sexta-feira, 13 de setembro de 2019

O capitalista não egoísta


Maurício Andrés Ribeiro
 

O capitalismo não existiria sem os capitalistas. Quem são  os capitalistas? São as pessoas físicas ou jurídicas que investem, compram ações e buscam o lucro. Se você é aposentado ou pensionista e um fundo de pensão gerencia suas aplicações, você também é um capitalista.
Os capitalistas em geral desejam o lucro máximo para suas aplicações financeiras. Para isso colocam à frente de empresas e corporações em que investem pessoas capazes de extrair o máximo de lucro com o mínimo de custos. Essas pessoas são em geral remuneradas proporcionalmente ao lucro e dividendos que proporcionam aos donos do capital, os acionistas e investidores. No afã de maximizar lucros muitas vezes praticam a gestão temerária, assumindo riscos para a segurança do trabalhador ou para  a segurança ambiental, e assumindo-se riscos de provocar desastres,. Há exemplos recentes disso na atividade de mineração
Nas relações econômicas a defesa intransigente do lucro, a ganância, a externalização de custos para os demais e a internalização de benefícios são exemplos de comportamentos egoístas. Na busca de internalizar lucros  as empresas externalizam custos que recaem sobre a sociedade de modo difuso e sobre o meio ambiente. Numa contabilidade integral que internalizasse custos muitas empresas deixariam de ser lucrativas.


 
Acionistas  ativistas protestam em frente à sede da Billiton na Austrália após o desastre de Mariana.
Fundos de investimentos que envolvem trilhões de dólares recentemente recomendaram a seus clientes que invistam em atividades que não degradem o ambiente.
Chefes de 130 bancos  que movimentam US$47 trilhões também reafirmam compromissos com sustentabilidade ambiental, proposta que já existia desde o protocolo verde no Brasil e a declaração de Colevecchio.
Será que os capitalistas estão descobrindo que o egoísmo dá prejuízo? Quando perguntei isso numa rede social, varias respostas demonstraram desconfiança e denunciaram que seria greenwashing, maquiagem verde, e desacreditaram de  tais propostas.
Os capitalistas sempre buscam o lucro, mas há sinais de alguma mudança no topo de empresas. Chefes de 181 corporações americanas em 2019 assinaram um documento no qual se comprometem a priorizar os interesses não apenas dos acionistas e investidores ( shareholders) mas também dos demais interessados naquela empresa (stakeholders). Propõem investir nos  empregados, lidar eticamente com fornecedores, apoiar as comunidades em que trabalham e preservar o meio  ambiente, gerar valor para os acionistas.
As diversas partes interessadas numa corporação. Os investidores e acionistas tem sido priorizados sobre os interesses das demais partes.

Pode-se perguntar:
Será veraz esse compromisso ou serão apenas palavras da boca para fora sem materialização prática na realidade?
Os chefes estariam dispostos a abrir mão de suas receitas para beneficiar a coletividade?
As corporações deveriam mudar seus critérios de remuneração dando melhores retornos aos dirigentes que beneficiem a todas as partes interessadas (stakeholders ) e não apenas aos acionistas e investidores ( shareholders)?
Esses dirigentes (CEOs) serão capazes de colocar essas ideias em prática em suas corporações?
Eles serão capazes de contagiar positivamente outras corporações para que abracem tais ideias e atitudes?
Ao assinar tais compromissos,  esses dirigentes de corporações americanas se aproximam dos acionistas engajados ou "concerned shareholders."
O movimento de acionistas engajados aponta na mesma direção do manifesto dos CEOs de grandes corporações: beneficiar todas e cada uma das partes interessadas nas atividades de um empreendimento e não apenas os detentores do capital.  Em contexto em  que os atores externos  não querem ou não podem atuar, um caminho possível é a ação de dentro para fora nas corporações. Os movimentos de acionistas ativistas ou acionistas engajados participam de assembleias das empresas e levam ali suas questões e propostas.
Esses dois movimentos, dos chefes de corporações e dos acionistas ativistas sinalizam para uma convergência pós-egoísta.

