terça-feira, 16 de julho de 2019

Identidade terráquea e cultura de paz


Identidade terráquea comum pode induzir a uma cultura de paz.

Identificar-se com um país e identificar-se com o planeta

Maurício Andrés Ribeiro

As questões da identidade podem ser abordadas em diversas escalas, do micro ao macro.
A biometria registra que não há duas impressões digitais iguais. A tecnologia do reconhecimento facial identifica cada indivíduo com suas características únicas.
Minha carteira de identidade oficial traz uma foto, a impressão digital do polegar, os nomes dos pais, local e data de nascimento, minha assinatura. Sou um indivíduo com identidade própria.
Meu local de nascimento – município, estado, país -  é o mesmo de vários outros indivíduos. Em cada nível da federação compartilho minha identidade com muitos concidadãos e compatriotas.
Sexo, gênero, raça, cor, são características que também me identificam.
Muitas das identidades que assumimos são escolhas feitas ao longo da vida, culturalmente e socialmente condicionadas. A roupa é sinal de identidade de um povo, de um grupo ou um cidadão. A roupa é mensagem cultural, sinal visual que indica posto, posição, graduação, status social, ocupação. Denota gosto ou a falta dele, tem conotações estéticas. Diferencia categorias profissionais ou sociais: os macacões, os colarinhos-brancos, as fardas, os fardões, as togas, os hábitos, os uniformes e os trajes para ocasiões especiais de núpcias, de domingo, de festa ou de trabalho, dos astronautas, as fantasias.
No Brasil multirracial há inúmeras religiões; nasci e fui criado na tradição de uma delas. Ao longo da vida muitos de nós  fazem outras escolhas e se identificam ou têm afinidades com outros grupos religiosos ou espirituais. Se me fanatizo, me torno intolerante com os que abraçam outras religiões ou ideologias e sinto necessidade de os diminuir ou destruir.  Quando me filio a um partido político ou a um sindicato,  compartilho essa identidade com meus companheiros de escolha.  Se torço por um time de futebol, tenho afinidade com aqueles de minha mesma torcida. Quando me radicalizo, participo de brigas de estádio e passo a considerar como inimigos aqueles que torcem por outro time.
Exemplos de micro identidades: ser torcedor do time x ou y; ser alinhado com a ideologia, religião ou partido a ou b; ser cidadão de um país, província, paróquia ou bairro; ser da família y ou z; pertencer à corporação, tribo, turma, facção criminosa, quadrilha, gangue ou grupo mafioso a, b ou c etc.
As várias escalas da identidade, da indivídual à do planeta.
A identificação em escala nano ou micro podem levar a divergências, disputas, conflitos, violência. Micro identidades enfatizam a diversidade e podem induzir a desunião. Em muitos campos da atividade humana e em muitas construções ideológicas ressalta-se o que nos separa ou aquilo em que divergimos.
Outras identidades são determinantes e não temos sobre elas a liberdade de escolha, são dados de nosso destino. Trata-se de identidades macro, numa escala maior. Exemplos de macro identidades: ser cidadão do mundo, ser membro da espécie humana, ser terráqueo.
Recorrer às macro identidades pode ser um modo de evitar cisões e rupturas e construir a união necessária para enfrentar conjuntamente os mega riscos e perigos diante de todos. As macro identidades induzem a descobrir a unidade, união e convergências ao focar naquilo que nos aproxima ou une  e traz afinidades. Para construir a paz, pode ser valioso encontrar denominadores comuns e pontos de união e unidade para além das diferenças.
Em contextos de crise e de emergências – climáticas, ambientais e outras - forças divergentes tendem a separar as pessoas e os grupos e colocá-los uns contra os outros. “Em casa em que não tem pão todos gritam e ninguém tem razão”, diz o dito popular. Nesses contextos é bom lembrar que minha identidade é terráquea e meu lugar de fala é o de um habitante do terceiro planeta, a Terra, que gira em torno de uma estrela de quinta grandeza, o Sol, na periferia da Via Láctea, uma das bilhões de galáxias deste universo.










