sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Pessoas não humanas


Maurício Andrés Ribeiro (*)

"Contaram-me uma mentira durante toda a minha vida dizendo que eu fazia parte da única espécie racional do planeta. Mentira profunda. Existe uma racionalidade profunda dentro de cada espécie. E eu tive que aprender a compreender essa racionalidade".  
Sebastião Salgado, fotógrafo do projeto Gênesis
O dicionário Aurélio considera como pessoa “Cada ser humano considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de qualidades que se atribuem exclusivamente à espécie humana, quais sejam, a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforme fins determinados e o discernimento de valores”.
Animais são seres com corpo, mente emoções, sentimentos, que sofrem dor e medo e que aprendem, dentro de seu estágio de consciência. As capacidades cognitivas dos animais são crescentemente reconhecidas. Merecem o status de pessoas, tais como as pessoas físicas, as pessoas jurídicas, as pessoas angelicais.
Pessoas não humanas têm a capacidade de aprender a  cooperar

A diversidade de postagens e de compartilhamento de vídeos nas redes sociais e no Facebook mostra como as pessoas não humanas gostam de brincar, com uma mentalidade muito afim com as crianças. O relacionamento afetivo de seres humanos com cães, gatos e animais domésticos supre carências emocionais tanto para crianças como para adultos e idosos.  As crianças prezam a afetividade animal e se encantam com as historias de bichos que muitas vezes só conhecem nos zoológicos.  Têm grande empatia para com os animais. Empatia é uma qualidade da inteligência emocional. É uma resposta afetiva capaz de compreender a perspectiva psicológica de outra pessoa; e de se emocionar ao observar a experiência e a situação do outro.
Há vídeos  que mostram como eles se comunicam pelo canto; como são  usados como alimento por pessoas humanas. Muitas mensagens nas redes sociais abordam o vegetarianismo como opção de dieta alimentar. Há crueldades tais como as touradas ou farras do boi, disfarçadas de cultura e tradição e maus tratos a animais em cativeiro. Mensagens mostram também formas de relacionamento mais amigáveis e harmônicas entre pessoas humanas e não humanas. Na Internet se encontram muitos sites com pensamentos sobre os direitos dos animais. Aos poucos a visão ecocêntrica e biocêntrica ganha espaço e questiona os fundamentos da civilização ocidental em sua relação com os animais.
Cientistas renomados tais como James Lovelock em “A vingança de Gaia” e E.O Wilson, propõem uma retirada sustentável das pessoas humanas cedendo espaço para os animais e o mundo natural.
No Facebook, meu amigo Apolo Heringer-Lisboa  observa que “ quando a gente diz seres humanos, está dando a entender que há outros tipos de seres. Vinha à mente a ideia de seres divinos ou angelicais. Não a ideia de seres como tartarugas, corujinhas e cães. Você tem insistido neste tema buscando, provavelmente, uma mudança na mentalidade atual da sociedade. Você insiste no termo pessoas. Como vê a distinção entre os termos pessoas e seres? Pessoas a gente associa com gente, seres humanos, um sinônimo”.
Eu lhe respondi que há vários tipos de pessoas: pessoas humanas, pessoas físicas, pessoas jurídicas. Nomear os animais como pessoas não humanas ajuda a elevar seu status numa visão menos antropocêntrica e ajuda a valorizar seus sentimentos e inteligência. Um status ainda mais elevado é quando são tratados como divindades. O status mais baixo é quando são tratados como coisas, usados como objetos de pesquisas e cobaias para testar medicamentos, cosméticos, cigarros. Os animais são vistos como bens econômicos, e a pecuária tem a mesma raiz de pecuniária, pois pecos, o boi, era uma fonte original de riqueza, uma moeda transacionável. Por esse enfoque, somos donos, proprietários de tais seres senscientes, semoventes.
Macacos são vistos como coisas para experiências em laboratórios, ou como divindades num templo indiano.
A cultura ocidental, de matriz greco-romana e judaico-cristã tem uma visão antropocêntrica e humanista que vem sendo questionada por vários flancos. “Para que serve uma barata ou um pernilongo?” pergunta-me uma amiga que descubro ser utilitarista. As abelhas são úteis, pois polinizam e fertilizam as plantas e prestam um relevante serviço ambiental e econômico. Por isso podem ter valor. Mas e esses outros animais? O movimento antiutilitarista reconhece o valor intrínseco dos animais e dos seres vivos, independente se tenham ou não uma utilidade para os seres humanos.