sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

As castas vistas por indianos eminentes


Maurício Andrés Ribeiro
Ambedkar, o dalit que redigiu a constituição indiana e que se opunha às castas
Ambedkar, o pária que se tornou um grande jurista e redigiu a constituição da Índia após a independência em 1947, se opunha frontalmente ao sistema de castas. Vivekananda também era contrário a tal sistema. Na história da Índia, vários movimentos religiosos igualitários se revoltaram e tentaram escapar do sistema de castas, considerado discriminatório e promotor de injustiças. 

O Mahatma Gandhi não lutou contra as castas, mas sim contra a exclusão dos intocáveis, que ele chamou de Harijans ou filhos de Deus, para ajudar a incluí-los no sistema social, numa perspectiva que alguns consideram mais cristã que hindu. Gandhi teria sido o mais cristão dos hindus. Ele foi muito criticado por aqueles como Ambedkar, que se colocavam contra o sistema. Gandhi dizia acreditar que cada pessoa nasce no mundo com aptidões e limitações. Alguns são mais aptos para transmitir conhecimentos, outros para defender os indefesos, outros para lidar com a agricultura e o comércio, outros ainda para realizar tarefas físicas. A lei do varna, que instituiu as castas, estabeleceu uma esfera de ação para cada grupo vocacional, evitando a competição desnecessária.
O Mahatma Gandhi, Rabindranath Tagore e Sri Aurobindo tiveram uma visão  reformadora em relação ao sistema de castas,  criticaram a existência dos párias ou dalits. Não fizeram uma condenação total ao sistema, que consideravam bem concebido, mas com defeitos e degenerações que precisavam ser corrigidos.
Tagore assim se expressou: “O que os observadores ocidentais não conseguem discernir é que, em seu sistema de castas, a Índia seriamente aceitou sua responsabilidade de resolver o problema de raças de maneira a evitar toda fricção, e ainda assim oferecendo a cada raça liberdade dentro de suas fronteiras. Admitamos que a Índia não obteve nisso um sucesso absoluto. Mas também deve ser lembrado que o ocidente, situado mais favoravelmente quanto à homogeneidade de raças, nunca deu atenção a esse problema; sempre que confrontado com ele, tentou torná-lo mais fácil, ignorando-o."
Já Gandhi ressaltou aspectos econômicos do sistema de castas e sua função de freio à competição : “Do ponto de vista econômico, seu valor foi muito grande. Assegurava as habilidades hereditárias e limitava a competição. Historicamente falando, a casta pode ser vista como um experimento humano ou ajuste social no laboratório da sociedade indiana. Se ela provar ser um sucesso, pode ser oferecida ao mundo como um fermento e como o melhor remédio contra a competição sem coração e a desintegração social nascida da avareza e da cobiça”.[1]
Sri Aurobindo  enfatizava aspectos subjetivos e  das responsabilidades de cada um ao escrever “o sistema serviu ainda como um meio automático de garantir uma divisão fixa do trabalho e um status econômico estabelecido “ e que “A casta era originalmente um arranjo para a distribuição de funções na sociedade, tanto quanto a classe na Europa, mas o princípio no qual a distribuição se baseava na Índia era peculiar a esse país. .... A divisão de castas na Índia foi concebida como uma distribuição de tarefas. A casta de um homem dependia de seu dharma, de seus deveres espirituais, morais e práticos, e seu dharma dependia de sua swabhava, seu temperamento e natureza inata.
[2]



Mas ele completou que a instituição da casta degenerou, precisa ser corrigida e tem um  potencial para auxiliar na civilização: “ O espírito de arrogância de casta, de exclusividade e superioridade passou a dominá-la, em vez do espírito de dever, e a mudança enfraqueceu a nação e ajudou a reduzir-nos à nossa condição atual. São essas perversões que desejamos ver corrigidas. A instituição deve se transformar de modo a cumprir seu objeto essencial e permanente sob as condições alteradas dos tempos modernos. Se ela se recusar a mudar, tornar-se-á uma mera sobrevivente social e se despedaçará. Caso se transforme, ela ainda desempenhará um grande papel na realização da civilização.[3]

O sistema de castas, questionado duramente por opositores, sobreviveu e demonstrou  resiliência em relação aos vários impactos que sofreu. Sobreviveu às transformações trazidas pela urbanização, a industrialização e a globalização e se expandiu para outros grupos religiosos fora do hinduísmo.

Ele  se extinguirá, como queriam Ambedkar e Vivekananda, ou se reinventará para desempenhar um papel, como propuseram Sri Aurobindo e Tagore?

Quem viver, verá!




[1]  PRABHU, R.K. & RAO, U.R. (Comp.). The mind of Mahatma Gandhi, p.110.


[2] “The Renaissance in India”, pp. 409-410-411


[3] “Bande Mataram”, pp. 683-684.








 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

A Índia é muito menos violenta do que o Brasil


Maurício Andrés Ribeiro
Ao se caminhar nas cidades indianas tem-se maior sensação de segurança do que ao circular nas cidades brasileiras. As estatísticas de criminalidade e segurança confirmam em números essa percepção. A Índia é muito menos violenta do que o Brasil.
A Índia tem mais de 1 bilhão e trezentos milhões de habitantes, quase sete vezes mais do que a população brasileira. Os índices de homicídios são nove vezes menores na Índia do que no Brasil. O Brasil tem   55.574 homicídios por ano e 26,74  mortes por 100 mil habitantes;  na Índia, há 3,21 homicídios por 100 mil habitantes,  com 41.623 mortes.
 