sexta-feira, 12 de julho de 2019

A arte e a Essência para além das aparências


Maurício Andrés Ribeiro

O fotógrafo Sebastião Salgado, em depoimento a Dráuzio Varela, ressaltou que depois de viajar,  observar e fotografar em muitos países,  fez uma viagem para dentro de si mesmo. Constatou que para além da diversidade das aparências há uma  essência que é a mesma, que fronteiras são artificiais e que somos  parte  de um todo e o mesmo ser humano, com o mesmo comportamento básico.
A família do homem - a unidade humana vista por fotógrafos
Nos anos 60 uma grande exposição de fotografias sobre a família do homem (The Family of man) no MoMA de Nova Iorque retratava a diversidade de tipos, rostos, culturas humanas e propunha  que acima disso estava uma unidade, a da espécie.
Por meio da fotografia,  forma de expressão artística que retrata a diversidade do mundo percebido pelo olhar humano, se constata que para além das aparências há uma unidade, uma essência comum na família humana. Se a  visão analítica tende a separar, a visão sintética permite superar  o nível básico das diferenças para encontrar denominadores comuns essenciais.
Durante toda minha vida convivi com uma artista espiritualizada, minha mãe, que fez essa jornada em busca da essência. A perspectiva macro e evolutiva, a fraternidade universal  e ao mesmo tempo familiar, o aprendizado permanente e progressivo, o respeito à liberdade de visão de cada um estão expressos em seus escritos. Maria Helena busca a essência em sua arte e em sua capacidade de enxergar para além das aparências da realidade sensível.  Ela afirma que  a verdadeira essência da arte  é  libertar a mente das tensões e conflitos e penetrar no recinto do sagrado, alcançar o invisível, aquilo que está por detrás de todas as aparências. Ela constata as diferentes fragmentações que tentam sobreviver sob o mesmo céu e mostra a importância de “quebrar os departamentos que desejam empacotar a verdade em pratos feitos, fazer desaparecer por completo o EU e o TU, para apenas permanecer a ESSÊNCIA.” Em busca da síntese e da integração ela escreve que “A síntese Oriente–Ocidente e a integração planetária estão dentro de nós mesmos, no equilíbrio do lado direito e esquerdo de nosso cérebro, razão e intuição. A harmonização desses dois aspectos de nossa individualidade torna-se cada vez mais uma necessidade no campo da consciência. Já não se trata somente da integração do planeta, mas do retorno à Essência de onde viemos e para onde vamos.”

Painel A dinâmica do cosmos na UNIPAZ-DF por Maria Helena Andrés
Um dos iogues mais lúcidos, Sri Aurobindo reconheceu esse objetivo da Arte: “Seria objetivo da Arte (numa sociedade espiritualizada) não somente apresentar imagens do mundo subjetivo e objetivo, mas vê-los com a visão significante e criativa que há atrás das aparências e revelar a Verdade e a Beleza das quais as coisas visíveis e invisíveis para nós são as máscaras e símbolos de figuras significantes.“ (v.15 -241) “Atrás das aparências do universo há a realidade do ser e da consciência”  Ele escreveu sobre a essência e as aparências: “A razão humana tem uma dupla ação: misturada ou dependente, pura ou soberana. A razão aceita uma ação misturada quando se limita ao círculo de nossa experiência sensorial, admite sua lei como verdade final e se ocupa apenas com o estudo de fenômenos, ou seja, com as aparências das coisas em suas relações, processos e utilidades. Essa ação racional é incapaz de conhecer o que é, ela conhece apenas o que parece ser; ela não tem uma sonda com a qual explorar as profundezas do ser, ela pode apenas explorar o campo do devir. Por outro lado, a razão afirma sua ação pura quando, aceitando nossas experiências sensíveis como ponto de partida, mas recusando-se a ser limitada por elas, vai além, julga, trabalha conforme sua própria lei e se esforça para chegar a conceitos gerais e inalteráveis que se apegam não à aparência das coisas, mas àquilo que permanece por trás de suas aparências. A razão pode chegar aos seus resultados pelo julgamento direto, ao passar imediatamente da aparência àquilo que permanece inalterado por detrás e, nesse caso, o conceito ao qual ela chega pode parecer um resultado da experiência sensível, dependente desta experiência, embora na realidade seja uma percepção da razão trabalhando conforme sua lei própria. “ (A Vida Divina, Livro I, capítulo 8).