Quando os acionistas/investidores, detentores do capital, não forem mais tratados como stakeholders privilegiados e as demais partes interessadas tiverem prioridade, estaremos migrando em direção ao pós capitalismo. A questão central é se é possível migrarmos de comportamentos egoístas para comportamentos pós egoístas seja no capitalismo ou em qualquer outro tipo de contexto socioeconômico. Outros empresários se mexem quando vêm  ameaçados seus mercados consumidores no exterior e partem para uma ação não propriamente altruísta, mas de um egoísmo mais esclarecido e proteger seus interesses. Talvez esse seja um passo intermediário para se evoluir em direção à seva, ação desinteressada.
Os links abaixo sobre acionistas engajados ou acionistas ativistas ( concerned shareholders) informam sobre um tipo de ator que pode ter importância crescente, ao atuar de dentro para fora das corporações, influenciando decisões em assembleias.
Os capitalistas podem estar-se ecologizando. Sinais disso pipocam em toda parte. Ainda sao poucos, mas estao crescendo. Por razões contábeis, econômicas, práticas e de um egoismo mais esclarecido e não por motivações éticas, filosóficas, altruístas. Do emesmo modo como a abolição da escravatura começou pequena e culminou décadas depois com a libertação dos escravos, pode ser que estejamos no inicio de um movimento que um dia poderá dar bons frutos, com a domesticação do capital.












 

 

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Hidratar a formação dos urbanistas


Maurício Andrés Ribeiro
A água se torna assunto  prioritário de urbanistas e planejadores quando falta, quando  se apresenta com má qualidade ou quando seu excesso causa inundações nas cidades. Então, toma-se consciência de sua importância. Desperta-se para a necessidade de cuidar bem dela, preservá-la e proteger as fontes de abastecimento.

Cresce no mundo o movimento pelas cidades sensíveis à água, que tomam consciência dela, conhecem melhor seu ciclo, como geri-lo e planejá-lo.  Desenvolvem-se tecnologias para economizá-la. Na Austrália, país severamente afetado por escassez de águas, uma universidade criou um centro de cidades sensíveis à água.
Em muitas cidades os rios tornaram-se invisíveis ao serem canalizados, cobertos com pistas de rolamento para veículos.  Sistemas de alerta para interditar tráfego em períodos de pico de cheia passam a ser necessários nos fundos de vales já ocupados.
É possível recuperar os rios e reintegrá-los à paisagem urbana, como mostram várias experiências no mundo. No Porto, em Portugal, há trabalho relevante de revitalização de rio  urbano de Pedro Teiga  do Ribeira da Granja,. Manter parques lineares ao longo dos fundos de vales é uma forma de reduzir riscos à vida das pessoas e prejuízos econômicos.

Várias cidades promovem a renaturalização de fundos de vales, com demolição de obras de avenidas sanitárias, devolvendo as várzeas aos rios. No Japão esse tipo de cuidado é praticado no urbanismo: a enchente inunda áreas não edificadas e quando ela se vai retomam-se as atividades daquela área verde.
Várzea ocupada e várzea protegida

Renaturalização de rios urbanos
 
A pesquisa ambiental e a geração de conhecimentos locais constituem um pré-requisito para elaborar os projetos e  sua posterior execução.
No campo da educação, as escolas de  arquitetura e urbanismo precisam superar sua hidroalienação.  Conhecimentos  sobre a água superficial e subterrânea nos locais em que serão implantados bairros ou cidades, por meio de pesquisas e levantamentos técnicos, são pré-requisitos para a elaboração dos projetos, das normas urbanísticas de uso e ocupação do solo. É útil produzir conhecimento sobre a infiltração de água de chuva coletada nos telhados das casas e pesquisas dos tipos de pavimentação para permitir infiltrar a água de chuva no terreno ao invés de deixar que ela escoe.
Para que os municípios atuem de modo responsável para com a água, é necessário hidroalfabetizar políticos e administradores, além dos próprios engenheiros civis, sanitaristas, arquitetos e urbanistas para que se tornem hidroconscientes. Além disso, a hidroconsciência dos cidadãos, despertada quando sentem na pele o drama da falta de água ou seu excesso durante as inundações é importante para influenciar as prioridades dos governos.
Resgatar o urbanismo de sua hidroalienação e hidratar o planejamento e a gestão urbana ajudam se prover segurança hídrica às populações urbanas.
Entre os temas prioritários para a hidroeducação de urbanistas e demais profissões estão: águas subterrâneas e uso do solo; Captação de água de chuva; Dessalinização; Reuso; Produtores de água; Cidades hidroconscientes.; Micro e macrodrenagem urbana.; Impermeabilização do solo;  Sistemas e obras de infraestrutura: energia, pavimentação e saneamento ambiental (drenagem, abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos).
Os textos abaixo, publicados neste blog, podem ser úteis para a formação de urbanistas hidroconscientes:
















