quinta-feira, 29 de março de 2018

Dez caminhos para expandir a hidroconsciência


Maurício Andrés Ribeiro
     
Falei num seminário sobre cidades sensíveis à água realizado na Universidade de Brasília no contexto do Fórum Alternativo Mundial da Água. Ali se trataram  temas relacionados com o abastecimento de água e o saneamento, a captação de água de chuva, as crises hídricas que ameaçam grande cidades com racionamento e as inundações urbanas que causam mortes e prejuízos, e que tendem a se intensificar no contexto das mudanças climáticas.

A hidro ética, a mobilização e educação para a água também foram objeto de atenção.
O Seminário propunha focar  a transição política, pedagógica, tecnológica e prática para alcançar ambientes saudáveis e mais democráticos.
 Focalizei os aspectos conceituais e teóricos para se fazer essa transição, o que envolve a criação de palavras que expressem essa nova realidade que se busca. Entre elas estão as palavras hidroconsciência e hidroalfabetização.
Hidroconsciência pode ser vista como a compreensão de como a água está presente no universo, no planeta, na cidade, na casa e no corpo de cada um; como funciona o ciclo da água, a importância das bacias hidrográficas, os impactos negativos ou positivos que as atividades humanas provocam sobre ela.
A hidroalfabetização, inspirada pela ecoalfabetização implantada por Fritjof Capra na Califórnia, é um processo educativo que dissolve a hidroalienação e que pode induzir mudanças de comportamento coletivo e individual e atitudes amigáveis no relacionamento com a água.
Mostrei como a percepção sobre a água passou da abundância à escassez nos últimos anos. 
Em 1500 Pero Vaz de Caminha escreveu em sua famosa carta que “Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”  
No século XXI, racionamento, conflitos pela água, disputas e secas mostram outra realidade.
 Há grande diversidade de estágios de consciência e de conhecimento quanto às questões da água, dos mais alienados aos mais engajados.
Mudanças de estágios de consciência, de atitudes e comportamentos podem acontecer rapidamente. Quanto mais pessoas se transportarem de uma visão hidroalienada para um estágio mais avançado de consciência e adequarem seus hábitos de vida e de consumo, menores podem ser os sofrimentos e os impactos negativos associados às mudanças climáticas.
Relacionei dez caminhos para expandir a hidroconsciência. São eles:

1. As catástrofes em escala macro como nos furacões ou em escala micro, nas secas e crises de escassez urbanas, que despertam a consciência pelo susto e são pedagógicas.
 
2. A Ciência que por meio da razão pode conduzir a uma visão mais integral e holística conectando a agua, o solo, as florestas, os seres vivos, a atmosfera.
 
3. A tecnologia e a informação, que permitem conhecer  racionalmente e medir os fatos e compreender melhor as situações.
4.     4. A Educação  em todos os níveis e faixas etárias podem hidratar cada uma e todas as disciplinas e profissões não só no campo do conhecimento técnico e científico, mas também no campo da sensibilidade, da ética e dos valores. A hidroeducação e a hidroalfabetização chamam a atenção para o valor da água. Métodos educativos coletivos facilitam a sinergia e troca de conhecimentos e vivencias entre indivíduos e grupos.
5.      5. A Comunicação, que traduz  uma linguagem fragmentada, ultra especializada, em linguagem de entendimento mais amplo e dissemina conhecimentos para muitos em outro nível de linguagem, e  que abastece as mentes com novas informações e conhecimentos.
6.     6.  A Arte (música, poesia,  teatro,  dança,  artes plásticas, fotografia,  cinema etc) que sensibilizam por meio da beleza, ativam emoções e sentimentos que movem as ações.
7.      7. A Corporeidade, por meio da inteligência  existente no corpo e nos sentidos do tato, visão, audição, olfato, paladar que percebem o ambiente e alimentam o cérebro. O próprio corpo é também água. Hidromassagem, esportes aquáticos e náuticos movimentam o corpo na água e estimulam a hidroconsciência.
8.      8. Ética hídrica ativada pela Espiritualidade encontrada em várias tradições, como o batismo cristão, os banhos nos rios sagrados dos hindus, os cultos a iemanjá etc.