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro  reflete sobre o tema, tomando como referência as culturas indígenas brasileiras[1]: “Uma coisa é você dizer que os animais são humanos, no sentido de direitos humanos. Outra coisa é dizer que os animais são pessoas, isto é, são seres que têm valor intrínseco. É isso o que significa ser pessoa. Reconhecer direitos aos demais viventes não é reconhecer direitos humanos aos demais viventes. É reconhecer direitos característicos e próprios daquelas diferentes formas de vida. Os direitos de uma árvore não são os mesmos direitos de um cidadão brasileiro da espécie homo sapiens. O que não quer dizer, entretanto, que ela não tenha direitos. Por exemplo, o direito à existência, que só pode ser negado sob condições que exigem reflexão. Os índios não acham que as árvores são iguais a eles. O que eles acham simplesmente é que você não faz nada impunemente. Todo ser vivo, com exceção dos vegetais, tem que tirar a vida de um outro ser vivo para sobreviver. A diferença está no fato de que os índios sabem disso. E sabem que isso é algo sério. Nós estamos acostumados a fazer a nossa caça nos supermercados, não somos mais capazes de olhar de frente uma galinha antes de matá-la para comer. Assim, perdemos a consciência de que nós vivemos num mundo em que viver é perigoso e traz consequências. E que comer tem consequências. Os animais seriam pessoas no sentido de que eles possuem valor intrínseco, eles têm direito à vida, e só podemos tirar a vida deles quando a nossa vida depende disso. Isso é uma coisa que, para os índios, é absolutamente claro. Se você matar à toa, você vai ter problemas. Eles não estão dizendo que é tudo igual. Eles estão dizendo que tudo possui um valor intrínseco e que mexer com isso envolve você mesmo.”
A ética nas relações com os animais passou a ser tema discutido especialmente a partir das ideias de Peter Singer, filósofo australiano conhecido por sua postura em relação aos direitos dos animais e a questões éticas no relacionamento com eles. Hans Huesch escreveu Matança de inocentes e A grande fraude, sobre o tema.
No segundo semestre de 2013, ativistas invadiram um instituto de pesquisas em São Paulo, que usava cães beagle e ratos em testes para cosméticos e para medicamentos, sequestraram os animais e destruíram as instalações, levando ao fechamento do instituto.
O movimento Born Free defende padrões de bem estar animal e procura os proteger dos circos, do entretenimento em shows, parques marinhos, do sofrimento físico e mental que passam no cativeiro.
Organizações da sociedade civil como a PETA – Pessoas pelo tratamento ético para com os animais - e a Frente de Libertação Animal assumiram a causa do abolicionismo da escravidão e do fim da tortura dos animais. A WSPA – sociedade mundial para a proteção dos animais propõe protegê-los pois sofrem dor e sofrimento, tem direito a viver vidas livres de crueldade e porque milhões de pessoas no mundo todo  se apoiam neles para a sobrevivência e a companhia. Propõe que a ONU institua um dia dedicado à proteção dos animais. Por meio de vídeos, divulgam no Youtube muitas informações sobre o tema. Mostram as condições cruéis de depenar gansos para fazer preenchimento de travesseiros  com suas plumas e penas; o processo doloroso de produção do paté de fígado de ganso. O que ocorre nos matadouros é mostrado no vídeo E se os matadouros tivessem paredes de vidro? protagonizado por Paul MacCartney, que também se tornou ativista vegetariano. Outros disponíveis no YouTube mostram as realidades atrozes da produção de carne e as fazendas industriais. Vídeos mostram testes com pesquisas biológicas de efeitos dos cigarros sobre a saúde, realizados com macacos, coelhos e ratos. O filme A feia verdade denuncia que mais de 50 bilhões de animais ano são sacrificados pela indústria de cosméticos e mostra coelhos cegados por testes de produtos que irritam os olhos. Outros vídeos fazem campanhas de boicote a produtos de companhias que fazem testes com animais. Outros ainda mostram as vacas fistuladas, com o seu interior à mostra, em pesquisas agropecuárias.
A relação entre pessoas humanas e animais adquire relevo crescente e visibilidade como um tema de interesse público.  Mais seres humanos, e não somente as crianças e idosos que com eles convivem mais diretamente, passam a manifestar com maior frequência a empatia para com os animais. Como tal essa relação merece ser tratada em seus aspectos regulatórios, normativos e de comunicação. Tal como a escravatura, que teve uma sucessão de leis, até a do ventre livre e a da abolição, também a abolição da escravatura animal passa por etapas sucessivas e crescentes, por ondas de consciência social e de sensibilização e empatia. É preciso aprimorar as leis sobre o tema.
Nos parlamentos, tramitam dezenas de  projetos referentes a animais com temas tais como o uso de animais em espetáculos e pesquisas cientificas, leis  e código de proteção e defesa de animais, na esteira da crescente sensibilidade para com o bem estar animal e para com os direitos das pessoas não humanas.