Ele conclui: “... diz-se que na história é sempre o inesperado que acontece. Mas não seria o inesperado se os homens pudessem tirar os seus olhos da superfície e olhar para a substância, se eles se acostumassem a colocar de lado as aparências e a penetrar além delas na realidade secreta e disfarçada, se eles parassem de ouvir o barulho da vida e, ao invés, ouvissem o seu silêncio.”

terça-feira, 9 de julho de 2019

Egoísmo e sua superação

Da ação egoísta à eco-ação e daí ao serviço abnegado, seva.

Maurício Andrés Ribeiro

Manifestações de egoísmo acontecem nas relações pessoais, amorosas, políticas, econômicas, internacionais. O egoísta coloca em sua escala de prioridades   em primeiro lugar a si próprio e seu bem estar pessoal. Nas relações amorosas o egoísmo se manifesta no apego e na possessividade.
Na política, corporações defendem  interesses pontuais e particularistas, seus privilégios  e  resistem a abrir mão deles.  Os interesses  dos demais segmentos e os interesses difusos ou coletivos ficam em segundo plano.  
Nas relações econômicas a defesa intransigente do lucro, a ganância, a externalização de custos para os demais e a internalização de benefícios são exemplos de comportamentos egoístas.
Nas relações internacionais, querer colocar-se acima dos demais pode levar a desastres, como aconteceu com a Alemanha nas guerras mundiais. Atualmente uma imagem perturbadora eloquente do egoísmo são os cruzeiros de luxo no mar Mediterrâneo que circulam indiferentes ao lado de boias com refugiados em busca de sobrevivência e as cidades em que áreas miseráveis se justapõem a bairros luxuosos. Sinais do egoísmo  em defesa de bens e riqueza são as limitações ao livre ir e vir  com cercas eletrônicas, muros, arame farpado,  guardas, vigias.
Há quem argumente que o egoísmo é uma característica fundamental dos genes dos seres vivos, como o biólogo  Richard Dawkins em O Gene Egoísta (1976); há quem, como Ayn Rand,  apoia o egoísmo racional e ético em que indivíduos voltados para o autointeresse podem praticar ações que levam a benefício coletivo. Tais visões consideram o egoísmo um fato da natureza ou o defendem como positivo.
Por outro lado, há quem proponha que o ser humano  é um ser em transição na evolução e tem potencial para superar-se. Sri Aurobindo  se insere nessa perspectiva. Ele propõe a renúncia ao egoísmo da ação, a “rejeição dos desejos da natureza vital, das sensações, paixões, egoísmo, orgulho, arrogância, luxúria, inveja, ciúme, hostilidade a verdade, para que a força e a alegria verdadeiras possam derramar-se de cima sobre um ser vital calmo, amplo, forte e consagrado...”( 25 - 6-7)
Para ele o ego  impede se alcançar ao mesmo tempo liberdade e igualdade: “Quando o ego busca liberdade, ele chega ao individualismo competitivo. Quando ele objetiva a igualdade, chega antes à disputa, e então a uma tentativa de ignorar as variações da Natureza; como a única maneira de fazê-lo com sucesso, constrói uma sociedade artificial e mecânica. Uma sociedade que persiga a liberdade como seu ideal é incapaz de alcançar a igualdade; uma sociedade que mire na igualdade será obrigada a sacrificar a liberdade.” (15-546). Mais longe ainda fica a fraternidade pois “Para o ego, falar de fraternidade é falar de algo contrário à sua natureza.”
 “Quando retiramos nosso olhar de sua preocupação egoísta com interesses limitados e fugazes e consideramos o mundo com olhos desapaixonados e curiosos que buscam apenas a Verdade, o primeiro resultado é a percepção de uma energia ilimitada de existência infinita, movimento infinito, atividade infinita, que se derrama no Espaço sem limites, no Tempo eterno, uma existência que ultrapassa infinitamente nosso ego ou qualquer ego ou qualquer coletividade de egos, em cuja balança as grandiosas criações de eras são apenas a poeira de um momento, e em cuja soma incalculável inumeráveis miríades contam apenas como um enxame insignificante.” (Sri Aurobindo, A Vida Divina, Livro I, capítulo 9– O Puro Existente)
Há um longo caminho a percorrer entre a realidade da vida como ela é hoje, em que o egoísmo e o autointeresse imediato prevalecem, em que as questões da espiritualidade, da fraternidade, da solidariedade são abstrações não realizadas, para uma situação em que tais características venham a ser valorizadas.
A egoação coloca  os humanos acima, superiores, orgulhosos diante das demais formas de vida, centrados nos interesses particularistas.  
Existem sinais de que indivíduos conseguem superar seu egoísmo. A expansão da egoação para a eco-ação passa por várias escalas: primeiro, aqueles a quem tem apego ou ama, como  filhos, família, amigos;  mais longe o interesse público e coletivo e mais distante ainda as considerações com a natureza e com o todo. 
A consciência ecológica percebe a importância do cuidado com o ambiente para garantir o próprio autointeresse da sobrevivência. A ética ecológica insere os humanos no contexto das demais espécies vivas e propõe a eco-ação que valoriza os interesses difusos coletivos. O egoísmo  pode, então,  ser visto como uma forma de infantilismo, de ignorância, de visão míope e imediatista, de noção estreita do que seja o autointeresse.
Internacionalmente, sinais de posturas menos egoístas seriam a abolição de passaportes e vistos, a adoção do federalismo mundial, a domesticação dos fluxos e estoques de capital, a valorização da  espiritualidade que  desperte e cultive a centelha divina que existe dentro de cada um, que pode tornar cada pessoa mais generosa e humilde.
Para além da ego e da eco-ação há um degrau mais  avançado no caminho de  dissolver o ego, os desejos e as ações egoístas. Trata-se do seva,  em que a ação é praticada como um  serviço abnegado no qual se elimina o autointeresse.