Hidroalfabetização







Temas emergentes sobre a água no Brasil
Ecologizar a gestão das águas
Escalas da gestão das águas
Municípios, uso do solo e gestão das águas
Viver em harmonia com a água, uma lição japonesa

 

 

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Municípios, uso do solo e gestão das águas


Maurício Andrés Ribeiro 

A Constituição Federal de 1988 dispõe que cuidar do uso e da ocupação do solo é competência dos municípios, que atuam por meio de planos diretores, leis orgânicas municipais, leis de uso e ocupação do solo, leis de loteamento ou parcelamento, Estatuto da Cidade e normas urbanísticas. Também podem fazê-lo por meio da criação e implantação de unidades de conservação.
Devido a essas responsabilidades legais, as ações municipais incidem direta ou indiretamente na gestão das águas. A produção de água envolve o uso do solo rural, onde ela é produzida e o uso do solo urbano, onde é distribuída, flui e é devolvida ao ambiente natural.
No município se localiza uma multiplicidade de usuários da água, desde o consumidor doméstico até os usos industriais, minerários e a irrigação. Cabe a ele, portanto, parte da responsabilidade referente à prevenção de conflitos entre usuários, que podem ser evitados por meio da aplicação dos instrumentos de ordenamento territorial.
Não se pode obrigar o município a cumprir determinações de outras escalas de governo e de planos de recursos hídricos, mas é possível induzir comportamentos hidroconscientes. Incentivos econômicos, como os oferecidos pelo ICMS ecológico, induzem os municípios a serem ambientalmente responsáveis. Leis estaduais de ICMS ecológico estimularam municípios a introduzirem em suas prioridades a criação e a manutenção de unidades de conservação (agenda Verde), bem como o licenciamento de aterros sanitários e usinas de lixo (agenda Marrom). Incentivos similares podem ser oferecidos a municípios que disponham de plano de ordenamento territorial hidricamente conscientes, que considerem a gestão das águas superficiais e subterrâneas, a drenagem e a recarga de aquíferos (agenda Azul).
Por meio de autorizações e alvarás, municípios aprovam usos do solo em seu território. Com vontade política e competência técnica e jurídica, podem negar alvarás ou licenças para usos, parcelamentos ou loteamentos do solo. Autorizações ou licenças ambientais estaduais ou federais dependem da anuência municipal, por meio de declaração de que empreendimento a ser licenciado não se localiza em desacordo com o uso e ocupação do solo municipal.
São múltiplas as responsabilidades municipais que incidem na produção e na demanda das águas: proteger mananciais de superfície e subterrâneos e áreas de preservação permanente, criar e manter parques urbanos, cuidar das lagoas urbanas, proteger áreas de recarga de  aquíferos, as inundações ribeirinhas, agravadas pelas ilhas de calor sobre as cidades, gerenciar o uso do solo de modo hidricamente responsável, evitar  os deslizamentos de encostas, prover o saneamento - o abastecimento, o esgotamento sanitário, os resíduos sólidos, e drenagem que evite inundações; legislar para que as  edificações  e o paisagismo sejam hidroeficientes.