 

 

 

 

 

 

 



[1] Entrevista a Eliane Brum, Diálogos sobre o fim do mundo, publicada no El País em 29-9-2014 http://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/29/opinion/1412000283_365191.htmla

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Defesa imunológica integral


Maurício Andrés Ribeiro
A pandemia trouxe para o primeiro plano a importância da defesa imunológica. Fortalecer a defesa do corpo contra os ataques de vírus é um modo de lidar com os riscos que eles trazem para a saúde corporal. Pode-se fortalecer as defesas físicas por meio da boa alimentação e hidratação do corpo, de exercícios físicos e de respiração, posturas adequadas, remédios naturais, vitamina D, luz do sol. Há outros modos de fortalecer as defesas, que são emocionais e mentais: concentração, meditação, yoga, orações, alterar a frequência de vibrações corporais, reduzir o cansaço, o medo, o estresse, a raiva, o ódio, cultivar  a compaixão, a generosidade, o amor e atividades como sorrir, brincar, cantar.
No corpo, os leucócitos, ou glóbulos brancos, são as células que circulam pela corrente sanguínea, defendem o organismo e formam uma grande barreira de proteção.  Eles reconhecem células estranhas, envolvem e digerem as invasoras e produzem anticorpos que as neutralizam. Nas doenças autoimunes o sistema reage contra o próprio corpo.
Coletivamente, pratica-se a defesa contra a pandemia por meio do isolamento físico, hábitos de higiene pessoal, evitando aglomerações. A descoberta e aplicação de vacinas também é um modo eficaz de combater uma doença infecciosa. As vacinas estimulam o sistema imune e sua memória, de modo que quando o organismo é exposto a um vírus, ele reage rapidamente. A imunidade coletiva é aquela em que uma parcela da população já se tornou imune e se bloqueia a cadeia de infecção. Quando o compromisso individual é voltado para a mútua defesa geral adquire-se a coimunidade.
Descobrir modos de prevenir a sociedade contra a vinda de novas pandemias pode evitar mortes e sofrimentos. A prevenção de pandemias é mais barato do que agir depois que a infecção já se espalhou numa população. Entre as ações práticas de defesa contra novas pandemias está:
considerar conjuntamente a saúde humana, social e ambiental;
reduzir desmatamentos, com o efeito colateral positivo de mitigar mudanças climáticas e produzir água.
investir em proteção de habitats naturais de espécies silvestres,
mudar hábitos alimentares evitando, o consumo de animais silvestres e de animais confinados em fazendas industriais;
tornar leve a pegada hídrica e ecológica, por meio da redução do consumismo, do viajismo, do carnivorismo.
Numa perspectiva de futuro, é prioritário pensar sobre a prevenção das próximas pandemias e  a necessidade de se achatar a curva das mudanças no clima, uma grande encrenca diante da humanidade. 
A prontidão para atuar em emergências reais caracteriza um bom sistema de defesa da saúde humana, animal e ambiental.
A defesa ambiental foi  durante muito tempo praticada pioneiramente por organizações da sociedade e por ativistas individuais. Alguns governos responderam por meio de leis e instituições voltadas para esse tipo de defesa. Com o tempo, elas mostraram alguma fadiga e impotência para fazer frente a todos os ataques e riscos ambientais emergentes. Mais recentemente, novos atores se incorporaram a essa atitude: capitalistas – banqueiros, investidores, acionistas, empresários – perceberam que a falta de defesa ambiental dá prejuízo no médio e no longo prazo e que os ganhos imediatos no curto prazo usufruídos por pequenos grupos na sociedade transformam-se em prejuízos. Sua ação veio tarde e ainda é vocalizada por poucos. Esses novos agentes fortalecem o sistema imunológico de defesa ecológica e podem ter bons resultados devido a seu poder econômico e político.
Investir em prevenção requer o uso de armas como conhecimento, capacitação e recursos financeiros. A sociedade necessita  que se tenha prontidão  para  se prevenir o alastramento de doenças e mortes, com equipes capazes de atender prontamente a situações emergenciais. Eventos de destruição ecológica e crises sociais também merecem ser enfrentadas proativamente por meio de investimentos em saúde, educação, moradia, saneamento.
A pandemia traz uma oportunidade para se repensar de modo integral o tema da defesa, priorizando nos orçamentos aquelas atividades que reduzem os riscos reais que ameaçam a sociedade e a vida.

