito além desses instrumentos legais e que estão presentes em outras políticas, como a do meio ambiente, do saneamento, da segurança de barragens, do ordenamento territorial, das mudanças climáticas, do patrimônio natural, das unidades de conservação, da educação ambiental, entre outras.

Neste ano de 2024, muitos eventos climáticos extremos se precipitaram: enchentes no Rio Grande do Sul, incêndios no Brasil, Bolívia, na África, em Portugal e na Califórnia; furacões na Flórida, seca nos rios da Amazônia; chuvas no Saara, esverdeamento da Antártida e muitos outros.Neste ano, no mundo todo e no Brasil, intensificaram-se os eventos climáticos de enchentes, inundações, secas e queimadas, nas quais o excesso e a escassez de água são componentes centrais.

 Existe maior percepção e consciência sobre a importância das águas na forma de vapor, nas nuvens, rios voadores e outras denominações para designar essa parcela do conjunto das águas no planeta, que influencia crescentemente a vida, a economia, os desastres que afetam de modo mais impactante as populações vulneráveis, os ribeirinhos, os pescadores, o transporte hidroviário, a geração de energia hidrelétrica  todos os  campos da sociedade e setores da economia que são direta ou indiretamente relacionados com as águas.

A gestão integral do ciclo da água depende de uma boa articulação federativa entre o nível federal, os estados e municípios,  a partir de dados e informações compartilhados. Numa federação, cada ente tem suas responsabilidades. A chuva chove nos municípios, pois ela cai no território da bacia e quem cuida do uso e ocupação do solo são os municípios. Depois ela escorre para riachos e córregos estaduais e algumas vezes chega a rios federais. Quando ela infiltra no solo passa a ser de domínio dos estados, que gerenciam as águas subterrâneas. Enquanto está na atmosfera, ninguém é responsável pelo seu gerenciamento.

Para se lidar de modo integral com a gestão do ciclo, é relevante reduzir as demandas nas diversas atividades econômicas, especialmente o consumo pelo usuário que mais a utiliza, a agricultura irrigada.  Isso implica em inovar em tecnologias e em atuar sobre a economia para reduzir as demandas excessivas que causam estresse hídrico, sobre a cultura e os hábitos alimentares e de vida.

A gestão do ciclo de vida das águas articula seu planejamento e gestão numa perspectiva de longo prazo. Ela compartilha dados e sistemas de informação. Requisito importante para se tornar realidade é evoluir dos estudos técnicos especializados e dos conhecimentos da hidrologia como atualmente praticada, para  a perspectiva de uma hidrologia integral, transdisciplinar, e daí para a Hidrosofia, ou seja, lidar com a água com sabedoria.

A Amazônia oferece um laboratório prático para se testar globalmente  a gestão integral do ciclo da água. Um dos modos de  incluir as aguas atmosféricas na gestão é proporcionar os meios para que a floresta continue a existir e que os rios voadores continuem a prestar os seus serviços ecossistêmicos.

Ao mesmo tempo expandimos a visão, para além do enfoque utilitarista associado aos conceitos de recursos hídricos,  e contemplamos a importância da proteção das águas num enfoque mais holístico e transdisciplinar e isso demanda o uso de instrumentos de ordenamento territorial, uso e ocupação do solo, proteção de unidades de conservação e do patrimônio natural.

O gerenciamento do ciclo integral das águas é um projeto potencial e virtual que se inicia com a hidratação das mentalidades, da sociedade, da economia, para que a civilização se torne hidrocêntrica, supere a hidroalienação e valorize a hidroconsciência.

O gerenciamento integral do ciclo da água é uma missão impossível, um objetivo utópico? Preferimos acreditar que é um ideal e uma meta  que progressivamente dá seus primeiros passos. Há uma longa caminhada pela frente para que ele se realize.

ATENDIMENTO A EMERGÊNCIAS HÍDRICAS

 Maurício Andrés Ribeiro

 

Numa emergência médica, o paciente vai para um pronto socorro onde recebe os primeiros cuidados. Sendo grave o seu estado, ele é internado numa Unidade de Tratamento Intensivo- UTI onde é monitorado com aparelhos sofisticados e atendido por médicos  especializadas. Quando o paciente melhora, é levado para uma unidade de tratamento semi-intensivo e depois para um quarto. Quando recebe alta, vai para casa e lá continua seu tratamento.