Figura: Fonte: (Tucci, 2003) in Avaliação Ambiental integrada de bacia Hidrográfica, de Carlos E.M. Tucci e Carlos André Mendes, 2006.
A gestão do lixo é essencial, pois sua disposição inadequada agrava enchentes urbanas, ao entupir os sistemas de drenagem. Também prejudica a qualidade das águas superficiais e subterrâneas quando sua disposição final é feita em lixões. A gestão de resíduos exige ações de todos e, especialmente, um forte envolvimento das cidades e dos cidadãos.
Os cursos d’água têm leitos de vazante, leitos menores e leitos maiores que enchem durante chuvas intensas. Inundações e enchentes urbanas se agravam quando os espaços para a ocupação imobiliária e para o automóvel invadem as faixas ribeirinhas nos fundos de vales e são construídas avenidas “sanitárias”, que encaixotam os rios urbanos e tiram o espaço natural da água.
As enchentes têm uma componente climática associada ao aumento da precipitação de chuvas e uma componente não climática, como, por exemplo, o entupimento de redes de drenagem pelo lixo ou o escoamento superficial aumentado devido à impermeabilização dos solos.
Em muitas cidades brasileiras, encostas íngremes e fundos de vales sujeitos a riscos foram ocupados. As cidades deram as costas à água. O planejamento urbano se hidroalienou e desconhece o ciclo da água.  Grande parte da infraestrutura hídrica nas cidades é subterrânea:  tubulações prediais, redes de abastecimento, redes de coleta de esgoto, redes de drenagem estão fora das vistas do cidadão e são pouco conhecidas.
Em Belo Horizonte, pessoas morreram afogadas dentro de seus veículos que trafegavam por uma avenida de fundo de vale no momento de uma súbita enchente. 
A proteção da cobertura vegetal é uma forma de reduzir os riscos de erosão e deslizamentos de encostas. É também um modo de trabalhar a favor da natureza para que ela preste serviços valiosos de estocagem de água no subsolo.

 

 

Viver em harmonia com a água, uma lição japonesa

Maurício Andrés Ribeiro 

É inspirador observar o relacionamento harmônico com a água de modo integrado com o uso do solo e as florestas no Japão.[1] Cercado de mares e muito rico em fontes de água, originárias dos Alpes japoneses, suas montanhas ocupam 70% da superfície e constituem a espinha dorsal do arquipélago. Elas têm ocupação humana rarefeita em contraste com os vales em que há cidades muito densamente ocupadas.
As densidades populacionais e de ocupação do solo são muito altas nas metrópoles japonesas e no país. Com área total de 372 mil Km2 (equivalente à área do Estado do Rio Grande do Sul) e com 126 milhões de habitantes, a densidade média da população é de 337 habitantes por Km2., ou seja, cerca de 15 vezes maior do que a média brasileira.  
Os Alpes japoneses são, em sua maior parte, ocupados por florestas, que servem para a proteção dos solos e o controle da erosão. Ainda que a maior parte das florestas seja de propriedade privada, sua exploração e a comercialização do produto são usualmente feitos por meio de associações florestais. Sendo o país de clima temperado, a vegetação demora 80 anos para ser explorável e, desta forma, as florestas são consideradas como poupança, mais do que como investimento com retorno em curto prazo.
Apesar da altíssima densidade populacional, os fundos de vales em cidades japonesas são mantidos não edificados. Preservam-se os fundos de vale não edificados nas cidades, com canais abertos e parques lineares, que são inundados com as chuvas. Quando as águas se vão, não deixam danos econômicos ou sociais. A água é integrada no paisagismo e no urbanismo de modo harmônico e leva em consideração questões econômicas e de segurança em casos de inundações.
Fundo de vale não ocupado em cidade japonesa reduz prejuízos com enchentes.
Foto: Maurício Andrés