 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

A pandemia abre o tempo para o autoconhecimento


Maurício Andrés Ribeiro

 Em poucos meses a pandemia mudou ritmo de funcionamento do mundo.
Por um lado, paralisou movimentos e os tornou mais lentos. A vida fluiu mais devagar. Por outro lado, acelerou tendências e processos rápidos que já  se manifestavam.
Durante as quarentenas, puxou-se um freio de arrumação.  Reduziu-se o ritmo de atividades, esperando o perigo passar. A sociedade hibernou como o urso, que economiza energia durante o inverno. As  quarentenas isolaram bilhões de pessoas dentro de suas  casas. Deram uma pausa para reflexão.
O modo como se utiliza o tempo se alterou. Houve uma desaceleração física, corporal e criou-se nova relação entre os cidadãos e o ritmo de vida nas cidades. Os tempos gastos em deslocamentos casa-trabalho, casa-escola, casa lazer  foram eliminados ou reduzidos. Em muitos casos, viagens cotidianas de ir e vir para o trabalho foram reduzidas a apenas uma viagem de ida e uma de volta. Escalonar horários de atividades para evitar picos de trânsito e congestionamentos foi uma  maneira de lidar com os novos ritmos. A semana de trabalho se comprimiu em  dias corridos e algumas  empresas e países propõem  o  trabalho em ciclos de 4 dias da semana, o uso de turnos de trabalho com revezamento e permanência de parte dos trabalhadores em home-office. Economizaram-se com isso muitos quilômetros de deslocamento e muito tempo gasto com viagens, levando a melhor qualidade de vida. O teletrabalho liberou  tempo  para si e para atividades que desejam exercer, cansando-se menos em longas viagens  e deslocamentos. Intercalam-se  com mais flexibilidade e menos rigidez os períodos de trabalho e descanso quando se está em casa.
O movimento da sanfona, abre e fecha, fecha e abre, passa a regular os ritmos de funcionamento das cidades. Como um vagalume que acende e apaga, estica e encolhe,  movimentos pendulares rápidos tentam regular a disseminação da doença. A ruptura de ritmo  exigiu adaptações. A velocidade de adaptação tornou-se chave para a sobrevivência e prosperidade de um negócio ou atividade ou a sua morte.
O ritmo de fechamento e abertura de atividades tornou-se incerto, em função da dinâmica da epidemia. Hoje pode-se flexibilizar  o funcionamento de uma atividade, mas amanhã ela pode  ser fechada, caso os contágios se multipliquem. 
Planos se evaporaram e passou-se a viver no aqui  e agora, um dia depois do outro,  com curtoprazismo, imediatismo, adaptações incrementais sucessivas. A previsibilidade do futuro sumiu e uma densa neblina turva a visão de longa distância. A velocidade de mudanças tornou-se exponencial em comparação com a velocidade aritmética das mudanças prepandemia. A micro gestão no dia a dia tornou-se imperativa, sem planos de curto médio ou longo prazo.
Os períodos de férias também  se transformaram. Ao invés de pequenos períodos de férias salpicados durante o ano, a prudência recomenda reduzir o número de viagens para lá e para cá, cada uma delas considerada como uma exposição potencial ao risco de contrair a doença.  Assim, a  sazonalidade do uso do tempo anual se alterou reduzindo viagens, gastos de recursos naturais, exposição a riscos.
Quem tem um celular ou um computador conectado à internet acessa uma quantidade enorme de ofertas  de programas culturais, artísticos, religiosos, científicos, conversas e bate papos sobre temas variados.  O tempo encolheu para tanta live e webinar. Diante da onda de ofertas é preciso agendar o que ver, filtrar aquilo que é relevante, montando  uma agenda de prioridades que caiba nas 24 horas do dia, 7 dias por semana.
A oferta de eventos online se multiplica, com assuntos variados que expressam a noodiversidade, em que cada tribo compartilha valores e informações com aqueles que participam da mesma bolha.  A grande oferta de lives aumenta o padrão de exigência. Ao menor sinal de vacilo dos participantes, pode-se mudar de canal ou desviar a atenção para outra oferta que está à mão. Para aproveitar melhor o tempo  adotou-se o modo multitarefas, assistir a um vídeo e a um filme, trabalhar, ouvir música simultaneamente. Na tele aprendizagem, multiatividades simultâneas multiplicam o aproveitamento do limitado tempo disponível. A atenção é compartilhada, dividida, não concentrada.
O isolamento abre tempo para a contemplação.