terça-feira, 2 de julho de 2019

O outro nome da América


Maurício Andrés Ribeiro
América é o nome dado a este continente pelos colonizadores europeus em homenagem ao navegador florentino Américo Vespúcio.
Os povos andinos originários o chamavam  de Abya Yala,  que significa terra madura de eterna juventude. Durante muitos séculos a disseminação da cultura andina foi sufocada e ficou quase invisível diante da força da colonização europeia. Como não havia uma forte tradição escrita, perdeu-se parte da cosmovisão, da mitologia e das histórias transmitidas oralmente. Entretanto, essa visão, abafada pela colonização espanhola, continuou a ser vivida pelos povos quéchua, aimara e outros, discreta e subterraneamente. Apenas há cerca de 30 anos passou a ser divulgada mais amplamente e nas últimas décadas vários estudiosos passaram a estudar, registrar e escrever sobre ela.
Alberto Acosta[1] é um dos autores que registrou a cosmovisão andina e incaica originária. O bem viver (Buen vivir) enfatiza a suficiência, o coexistir, o co evoluir. Bem viver, buen vivir, vivir bien são conceitos comunitários e cooperativos, vivos nas culturas e na cosmologia quéchua e aimara do Equador e da Bolívia. São conceitos distintos de boa vida, de dolce vita, de viver melhor. A unidade do ser humano com a natureza está presente nessa cosmovisão andina que enfatiza os ciclos longos da evolução, cooperação, fraternidade, o pequeno e o comunitário. Comunidade é estrutura social e estrutura de vida, é comunidade humana e biológica. Os povos andinos originários viviam de acordo com uma concepção integrada com a natureza e com o cosmos e tinham a percepção dos ciclos longos da vida.
David Choquehuanca[2] discorre que os povos indígenas originários acreditavam que todos somos irmãos, humanos, que a mãe Terra alimenta com a água, leite da terra. Acreditavam que precisamos viver em harmonia com a natureza e entre os seres humanos,  cuidar e proteger a mãe terra, que é diferente do conceito de Planeta. Planeta é objeto, mãe terra é sujeito. Essa visão quer unidade, paz, soberania ao invés de divisão e submissão, irmandade, incluindo as plantas e animais. (trata-se de filosofia que se aproxima de são Francisco de Assis).
Em 2010 a Bolívia propôs à ONU instituir a água como direito humano e da natureza fundamental. Por proposta da Bolívia, o dia 22 de abril foi declarado pela ONU como o dia internacional da Mae Terra, Pacha Mama, mãe terra em equilíbrio. Bolívia e Equador são os países que mais avançaram na aplicação e na institucionalização dessa abordagem trazida de suas tradições indígenas. Elas foram inseridas na Constituição e  defendidas junto a outras nações no fórum da ONU.
Sonha-se voltar a um mundo sem fronteiras, como o condor que ultrapassa os picos das cordilheiras dos Andes, a espinha dorsal da América do Sul, como na canção.
Há afinidade entre os conhecimentos dos mestres andinos e dos mestres tibetanos com elementos  que existem em  ambas as tradições, centradas numa visão cósmica do ser.
Luta-se pelo reconhecimento de línguas milenares ancestrais, diante dos idiomas europeus e do linguicidio atualmente em curso.
Fernando Huacanuni[3]  é outro autor que tratou do bem viver não apenas  como uma concepção intelectual, mas como uma visão filosófica e espiritual, a resposta de vida dos povos indígenas, sustentada por cosmovisão ancestral. Tudo vive, as montanhas, árvores, pessoas. Em aymara se diz que somos filhos do pai cosmos e da mãe terra.
O continente sul americano foi desintegrado, criaram-se fronteiras, dividiram-se países para facilitar a exploração de seus recursos naturais. Atualmente,  Abya Yala  procura recuperar caminhos próprios, revalorizar a  cultura, a música, a dança, a  cosmovisão, história e filosofia originárias. Pode ser sinal  de um renascimento cultural e de civilização. Um vídeo sobre a cosmovisão andina no tecido expressa essa perspectiva. https://ciseiweb.wordpress.com/2017/05/03/bellisimo-video-sobre-la-cosmovision-andina-a-traves-del-tejido/?fbclid=IwAR2miYJHQ_FP3zGAGZAWP2PGL-kHLSjB8gnnzMerIhmYl_IKfHUspB6WIkA 