Estupros e agressões sexuais por 100 mil pessoas. No Brasil o índice é alto e crescente; na Índia é baixo e estável.
 

Os números absolutos de estupros são muito menores na Índia ( 33.707 casos em 2013) do que no Brasil (49.929 casos em 2013).
 No Brasil o  índice de estupros e agressões sexuais tem aumentado, enquanto na Índia permanece baixo e estável. Tanto no Brasil como na Índia grande parte dos estupros ocorrem no ambiente doméstico, privado. Quando ocorrem estupros coletivos e públicos na Índia há reação social vigorosa contra a violência com as mulheres.
 
Os índices de estupro por 100.000 habitantes são quatro vezes mais baixos na Índia (5.7 por 100.000 habitantes) do que no Brasil (24.44 por 100 mil habitantes em 2013).
Protesto em reação à violência contra mulheres.

 
A população carcerária na Índia é menor do que a brasileira tanto em números absolutos como em percentual da população total. (População carcerária na Índia – 33 por 100 mil habitantes   - 418.536 encarcerados; população carcerária no Brasil –- 342 por 100mil – 607.731 presos)
O número de habitantes por policial é muito maior na Índia do que no Brasil. ( No Brasil há 358 habitantes por policial; na Índia há941).  Isso resulta na menor necessidade de investir em presídios, prisões, contratação de policiais, custos com a segurança no orçamento e em melhor qualidade de vida, e sensação de segurança. A Índia mantem um nivel de criminalidade bem mais baixo, com menor investimento em aparatos de segurança.
Em praticamente todos os indicadores a violência na Índia é menor do que no Brasil, exceto para a ocorrência de suicídios.  Diferenças  no modo de lidar com a vergonha, a honra e a dignidade, bem como os impactos do uso de pesticidas na agricultura podem explicar essa maior incidência de suicídios na Índia.
A menor criminalidade e violência na Índia não se deve a investimentos em presídios, penitenciárias, forças policiais ou militares, ou ao encarceramento da população. Tampouco se deve apenas à redução de desigualdades que ocorreu depois da Independência em 1947.
Não são os freios e aparatos externos que reduzem a violência, mas a autolimitação interna, cultural, psicológica, espiritual a se cometer crimes e violências. Na Índia a autolimitação vem de dentro para fora, do senso de consciência e responsabilidade. Isso é produto de milhares de anos de aprendizado de convivência social que foi transmitido de uma geração para outra. Mais consciência significa menos violência e mais segurança. Uma consciência mais evoluída  induz mudanças de atitudes na relação com os outros. Várias  crenças contribuem para tal resultado. Assim, por exemplo, existe a crença de que toda ação produz consequências e de que aquele que pratica boas ações é recompensado e aquele que pratica mas ações é punido, seja nesta encarnação presente ou em outras vidas. Tal crença é um freio e uma autolimitação para a prática de más ações pois, pela lei do carma, a lei da ação e reação, quem errou paga, não há como escapar. Outra crença, de que Deus está dentro de cada um, como uma centelha divina, ajuda a cultivar esse lado positivo e inspirador do ser humano e não apenas o seu lado animal e voltado para conquistas materiais.
Do mesmo modo, é dada importância ao grupo e à comunidade que aprova ou reprova comportamentos e atitudes e isso tem valor, induz os indivíduos a se autolimitarem ou a pensarem duas vezes antes de cometer um crime ou uma violência.
Os fatores estruturais de caráter cultural e espiritual  são os que mais ajudam a explicar essa baixa incidência de violência e criminalidade na Índia. Alinhamos entre os fatores que levam à redução da violência:
1.      Ambiente de liberdade de expressão democrática, que alivia tensões e as canaliza construtivamente.
2.      Valorização das estruturas familiares - Na ausência de um estado provedor de bem estar social, a família é a instituição que oferece colchão de proteção,  de seguridade  e assistência. Em famílias estendidas há relações de respeito e confiança nos mais velhos. É praticado  o casamento arranjado,  e muitos jovens colocam nas mãos dos pais conduzir essa decisão crucial para suas vidas. A família é a mais resiliente e duradoura instituição do país, cultivada com senso de lealdade para com os deveres e valores do grupo comunitário ou casta ao qual se pertence.
3.      Há o efeito benéfico de valores culturais baseados em princípios filosóficos tais como a ahimsa (não-violência), praticada na luta politica por Gandhi e na vida cotidiana; crença no karma (lei que rege a repercussão de nossas ações positivas e negativas em nosso próprio destino); e aparigraha (desprendimento em relação às coisas materiais). A aplicação do princípio da tolerância,  a facilidade de conviver com a diferença e respeito à diversidade. A produção cultural, na mídia e no cinema, é fortemente relacionada com a transmissão da cultura  indiana.
4.      Ainda é forte a  visão de mundo espiritualizada, que crê  que Deus está dentro de cada um. Ao invés de cada pessoa se identificar com o corpo físico, identifica-se com o espírito único que está dentro de cada um.   
No campo da paz e da não-violência é proveitoso para os brasileiros conhecer a experiência indiana e aprender com ela.