 Há mais tempo livre devido ao confinamento e ao isolamento físico. A falta de atividades externas leva a introspecção e a viagens para dentro de si, o que abre uma oportunidade para  exercitar o autoconhecimento. A observação e anotação sobre sonhos e suas conexões com os fatos do dia anterior, são facilitadas pela liberação de tempos diários. Abre-se um tempo de reflexão, de interiorização e estudo. Aprofunda-se em temas e pensamentos que seriam inviáveis em tempos de correria. A pausa para reflexão e a desaceleração de atividades externas permite atividade mental e emocional intensa.  

Há quem saiba aproveitar tais períodos de isolamento para viajar para dentro de si em autoconhecimento. Na prisão involuntária Graciliano Ramos escreveu suas Memórias do cárcere e Sri Aurobindo escreveu suas Tales of prison life. Depois disso, Sri Aurobindo se auto recolheu num quarto onde viveu as últimas décadas de sua vida, escrevendo, em contato com poucas pessoas, meditando, interferindo nos negócios do mundo à distância por meio da força de suas ideias. Bem aproveitado, um período de confinamento, forçado ou voluntário,  pode gerar produtos valiosos.

 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Pandemia, morte e espiritualidade

Maurício Andrés Ribeiro


A presença da morte desperta um sentimento do mistério da vida e de sua fragilidade. 

A proximidade da morte muda a sintonia da consciência, das preocupações mundanas com os objetos e coisas materiais, para questões imateriais e intangíveis relacionadas com a própria existência. As preocupações materiais tornam-se pequenas diante da perspectiva de uma perda maior, a da própria vida.  A pandemia, com seu vírus invisível, tem o condão de provocar essa mudança de sintonia.
Diante do vírus,  filósofos  pensam sobre a proximidade da morte, a surpresa, a incerteza e o terror,  o não sabido, o futuro imprevisível. Edgar Morin  especula se os desconfinados depois das quarentenas retornarão às normoses egoístas e consumistas ou se renascerá uma vida convivial e amorosa, consciente da interdependência. Peter Sloterdijk fala da coimunidade, o compromisso individual voltado para a mútua proteção geral, com solidariedade. Observa que o consumo frívolo sofreu um duro baque e que a tendência a voltar ao estado anterior por inércia e comodismo pode não se realizar. Na linha  do pensamento  oriental, ele afirma que tudo está em mudança, que estamos aprendendo uma nova gramática. Antropóloga  opina que a pandemia vai alterar  a história   e que tudo vai ser reinterpretado, em novas narrativas. Teólogo fala do necroceno, uma época que tem a morte presente. Escritora denuncia o patriarcalismo e propõe uma sociedade mais feminina, saindo de um pesadelo  em direção a um sonho e uma utopia possíveis. Há quem  divida a história em aC/dC- antes e depois do coronavirus e que proponha apertar o botão de reiniciar e fazer um reset.
A pandemia acelerou a reflexão sobre a ciência, suas controvérsias, os limites do conhecimento científico e dos processos mentais,  a insegurança e a segurança,  certezas e incertezas.
Nesse contexto, há mais perguntas do que respostas. Os limites da ciência para encontrar respostas aos riscos percebidos induzem a um fortalecimento das crenças e da fé, e à negação da  própria ciência. Diante da fragilidade da vida, da vulnerabilidade e da morte próxima, há reações de rezar pela proteção divina diante do desconhecido. Revigoram-se religiões com suas narrativas grandiosas e abrangentes sobre a vida terrena,  o apocalipse, as tragédias, a ansiedade diante do futuro desconhecido e perigoso. Busca-se proteção num salvador e em uma narrativa que traga conforto e tranquilidade. Novas superstições reagem a novas ameaças.
A pandemia ajudou a valorizar a espiritualidade, o Ioga e a meditação como modos de prevenir os distúrbios emocionais e mentais associados à imprevisibilidade e aos riscos de perdas que ela traz.
A dimensão transcendente e espiritual da ecologia se tornou mais presente,  utopias foram revalorizadas, para além dos aspectos utilitários e pragmáticos de um ambientalismo aparentemente realista, mas que expressa um conformismo com o status  quo.
A grande transformação proporcionada pela pandemia é uma transformação na consciência humana.
A espiral da evolução, da matéria à vida e da vida à consciência.
A pandemia aprofundou o pensamento sobre a evolução, o sentido e propósito da vida e um novo padrão ético, que valorize a unidade humana para além das diferenças, bem como a unidade com todas as coisas vivas, superando a fantasia da separatividade e o dualismo cartesiano que opõe natureza e cultura. 
Uma evolução ética torna-se essencial para a sobrevivência da espécie. Mais do que uma revolução mental,  a evolução espiritual  se torna necessária. Para além da ciência, a  consciência. Um mundo menos egoísta, com maior sentido de solidariedade e unidade humana, com maior consciência da necessidade de reduzir desigualdades e de interconectar a saúde humana com a saúde animal e a saúde ambiental, podem ser efeitos colaterais positivos dessa pandemia.