[1] Acosta , Alberto - “O Bem Viver”, de (Ed. Autonomia Literária e Elefante); Acosta, Alberto Apreciações sociopolíticas e econômicas sobre o bem viver. Entrevista com Alberto Acosta Fonte: Revista IHU online

[2] No programa Dossier de entrevista na TV.
[3] Huanacuni, Fernando Bem Viver- Filosofia, políticas, estratégias e experiências regionais andinas. Extraído da Agenda Indígena Amazônica da Coordinadora de las Organizaciones Indigenas dala Cuenca Amazónica (COICA) – Nota 15 do texto original.


Emergência climática e ética indígena sul-americana


Maurício Andrés Ribeiro




Pierre Dansereau estudou a América do Sul.


Cristián Parker, sociólogo  e pesquisador na Universidade do Chile[1], estudou as distintas visões de mundo de grupos  indígenas, de empreendedores econômicos, de movimentos ecologistas,  bem como os  conflitos entre vários atores sociais envolvendo a água e os recursos da natureza no continente. Parker relaciona os diversos discursos éticos, tais  como o que propõe  o crescimento utilitarista; o que propõe uma ética regulatória para minimizar os impactos ambientais e sociais dos empreendimentos extrativistas e destaca a responsabilidade social das empresas. Há, ainda,  o discurso que propõe o desenvolvimento sustentável, com as empresas reguladas pelo estado. Há também o discurso da ética ecológica “que favorece uma mudança completa no modo de produção e grandes investimentos em mineração e energia. Coloca a questão da água, ecossistemas e populações locais como a prioridade que prevalece sobre o crescimento econômico. As pessoas locais tornam-se os atores principais, em comparação com a prioridade que os investidores recebem em projetos convencionais.” E, por fim, há a ética autóctone dos povos indígenas que  “formulam um discurso baseado na defesa de seus territórios e se opõem aos megaprojetos elétricos e de mineração e seus impactos sociais, culturais e ambientais. Seus argumentos estão relacionados ao seu próprio caráter e identidade. As tradições ancestrais têm um lugar importante. No entanto, na maioria das vezes, as manifestações explícitas de sua fala são associadas aos direitos modernos, deixando implícita sua sabedoria, sua cosmovisão e sua visão ética da natureza como pano de fundo.”
Essas diferentes cosmovisões mantem relações distintas entre si, algumas têm afinidades; outras expressam oposições radicais. Algumas  abordagens enfatizam os valores de troca, outras, o valor de uso e valor simbólico. Para um tipo de discurso “o que interessa é o valor de troca do negócio mineral no mercado global de metais e minerais (os recursos a serem utilizados)”; para outro discurso “ o valor simbólico do território é primordial, pois está associado à identidade, aos ancestrais, à vida da comunidade, ao ambiente compartilhado e também à vida espiritual (o patrimônio a ser protegido).”
Numa tabela  ele contrasta elementos de duas dessas éticas e discursos.
TABELA N ° 1:  ÉTICAS E DISCURSOS CONFRONTADOS
                                           As relações humanos/não humanos
Categorias  VISÃO AUTÓCTONE -VISÃO DO MERCADO
Totalidade    - Holismo                          -  Dualismo Cartesiano
Racionalidade - Englobante/Princípio da Reciprocidade - Racionalismo / Positivismo
Sujeito/Objeto -Cosmo coabitado  - Dualismo Sujeito-Objeto
Matéria    - Ser vivo: energias e espíritosNatureza morta: sítio inerte /rochas
Moral   - Ambivalência Moral  - Dualismo moral, o bem e  o mal