Nas emergências hídricas, na iminência de um colapso no abastecimento, o pronto socorro é feito pelas salas de crise.

Salas de crise são espaços para encontros híbridos, virtuais e presenciais, nos quais participam os principais atores e instituições relacionados com a gestão da água numa bacia que entrou em estado crítico, seja por falta ou excesso. Elas são criadas quando se acendem sinais de alerta ou alarme nos dados de chuva e vazão  que são coletados sobre as bacias brasileiras. Desde que foram criadas,  centenas de reuniões foram realizadas em salas de crise e acumulou-se experiência em lidar com os eventos críticos e em resolver conflitos. São  eficientes  para a o tratamento de emergências e urgências.

As Salas de crise  atuam com um horizonte temporal que inclui os próximos dias ou semanas em função da situação conjuntural e das  circunstâncias do momento. Elas trabalham com horizontes mais curtos do que os planos de bacia, que  tratam de um horizonte de anos.

Em função dos principais problemas encontrados em cada bacia hidrográfica, reúnem-se os principais atores. As abordagens variam, conforme as características de cada bacia: em alguns casos é necessário mudar a operação de reservatórios para liberar ou reter água (São Francisco, Paraná, Tocantins). Em outros casos, lida-se com aas secas e as enchentes (rio Madeira, Pantanal) e suas consequências, como por exemplo a interrupção de rodovias ou os incêndios florestais.

 As salas de crise se baseiam em nivelamentos de informações qualificadas. O CEMADEN- Centro nacional de aleta de desastres, com sua visão interdisciplinar e aplicada, apresenta  as perspectiva para os próximos dias. O ONS -Operador nacional do sistema elétrico - apresenta como os reservatórios estão sendo operados nos vários subsistemas regionais no Brasil e o quanto de energia está sendo exportada ou importada de um sistema para o outro . O INEMET -Instituto Nacional de meteorologia faz previsões do tempo para os próximos dias e semanas a partir de modelos europeu americano e outros. Fazem-se previsões climáticas, perspectivas de chuvas, chegada de frentes frias, num horizonte de 15 dias, mais previsível. Na medida em que se aprimoram os modelos climatológicos e meteorológicos as previsões tendem a se tornar mais precisas e reduzem-se as imprevisibilidades.

A base de informações de boa qualidade é o elemento fundamental para a partir dele se construírem os consensos necessários. No início de  cada reunião das salas de crise são expostos com objetividade os dados e informações relacionados com a chuva e a vazão naquela bacia nos próximos meses. Esse nivelamento prévio de informações entre os participantes oferece um patamar comum a partir do qual podem-se propor os modos de solucionar os problemas diagnosticados.  Fala-se em linguagem técnica: modelagens, curvas de segurança, afluências e defluências, modelo curva-vazão, afluências incrementais, evaporação em reservatórios. Apresentam-se gráficos, mapas, modelos, cenários climatológicos, meteorológicos e previsões.  Fala-se em energia armazenada e energia excedente, região importadora de e exportadora de energia, fechamento e abertura de comportas em reservatórios. Simulações, vazão prevista, política de defluência, perspectiva de evolução do volume do reservatório e todo um vocabulário de hidrologuês.

Enquanto há  emergências, a frequência de reuniões precisa ser maior, diária ou semanal pois a agilidade é essencial para enfrentar situações mais graves. Quando passa o período crítico, a sala de crise se transforma numa sala de acompanhamento. É quando a bacia sai da UTI e vai para um tratamento semi-intensivo, com monitoramento para acompanhar seu estado de saúde.

Tanto nas salas de crise como nas de acompanhamento a água em estado meteórico, na atmosfera é uma informação crucial. A água na atmosfera é o elemento fundamental nessas analises e informações pois ela influi nas águas superficiais, nas cheias e secas. Compreender a água na atmosfera é uma ciência cada vez mais estratégica.

Nas salas de crise não há proposta de interferir com geoengenharias ou hidro engenharias  na quantidade de água na atmosfera, bombardeamento de nuvens etc. As salas  de crise foram testadas durante anos e constituem uma experiência positiva em lidar com eventos críticos e com emergências hídricas.