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Pandemia, saúde emocional e segurança psicológica

Maurício Andrés Ribeiro

Na pandemia se lida de perto com as perdas. Perdas econômicas, de emprego e renda. Perdas de segurança e estabilidade. Perda de visibilidade quanto ao futuro. Perdas de vidas e luto. Situações extremas de estresse e de incertezas minam a segurança psicológica. Quem está nos grupos de risco, como os idosos, se assombra com a possibilidade de contrair a doença e torce para que, caso isso aconteça, ela seja leve, não necessite de cuidados hospitalares, de intubação e que se afaste o risco da morte e a possibilidade de ela acontecer de uma hora para outra.
A pandemia acelerou processos psicológicos. Ela testa os limites do equilíbrio emocional. Trouxe o inesperado, o incerto, o inseguro e um estado de alerta, desperto, atento, para dar conta do imprevisível e se adaptar a ele. A pandemia tornou-se um grande experimento psicológico. Entre os seus efeitos colaterais estão os transtornos da saúde mental, com angústias, medos, depressões. Tais transtornos afetam especialmente os jovens adultos que se estressam e têm ansiedade quando viram cortados seus planos diante da crise econômica, do desemprego e da falta de oportunidades de trabalho. A ruptura num modo de vida e nos planos para o futuro tem consequências psicológicas.
 Permanecer confinado e em isolamento físico é impossível para muitos, devido a condições precárias de moradia; para outros é insuportável, ao colocá-los diante de si próprios, longe das distrações e divertimentos proporcionados pelos estímulos do mundo exterior. Sentem a compulsão de sair, frequentar bares e festas, conviver com outros. Aqueles que não suportam a quarentena tendem a se expor e a doença se estende no tempo, se alonga e impõe mais perdas e custos econômicos e de vidas.

 O impulso para romper limites de segurança se manifesta quando as pessoas sofrem a fadiga da quarentena, rompem o isolamento físico e passam a se encontrar, colocando em risco a saúde coletiva, num comportamento imprudente e temerário que brinca com o perigo da morte. Perde-se a paciência de permanecer confinado e recolhido. Manifesta-se um atração suicida pelo perigo, com redução deliberada da margem de segurança, para, se possível, escapar por um triz do pior desfecho.
 Para lidar com a pandemia e seus efeitos sobre as emoções e a mente a Fiocruz produziu cartilha com recomendações sobre saúde mental e atenção psicossocial. A cartilha recomenda que se deixe de assistir ao noticiário na grande mídia para não se expor às energias negativas sobre violência, mortes, corrupção, crimes, que levam a aumento de pressão arterial e efeitos no corpo. Universidades oferecem programas para fomentar o afeto familiar e comunitário, fortalecer as pessoas e reduzir suas fragilidades. Artigo recomenda evitar bombardeio de informações, estabelecer rotina, fazer terapia online, usar a tecnologia para conectar com pessoas, dedicar-se ao que gosta, praticar meditação.   

Nesta pandemia acelerou-se a atividade emocional e mental, com mais e intensos sonhos e mais pensamentos, troca de informações, intercâmbios, lives na internet, tele cultura e tele lazer, além de tempo se isolar fisicamente para rever, repensar, revalorizar certas atitudes, abandonar outras, mudar de vida, meditar e praticar exercícios. O ritmo frenético e acelerado da vida, com pouca reflexão, cedeu lugar a uma vida mais contemplativa, meditativa, com poucos movimentos exteriores, mas com muita atividade interior, psíquica, da consciência. A prudência recomenda hibernar, reduzir as atividades vitais como os ursos e esperar o pior do surto passar. Mas isso requer um espírito estoico, capacidade de esperar quieto sem se expor.
Nesse contexto, lidar com as perdas demanda saúde emocional e mental, mobilizando energias interiores para enfrentar as dificuldades exteriores. Calma, confiança e coragem são atitudes valiosas para fortalecer a imunidade diante da pandemia.

sábado, 8 de agosto de 2020

Casteização

Maurício Andrés Ribeiro

Durante o isolamento físico da quarentena assistimos a apresentações artísticas  envolvendo pais e filhos de  duas gerações de músicos de excelência e com alto padrão estético. A infância e a adolescência  num ambiente  musical facilitam  o aprendizado. A cultura familiar doméstica é um ponto de partida  que influencia vocações musicais e coloca os familiares em condições vantajosas em relação a quem não dispõe de tal patrimônio artístico dentro de casa.