O uso da terra urbana e rural está sujeito a regras elaboradas. Um perfil típico é a ocupação urbana das faixas de interseção entre as montanhas e os vales. As montanhas são usadas para florestamento e preservação ecológica, além do uso econômico e os vales, usados para a agricultura intensiva que, em muitos casos, aproveita os espaços vazios nas periferias urbanas, onde os terrenos não construídos são raramente ociosos. Hortas, pomares e plantações diversificadas ocupam essas valiosas faixas, contribuindo para o abastecimento alimentar. No Japão, programas intensos de florestamento de encostas, de criação de cooperativas florestais e de proteção à cobertura vegetal reduziram as inundações nas planícies e os prejuízos à economia agrícola.
Mas isso nem sempre foi assim e as práticas de convivência harmônica com a água resultaram do aprendizado social sobre os riscos e os custos da ocupação inadequada dos vales. No passado houve desflorestamento das montanhas, erosão e assoreamento nos vales, perdas agrícolas, fome e problemas sociais.  O exemplo seguinte é elucidativo: no início do século XX o Japão sofria sérios problemas de enchentes originadas em suas montanhas, que haviam sido desflorestadas. As planícies com plantações de arroz eram frequentemente inundadas por enchentes que causavam prejuízos, perda da produção agrícola e fome. O país, que então se abria para o mundo, buscou no exterior apoio de quem conhecia bem as inundações: contatou os holandeses, que sabiam conter o mar com diques e evitar que as terras baixas fossem inundadas. Os holandeses estudaram o problema das enchentes japonesas e propuseram ações baseadas em sua experiência. Não tiveram sucesso. Os japoneses resolveram, então, buscar sua própria solução para o problema. No plano decenal de 1884, que fixou as linhas para a entrada do Japão no período moderno de sua história, advogava-se a importância de melhorias contínuas nas tecnologias tradicionais disponíveis no país. Assim, observaram que numa das ilhas os problemas de enchentes eram menores que no restante do país. Ali se protegiam as montanhas com florestas e o uso da lenha não gerara muito desmatamento. Disseminaram em todo o país aquelas práticas tradicionais. Programas intensos de proteção de encostas reduziram as inundações. Cooperativas florestais foram criadas para administrar as florestas e manejá-las de forma sustentável, usando a madeira para mobiliário e construção civil. O florestamento dos Alpes japoneses foi estratégico para conter sedimentos e erosões. As medidas de prevenção e controle evoluíram e compreendem a manutenção integral da cobertura de florestas nas áreas montanhosas, a construção de represas para conter a terra que escorre das montanhas junto com a água de chuva e a proteção de encostas por meio de redes metálicas ou de plástico, que previnem os deslizamentos de terra. Quando os japoneses aprenderam a cuidar melhor de suas montanhas e florestas, evitaram o desmate descontrolado, reduziram a erosão e as perdas agrícolas.
Hoje, o Japão ensina a aproximação com a água, voltando-se de frente para os lagos, rios e regatos. As cidades procuram ter intimidade com a água, evitando que córregos sejam aprisionados em canais fechados. Promove-se a reintegração urbana da paisagem ribeirinha e dos seus animais, como rãs e libélulas. Evita-se asfaltar as vias, para não agravar problemas de drenagem e provocar inundações. Evita-se que a água de chuva escorra diretamente para os rios; ela infiltra lentamente no solo. Represas de armazenagem e regularização da drenagem são previstas nos parcelamentos urbanos. Adotam-se sistemas de armazenagem da água de chuva em tanques subterrâneos. Age-se preventivamente na organização humana do espaço e na ocupação do solo.
 O Japão ensina que pode ser simples a solução para se prevenir inundações e para se articular a gestão da água com o uso e ocupação do solo. Ensina que a aprendizagem coletiva de convivência harmônica com a água é um processo civilizatório e cultural em que se aprende a partir dos erros cometidos, em aproximações sucessivas.
O Japão mostra que a aprendizagem coletiva é um processo cultural.
Os japoneses aprenderam com a dor, com o sofrimento e com os prejuízos econômicos provocados por terremotos e inundações, a atuar preventivamente e com prudência ecológica no seu ordenamento territorial. O exemplo japonês mostra uma sociedade que aprendeu a dar respostas adequadas aos problemas de injustiças sociais e de segurança ecológica e ambiental. O Brasil tem muito a aprender com a experiência japonesa nesse campo.

 



[1] O Japão é estudado no livro Colapso, de Jared Diamond, como um exemplo positivo de civilização que aprendeu a se relacionar de modo mais amigável com o ambiente e a água.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Sri Aurobindo e a liberdade