Seres superiores - Multiplicidade dos Espíritos - Monoteísmo
Fonte: Parker
Parker constata que   “Como parte do processo de desenvolvimento, as políticas de extrativismo na América Latina geralmente não respeitam o meio ambiente. Os atores que se confrontam no terreno brandem discursos econômicos, ideológicos ou éticos. Foi bem analisado que os modos de vida indígenas se opõem às forças das indústrias extrativas, empresas globais que consideram as terras indígenas estritamente como recursos (Martinez, 2015).” Megaprojetos extrativistas que provocam impactos ambientais e conflitos sociais, capitaneados por grandes corporações têm-se intensificado, seja sob governos de qualquer matiz ideológica.
Parker  constata que “Nos últimos tempos, os discursos ecológicos dos povos indígenas, identidades locais e regionais se multiplicaram; são demandas e mobilizações pela justiça social e ambiental e pelo emprego. Essa virada em direção ao território e à ecologia converge para uma linguagem comum que ilustra a inovadora interseção entre o discurso da comunidade indígena e o discurso ambiental (Svampa, 2013).”
Ele propõe  “enfatizar a importância da visão de mundo indígena, que tem uma ética de participação com a natureza que se opõe à mercantilização da terra e do território. Ética que se baseia no valor simbólico do bem comum e não no seu valor de mercado ou valor de uso.”
 “O discurso autóctone é um discurso ético que promove o respeito pela vida e pela natureza. O pensamento cosmológico dos povos indígenas mostra uma atitude ética em relação à vida, baseada no respeito por ela e em harmonia com a sacralidade da natureza, como uma peculiaridade específica de sua consciência planetária.”
Noosfera, a esfera da consciência que influi sobre as demais.Pierre Dansereau.
Parker  conclui que “Num tempo em que os sintomas visíveis das alterações climáticas têm se intensificado, vemos um confronto mais agudo, às vezes subterrâneo e imperceptível, às vezes em conflito aberto,  de dois polos de éticas planetárias fundamentais: uma ética utilitarista  de explotação e uma ética ecologica entre as quais  há na verdade uma gama de posições. De fato, no pensamento racionalista e colonialista ocidental, a natureza é considerada um objeto sujeito à exploração (incluindo aí aqueles humanos considerados inferiores). Essa é a lógica da acumulação capitalista imediata, acentuada pela ética da sociedade pós-industrial no contexto do modelo neoliberal da globalização recente. Por outro lado, as injustiças sociais e a proteção do meio ambiente e do ecologismo trazem à luz questões de desigualdades ecológicas e, portanto, de justiça e equidade intergeracional, social e geográfica. No centro deste confronto global, a ética indígena que resiste à mercantilização dos territórios, como apresentamos, acentua uma dimensão da relação humanidade-natureza que está próxima de certas éticas ecológicas, como a proposta,  entre outros, por Pierre Dansereau.”
Pierre Dansereau estudou as cosmovisões e a noosfera.

A emergência climática atual clama pela ética ecológica e  de algum modo  leva a revalorizar a ética indígena e sua cosmovisão.



[1] Parker, Cristián. -Atores sociais e ética ecológica no conflito extrativista: ética indígena sul-americana  (publicado  em francês no livro L’espoir malgré tout – L’oeuvre de Pierre Danseereau et l’avenir des sciences de l’environnement, Normand Brunet, Paulo Freire Vieira, Marie Saint – Arnaud, René Audet, Presses de l’Université du Québec, 2017)