9.       9. Os Incentivos econômicos tais como os oferecidos na Califórnia para substituir jardins e trocar equipamentos  que desperdiçam agua  por outros mais eficientes.
10.  10.  A Legislação que pode induzir a comportamentos menos perdulários e a uma melhor gestão da água. Captação de água de chuva, impermeabilização de terrenos, hidrometração individualizada, são alguns dos temas que merecem legislação local hidroconsciente.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Autoconhecimento e ecologia




                                    Maurício Andrés Ribeiro (*)

A atividade humana está, inequivocamente, causando mudanças climáticas e transformações ambientais no planeta.
O ser humano provoca tantas alterações no ambiente que este período em que vivemos passou a ser designado como o antropoceno: um período que considera a influência humana no funcionamento do planeta tão significativa que justifica definir-se como uma nova era na escala do tempo geológico.
No oráculo de Delfos, na Grécia antiga, estava inscrito: "Oh, ser humano, conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os Deuses!” O autoconhecimento, valorizado em Delfos, volta a ser crucial diante da crise ecológica, pois as ações que causam forte impacto ambiental e social derivam de pensamentos e sentimentos, de necessidades e carências fisicas ou emocionais, desejos e crenças, de qualidades mentais e espirituais.  Esse autoconhecimento pode-se dar tanto na escala de um indivíduo, como de um grupo social ou população, e até a escala da espécie e do gênero Homo. As ciencias humanas e sociais abordam a questao a partir dos indivíduos e grupos sociais. Uma abordagem ecológica inclui os aspectos biológicos e das ciências da natureza. A inscrição de Delfos para o autoconhecimento pode assim ser adaptada para a época atual: “Espécie humana, conhece-te a ti mesma e conhecerás o ambiente e o universo em que vives”.
Como espécie, quem somos nós, quais as nossas características principais? Que imagens e percepções temos dessa espécie?  Os seres humanos, com sua consciência, capacidade de percepção e de comunicação, descreveram de várias maneiras o gênero Homo ao qual pertencem. Compilamos cerca de 40 delas, na expressão em latim: academicus, belicosus, beligerans, bellicus, complexus, connectus, consulens, consumptor, corruptus, cosmicus, deletabilis, demens, erectus, ergaster, faber, habilis, honestus, idioticus, lixus, ludens, moralis, noologicus, œcologicus, œconomicus, pecuniosus, perfectus, planetaris, protæus, ricus, sapiens, sapiens globalis, sapiens localis, sapiens sapiens, scientificus, simbioticus, sportivus, stressatus, superprædator, sustentabilis, tecnocraticus, universalis.
Fomos designados como Homo demens: “O homem é esse animal louco cuja loucura inventou a razão”, disse Cornelius Castoriadis; como o Homo moralis e o Homo honestus, um primata que coopera e que se comporta com valores éticos; o Homo sportivus e o Homo ludens, pelas características lúdicas, que compartilha com outros animais que jogam, gostam de brincar e fazer humor (Johan Huizinga); o Homo corruptus, uma espécie parasita e predatória. Temos capacidade de autorreflexão e de saber-nos ignorantes o Homo idioticus que se deixa enganar e ao mesmo tempo é capaz de fazer humor e de se enxergar criticamente. É conhecida a história de dois planetas que se encontram. Coçando-se, um diz: “Estou incomodado com essa coceira.” Pergunta o outro: “O que pode ser isso?” O primeiro responde: “Acho que é Homo sapiens”. O segundo finaliza a conversa: “Não se preocupe, isso passa logo.”.
O Homo bellicus se denomina assim por seu caráter guerreiro; ao desenvolver a tecnologia somos os Homo tecnocraticus; o Homo economicus e o Homo consumptor, espécie composta de um conjunto de indivíduos egoístas em busca de gratificação pessoal e acumulação material. Já o Homo scientificus valoriza a observação objetiva, a classificação e a mensuração. Edgar Morin fala do Homo complexus, que lida com a complexidade. Hoje podemos nos ver também como o Homo lixus, a única espécie animal que produz lixo: dois milhões de toneladas por dia. E ainda como o Homo stressatus moderno, com as consequências que o estresse acarreta para a saúde, ansioso, com