Maurício Andrés Ribeiro

A liberdade é um tema presente na vasta obra de Sri Aurobindo, que tratou da liberdade de expressão e de opinião, da liberdade nacional e política e da liberdade psicológica, interior e espiritual.
Sobre a importância da liberdade de palavra e de opinião e os limites da autoridade dos governantes,  ele escreveu:  “A todos os membros de qualquer instituição pública iniciada e administrada pelo povo de qualquer nação civilizada é dada plena liberdade para oferecer sua opinião sobre qualquer questão, de acordo com regras  universalmente reconhecidas de todas as instituições públicas. Nenhum presidente tem a autoridade para suprimir esta liberdade-este direito natural de cada membro da sociedade. O presidente é apenas um servo do conjunto formado pelo ajuntamento das pessoas que o elegem. Há regras para regulamentar a sua conduta. Nenhum presidente deve quebrar essas regras. Ele não pode sufocar a liberdade de expressão e liberdade de opinião”. (848 Speeches 1907 – 1908)
Entretanto, a liberdade de expressão e de opinião pode ser usada de modo indevido se for praticada com ódio,  preconceitos, desrespeito pelos outros e por suas sensibilidades. Nesses casos  quem a pratica precisa estar preparado para sofrer as reações daqueles que se sentem ofendidos, como por exemplo aconteceu no caso islamofóbico do Charlie Hebdo, jornal francês que publicou charges ofensivas contra símbolos religiosos  muçulmanos e sofreu um ataque terrorista em reação. Sri Aurobindo  enfatizava a importância de a liberdade ser praticada com amor : “É somente o amor que pode impedir o uso indevido da liberdade; é apenas a Fraternidade que pode tornar a igualdade tolerável.”  (548 - Epístolas/cartas do exterior)
Essa é uma observação valiosa para o mundo contemporâneo em que manifestações de liberdade se expressam sem respeito ou consideração para com os valores dos demais e atraem reações violentas.
No início do século XX, quando formulou a doutrina da resistência defensiva, que orientou a luta pela libertação da Índia em relação à dominação inglesa, ele focalizava a importância da   liberdade nacional.   “A liberdade é o primeiro requisito para a saúde  e vida vigorosa de uma nação. Uma dominação estrangeira é em si uma condição, não-natural e se permitida, deve trazer outras condições insalubres e não naturais nas pessoas subjugadas que levará a decadência fatal e desorganização. A lei estrangeira não pode construir uma nação, apenas a resistência à lei estrangeira pode soldar os elementos discordantes de um povo em uma unidade indivisível. Quando um povo, predestinado à unidade, não pode realizar o seu destino, a lei estrangeira é uma disposição da natureza pela qual a necessária e convincente  pressão é aplicada para conduzir suas peças discordantes à concordia.” (Bande Mataram, Calcutta, April 27th, 1907)
Para ele, no contexto da luta pela independência indiana, a libertação política era um passo em direção à liberdade espiritual: “Pela nossa liberdade política, recuperaremos uma vez mais a nossa liberdade espiritual. Uma vez mais na terra dos santos e sábios queimará o fogo do antigo Yoga e os corações de seu povo serão levantados para as vizinhanças do Eterno”. (876 Bande Mataram)
Ele usava conceitos psicológicos  e espirituais para definir a liberdade: “Estar consciente do self é liberdade. Self eu tenho e, tendo self, sou livre.”  (620 Pondicherry, c. 1927 – 1947)
Para Sri Aurobindo, a consciência de ser uno  com o todo, bem como a capacidade de superar o egoísmo e o auto interesse estreito, constituem formas de ser livre interiormente e espiritualmente.

 


 

 

 

 

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Carnivorismo e devastação florestal [1]

Maurício Andrés Ribeiro
Enquanto escrevo, as TVs e os jornais dão destaque para notícias sobre as queimadas florestais. Há muita controvérsia e narrativas contraditórias. Vejo nas redes sociais as convocações para manifestações pela Amazônia em diversas cidades do Brasil e no mundo.
Sei que mais importante do que redigir e divulgar essas palavras e ideias, da boca para fora, são as ações efetivas que posso realizar da boca para dentro. Depois de escrever este texto, o que melhor posso realizar em favor das florestas é prestar atenção ao que vou comer nas próximas refeições e escolher conscientemente meus alimentos.
Nas origens das queimadas e do desmatamento está a pressão econômica da agricultura e pecuária. No Brasil, a pressão sobre as florestas e o desmatamento decorrem do plantio de soja e da pecuária para exportar carne ou abastecer o mercado interno. Desmata-se, queima-se, prepara-se a terra para   o plantio ou para o capim das pastagens, produz-se soja ou cria-se gado, exporta-se grãos que se destinam a alimentar animais.
Grande parte da terra utilizada no Brasil destina-se à pecuária extensiva. Outra parcela substancial destina-se ao cultivo de produtos para alimentar os animais: assim, por exemplo, o milho é, de longe, a cultura com maior área ocupada, e sua maior parte destina-se à alimentação animal. Também a soja é cultura que ocupa grande área: ela é, em sua maior parte, exportada para alimentar animais em outros países, que por sua vez acabam na boca dos carnivoristas.
O carnivorismo se espalha pelo mundo de modo diferenciado. No Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Austrália, nos EUA e no Canadá come-se mais de 30 kg per capita de carne bovina por ano. À medida que aumenta a renda média,  tende a aumentar o consumo per capita de carne, o que é estimulado por campanhas de propaganda do carnivorismo nas TVs, nos jornais, em revistas e na internet. 