Uma cultura familiar facilita a formação em várias outras profissões: linhagens de juristas, militares, políticos, artistas, empresários, jornalistas. O convívio familiar, mais do que a educação formal, proporciona uma cultura que influencia escolhas profissionais e  especializa as pessoas tornando-as  peritas no manejo dos instrumentos de trabalho.

Imaginemos que essas influências culturais aconteçam não apenas entre uma ou duas gerações, mas entre 10, 50 ou cem gerações, a escala de tempo de uma civilização milenar.

Tecendo tapetes - tarefa especializada desempenhada por uma casta funcional. Jaipur
Tingindo saris, especialização de uma casta funcional.
Tingindo saris - tarefa desempenhada por uma casta funcional

Imaginemos que os músicos de uma família passem a se casar com músicos de outra família, também durante dezenas de gerações. Combinando as influências culturais com a genética, refina-se ainda mais essa especialização.  Na raiz da casteização está a combinação de fatores culturais e biológicos por meio do isolamento reprodutivo pelo qual se casam somente pessoas pertencentes a um mesmo subgrupo funcional ou profissional.

A casteização é o processo pelo qual se formam castas numa sociedade, com a especialização funcional numa  atividade ou trabalho e o isolamento reprodutivo.

Anúncio de casamento arranjado nos classificados em jornal indiano. Neste  caso a casta não é barreira, mas prefere-se a casta Iyer.

Tal processo de organização social acontece em várias sociedades em diferentes graus de enraizamento. A Índia foi a sociedade que levou mais longe  e por maior tempo esse processo de casteização, tendo se estruturado originalmente em torno de quatro castas que depois se multiplicaram em milhares de castas e subcastas.

O sistema de castas é controverso e polêmico, acusado  de perpetuar desigualdades e fomentar a violência e a opressão, bem como de dificultar a mobilidade  social. Ao longo da história  vários movimentos procuraram escapar dele. A formação de novas religiões como a dos Sikh, fundada pelo Guru Nanak, teve essa motivação. Ambedkar, que redigiu a constituição indiana, propunha que hindus se tornassem budistas para escapar das castas.  autores que o  definem como uma praga que contamina e contagia outras tradições e se multiplica e viraliza na sociedade. 

Entretanto, o sistema, experimental e pragmático, demonstra enorme resiliência, instalando-se em outras tradições religiosas como a dos muçulmanos e cristãos. Eminentes indianos como Gandhi, Tagore, Sri Aurobindo não condenavam o sistema de castas em si, que consideravam bem concebido, mas propunham que retomasse seu espírito original sem os defeitos e degenerações que o desvirtuaram. Gandhi reconhecia a maneira pela qual cada casta ocupava um nicho econômico no sistema de produção evitando a competição desenfreada e promovendo a cooperação. Numa perspectiva ecológica o sistema de castas indiano facilitou a  adaptação, com cada grupo ocupando um nicho ecológico na exploração dos recursos da natureza. Sri Aurobindo reconhecia sua função prática na organização social ao  se apoiar nos aspectos psicológicos de aptidões e temperamentos humanos e vocações para desempenhar tarefas.

Estudar a  casteização nas sociedades, como ela se origina, como se desenvolve, qual a razão de sua resiliência diante dos ataques que sofre, é um campo fértil para pesquisadores das ciências políticas, sociólogos, etnólogos, antropólogos, psicólogos e das ciências biológicas quanto  a seus componentes ecológicos e genéticos ligados ao isolamento reprodutivo.

Tal estudo poderia lançar luz sobre o futuro do sistema, se ele está fadado a ser abolido e desaparecer à medida que a sociedade humana evoluir ou se seguirá tendo a capacidade de se adaptar às transformações aceleradas do mundo contemporâneo.

 

 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Pandemia, segurança e riscos


Maurício Andrés Ribeiro

 A pandemia acelerou a consciência sobre os perigos  que ameaçam a sociedade e os indivíduos.