medo e preocupado com o futuro e com ameaças reais ou imaginárias. Diegues imagina o Homo ricus, uma parcela da humanidade que derivará da plutocracia e que se descolará do restante da espécie, beneficiária de onerosos avanços da medicina, que nem todos podem pagar. O Homo Consulens trata com cuidado de sua casa e das demais espécies. Ao ocuparmos todo o planeta, nos vemos como Homo planetaris; ao viajarmos no espaço, somos os Homo cosmicus e o Homo universalis. Transumanistas, que trabalham com a perspectiva de um ser evolutivo, acenam com o surgimento do Homo perfectus que atua por meio do uso ético das tecnologias para estender as capacidades humanas. Ou o Homo ecologicus ou noologicus, que sabe das consequências de seus atos. Yuval Harari escreveu sobre o Homo Deus.
Em diferentes momentos, distintas qualidades da espécie foram percebidas e expressas por tais definições ou designações e cada uma delas corresponde a uma parcela da realidade acerca desse ser que apresenta grandezas e misérias. Cada uma dessas categorias reconhece uma faceta e uma característica e se baseiam em atributos variados. Todas expressam uma parte da realidade, mas nenhuma esgota a descrição desse ser complexo e multidimensional. Assim, podemos observar que algumas definições enfatizam nossos defeitos e deficiências, outras realçam nossas boas qualidades e virtudes; outras, ainda, enxergam aspectos físicos, sociais, espirituais. Algumas expressam uma visão crítica e autocrítica. Outras têm uma conotação humorística; outras, ainda, expressam uma percepção das potencialidades, de uma visão ideal ou de um desejo de quem as formula; ainda há aquelas que procuram expressar o que seus proponentes visualizam como a verdade ou a realidade sobre as facetas da espécie. Muitas focam mais nas qualidades da consciência do que em diferenças biológicas ou genéticas. 
A variedade de definições filosóficas existente parte de distintas concepções e modelos mentais. Algumas definições enfatizam o pensamento (Descartes: Penso, logo existo); outras nos definiram como animal racional, enfatizando a razão. Aristóteles nos definiu como animais políticos. Outros, como Hobbes, realçaram nossa característica predatória: O homem é o lobo do homem. A tradição hindu enfatiza nosso caráter divino, como um corpo de luz, com desidentificação e abstração do corpo. Outras explicitam nosso caráter falível: ‘Herrar é umano’. Nossas várias designações como espécie podem espelhar como nos vemos em nossas características e papéis sociais e individuais. Freud observou que "Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo." Assim, quando alguém diz que o ser humano não tem jeito, que é como uma praga e que a natureza humana é vil, aquela pessoa pode estar projetando uma característica que enxerga em si para toda a espécie. Passamos a saber  mais sobre quem expressa  essa percepção do que sobre a própria espécie humana.
No contexto da evolução, são também variados os papéis que essa espécie tem exercido e pela qual tem sido designada: gestora da evolução, senhora do clima (Tim Flannery); engenheira de manutenção do planeta (James Lovelock), degradadora, exterminadora e predadora de outras espécies; construtora e facilitadora da evolução.
Numa concepção compreensiva e holística o ser humano é corpo, mente, emoções, sentimentos, espírito e alma.
A consciência humana é uma força poderosa. Caso seja colocada a serviço de práticas construtivas e orientada para desenvolver relações ecológicas harmônicas de simbiose e cooperação baseadas em valores éticos, pode ajudar a regenerar e restaurar o oásis Terra em que vivemos. Caso seja colocada a serviço de valores destrutivos e desenvolva relações desarmônicas de predatismo, parasitismo e canibalismo de uns contra os outros, pode acelerar colapsos e destruição ecológica, social, econômica, política.
Cabe à consciência de cada um de nós e à consciência coletiva discernir entre o que deve, pode e precisa ser feito, para  a partir disso orientar nossas ações. O rumo que tomará o desenvolvimento e a evolução da matéria e da vida no planeta será influenciado por esse discernimento. A ecologia do ser é um caminho para desenvolver o autoconhecimento e para dar respostas à atual crise da evolução.