Figura 1- Consumo per capita de carne bovina por ano. ONU-FAO. Dados de 2013.

Cadeias alimentares são as transferências de energia alimentar desde os produtores básicos – as plantas –, para os animais herbívoros – consumidores primários –, até os animais carnívoros que se alimentam dos herbívoros ou de outros carnívoros. A cada degrau que se sobe na cadeia  trófica, há perdas de energia. As plantas absorvem e metabolizam cerca de 1% da energia solar que sobre elas incidem. Os animais  herbívoros aproveitam cerca de 10% da energia contida nos vegetais.  Os animais carnívoros ou os seres humanos que se alimentam de carne  de animais aproveitam apenas 10% da energia que eles absorveram dos vegetais.
O homem está entre as espécies que absorvem energia de vários elos da cadeia alimentar e tem uma diversidade de dietas alimentares, em função do ambiente em que vivem de seus hábitos culturais, de seus valores  espirituais ou religiosos. Há seres humanos onívoros, carnívoros, frutívoros, vegetarianos, veganos etc. e uma combinação deles.

Figura 2-  A cada degrau  que  se sobe na cadeia alimentar, há perdas de energia.

A  demanda por alimentos que se encontram no alto da cadeia alimentar – constituídos pelos produtos de origem animal – consome grande quantidade de terra, água, recursos naturais e defensivos agrícolas; motiva os fazendeiros a expandir as áreas destinadas a pastagens, provoca a destruição de florestas e perdas de solo fértil. Uma dieta alimentar baseada em proteínas animais tem elevado custo ecológico e pressiona o uso da terra, se comparada com dietas baseadas em grãos, hortaliças e proteínas de origem vegetal.
 Dietas alimentares baseadas em proteína vegetal, nas quais o homem atua como consumidor primário, são poupadoras de água, do espaço e do meio ambiente. Permitem atender às necessidades de alimentos de maior número de pessoas, a partir da utilização de menor área cultivada, exercendo, dessa forma, menor pressão para a expansão da área cultivada e a eliminação das florestas.
Hábitos alimentares de baixo consumo de proteína animal podem facilitar o acesso da população humana  a alimentos e ao mesmo tempo não pressionarem excessivamente a capacidade de suporte do planeta. Superar o carnivorismo é um passo  em direção à sustentabilidade no planeta. A mega crise da evolução atual, da qual as mudanças climáticas são um dos aspectos, clama por evolução da consciência humana que induza a mudanças de hábitos tão básicos e elementares como o de se alimentar.
O hábito alimentar é um campo em que cada um pode experimentar, individualmente, reduzir seu impacto sobre o ambiente ou a emissão de gases de efeito estufa. Ações e atitudes nesse campo são autônomas, não dependem de acordos internacionais ou de políticas governamentais.
O hábito alimentar é culturalmente condicionado e reflete o estágio de consciência de cada pessoa. Algumas sociedades tiveram a lucidez e a força de vontade de desenhar suas dietas alimentares de modo a não romper a capacidade de suporte do seu território e reduzir os riscos de colapso.  A Índia é uma das mais conhecidas, com o vegetarianismo e a sacralização dos animais, que lhe proporcionaram sustentar-se por milênios com baixa pegada ecológica.
Diferentemente dos europeus e outras sociedades carnivoristas, a Índia nunca precisou colonizar outros países para deles extrair os recursos que sustentassem seu modo de vida. O vegetarianismo – um dos aspectos materiais do espiritualismo indiano – baseia-se no princípio do ahimsa, ou não violência, que se estende também aos animais. Adotado há milênios por razões éticas e ecológicas, o vegetarianismo indiano foi um dos fatores que ajudaram a preservar a biodiversidade na Índia. A tradição religiosa contribuiu para sustentar tal hábito, ao sacralizar espécies animais e vegetais. O vegetarianismo indiano é uma fonte antiga de inspiração devido ao seu impacto reduzido sobre os recursos naturais, uso da terra e da água.