Vivemos na sociedade do risco, escreveu o sociólogo Ulrich Beck. Ele nota que riscos estão crescentemente associados a causas globais inicialmente  invisíveis. A percepção do dia a dia é insuficiente para identificá-los. A vida prática real torna-se cega e incapaz de gerar as defesas necessárias diante deles. É necessário conhecimento técnico especializado para compreender o mundo e saber como lidar com ele. Por virem de dimensões pouco perceptíveis aos sentidos humanos (vírus, radiações atômicas) depende-se cada vez mais de ciência (matemática, química, física, biologia) e tecnologia (microscópios, radiômetros etc) para detectar tais ameaças.

A ciência e a tecnologia são valiosas para lidar com novos riscos imperceptíveis pelos sentidos humanos, tais como os virus e as radiações.

Para proteger a população dos vírus os  epidemiologistas, infectologistas, patologistas, imunologistas e profissionais da saúde são convocados por governos. Eles detêm conhecimento especializado  para lidar com as situações, reduzir os danos à vida e orientar sobre as medidas de controle para evitar sua propagação. Revaloriza-se então o conhecimento prático, como lavar as mãos e colocar máscaras. Medidas de isolamento físico e de higiene são adotadas, aceleram-se pesquisas e estudos para compreender a doença e para produzir vacinas.

A produção e distribuição de riscos prejudica os mais pobres.  A vulnerabilidade e a exposição a riscos se distribuem desigualmente na sociedade,  prejudicando mais os menos capazes de se protegerem. Na escala local de uma cidade, pessoas nas periferias não tem condições de fazer quarentena e  isolamento físico, por necessidade de trabalhar e ganhar o pão de cada dia ou por falta de espaço. Elas se viram como podem e se expõem a riscos.

Pandemias, mudanças do clima, incêndios, furacões,  enchentes, secas são eventos críticos nesse estágio da evolução, o estágio terminal da era cenozoica. Mudanças de temperatura alteram o  ciclo da água e potencializam eventos críticos. 



A noção de segurança precisa ser ecologizada e hidratada. A concepção de segurança é reconceituada e a biossegurança torna-se tema central, juntamente com as questões  de segurança ecológica, segurança climática, segurança hídrica, segurança alimentar, emergências que estão na origem e na raiz de outras formas de insegurança pública, econômica, social, política.

Numa abordagem proativa, aprender como prevenir futuras pandemias (por exemplo protegendo habitats de animais silvestres, alteando o relacionamento humano com os animais) é um modo econômico e ecológico de lidar com  a segurança biológica. Mais estratégico do que atuar sobre os eventos críticos depois que ocorreram é desenvolver ações preventivas, de alerta precoce, proativas, de planejamento e gestão, que reduzam a possibilidade de ocorrência de desastres e que evitem o sofrimento social.

O princípio da precaução, presente na Declaração do Rio de 1992, afirma que, na ausência da certeza científica formal, a existência de risco de um dano sério ou irreversível requer medidas que previnam este dano. Esse princípio garante contra riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados.  Defender-se de tais riscos  e desastres, por meio de ações preventivas e não apenas reativas depois que já  ocorreram, pode fazer a diferença entre a vida e a morte, a diferença entre maiores ou menores prejuízos econômicos e sociais.

Os governos e populações locais têm um grande papel potencial nas ações para prevenir emergências e precisam ser desalienados e conscientes de suas responsabilidades. Diante dessas realidades emergentes  é sábio capacitar os agentes de defesa para lidar com a segurança biológica, ecológica, climática e ambiental e prover os recursos necessários para enfrentar os novos riscos a que estão expostas as populações.

No meio da neblina da pandemia é pouco previsível o que está à frente,  além da sensação de que atravessamos uma zona de turbulência na história natural e na história humana. Sabemos que tudo passa e os ciclos do tempo mostram um pêndulo que oscila do caos à ordem e novamente ao caos, num movimento caórdico, que é o padrão na evolução.

No meio da pandemia há por um lado um cenário distópico em que se visualiza o colapso, a extinção, catástrofes, desastres, o impulso para a morte e a busca de salvação em protetores externos. Esse cenário traz o desejo de voltar a um passado bucólico imaginário –  fechamento, tribalismos, nacionalismos e ao medo do futuro. Por outro lado, há o cenário de uma utopia possível com mais solidariedade, cooperação construtiva, coevolução, unidade humana e com as demais espécies vivas. Paciência e prudência, calma, coragem  e confiança são atitudes sensatas diante da pandemia.