Jared Diamond (Colapso, 2005, p. 356) relata o caso da ilha de Tikopia, no Pacífico Sul, com 4,7km2 e densidade de 309 pessoas por quilômetro quadrado, continuamente habitada há quase três mil anos. Uma das estratégias para garantir a capacidade de sustentação do ambiente na ilha foi a mudança de hábitos alimentares, eliminando aqueles que implicam competição pelo uso da terra: “Uma decisão significativa tomada conscientemente por volta de 1.600 d.C., e registrada pela tradição oral, mas também atestada arqueologicamente, foi a matança de todos os porcos da ilha, substituídos como fonte de proteína pelo aumento do consumo de peixe, moluscos e tartarugas.”
Tikopia e a Índia são exemplos de sociedades que reduziram o carnivorismo ao constatarem os benefícios sociais que essas mudanças de hábitos alimentares trariam.
Aquilo que a Índia estruturou há milênios e o que os ilhéus de Tikopia decidiram há algumas centenas de anos pode ser uma decisão sábia de ser adotada globalmente no contexto das mudanças climáticas e da atual crise da evolução. Uma das vozes que defende esse caminho é Lovelock (Gaia-Alerta final, pg. 80) que observa  “Nossos líderes, se fossem todos excelentes e poderosos poderiam proibir a manutenção de animais de estimação e gado, tornar compulsória a dieta vegetariana e incentivar um grande programa de síntese de alimentos por indústrias químicas e bioquímicas; fazer isso apenas restringirá a perda de vida a animais de estimação e gado. É alentador que o presidente do IPCC, Dr. Pachauri, tenha recomendado uma dieta vegetariana como um caminho a seguir.”
Atualmente crescem a consciência e os alertas sobre esse tema. O professor E. O. Wilson, de Harvard,  em seu livro “O Futuro da vida” expressa as vantagens de renunciar ao consumo de carne: "Se todos aceitassem uma dieta vegetariana, o atual 1,4 bilhão de hectares de terras aráveis seria suficiente para produzir alimentos para 10 bilhões de pessoas." O vegetarianismo poupa espaço, recursos naturais e o meio ambiente, conseguindo, com baixo uso de recursos naturais, um alto rendimento energético alimentar.
Os consumidores podem ajudar a evitar queimadas  e proteger a Amazônia, alterando seus hábitos alimentares. Há alguns sinais de que isso está acontecendo com os consumidores brasileiros. Recentemente, empresas de alimentos começaram a propaganda de burguers vegetais com grandes anúncios de página inteira nos jornais. Eles detectaram esse mercado crescente e querem ter sua participação nisso.


Figura 3- Propagandas de empresas concorrentes que oferecem burguer vegetal em grandes jornais brasileiros. Agosto de 2019. 

Para o Brasil ser sustentável e proteger seus ecossistemas é fundamental caminhar em direção a mudanças globais e locais  nos padrões de consumo alimentar.
É estratégico para o Brasil que o padrão de demanda dos consumidores seja cada vez mais consciente e responsável exigindo  que a produção também seja feita  de forma sustentável.
Um indivíduo que evolua de um para outro estágio de consciência e que adote hábitos no sentido de reduzir ou abolir seu consumo de carne faz pouca diferença no cômputo global. Mas quando tal mudança ocorre em toda uma cultura e sociedade, com milhões ou bilhões de pessoas, o benefício ecológico e climático pode ser significativo. Quanto mais pessoas se transportarem de um estágio ecoalienado para um estágio mais avançado de consciência e adequarem a ele seus hábitos alimentares, mais se poderá reduzir os impactos negativos associados a esse consumo: o sofrimento animal, as doenças humanas e os danos  causados pelas emergências climáticas e ambientais.
Quando  e se europeus, chineses, árabes e  demais carnivoristas derem adeus a esse hábito,  estarão dando sua parcela de contribuição para a proteção das florestas tropicais e para reduzir queimadas e desmatamentos.

 

 



[1] Publicado originalmente em O Teosofista. Ano XIII -Número 148 – Edição de Setembro de 2019