sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

As castas vistas por indianos eminentes


Maurício Andrés Ribeiro
Ambedkar, o dalit que redigiu a constituição indiana e que se opunha às castas
Ambedkar, o pária que se tornou um grande jurista e redigiu a constituição da Índia após a independência em 1947, se opunha frontalmente ao sistema de castas. Vivekananda também era contrário a tal sistema. Na história da Índia, vários movimentos religiosos igualitários se revoltaram e tentaram escapar do sistema de castas, considerado discriminatório e promotor de injustiças. 

O Mahatma Gandhi não lutou contra as castas, mas sim contra a exclusão dos intocáveis, que ele chamou de Harijans ou filhos de Deus, para ajudar a incluí-los no sistema social, numa perspectiva que alguns consideram mais cristã que hindu. Gandhi teria sido o mais cristão dos hindus. Ele foi muito criticado por aqueles como Ambedkar, que se colocavam contra o sistema. Gandhi dizia acreditar que cada pessoa nasce no mundo com aptidões e limitações. Alguns são mais aptos para transmitir conhecimentos, outros para defender os indefesos, outros para lidar com a agricultura e o comércio, outros ainda para realizar tarefas físicas. A lei do varna, que instituiu as castas, estabeleceu uma esfera de ação para cada grupo vocacional, evitando a competição desnecessária.
O Mahatma Gandhi, Rabindranath Tagore e Sri Aurobindo tiveram uma visão  reformadora em relação ao sistema de castas,  criticaram a existência dos párias ou dalits. Não fizeram uma condenação total ao sistema, que consideravam bem concebido, mas com defeitos e degenerações que precisavam ser corrigidos.
Tagore assim se expressou: “O que os observadores ocidentais não conseguem discernir é que, em seu sistema de castas, a Índia seriamente aceitou sua responsabilidade de resolver o problema de raças de maneira a evitar toda fricção, e ainda assim oferecendo a cada raça liberdade dentro de suas fronteiras. Admitamos que a Índia não obteve nisso um sucesso absoluto. Mas também deve ser lembrado que o ocidente, situado mais favoravelmente quanto à homogeneidade de raças, nunca deu atenção a esse problema; sempre que confrontado com ele, tentou torná-lo mais fácil, ignorando-o."
Já Gandhi ressaltou aspectos econômicos do sistema de castas e sua função de freio à competição : “Do ponto de vista econômico, seu valor foi muito grande. Assegurava as habilidades hereditárias e limitava a competição. Historicamente falando, a casta pode ser vista como um experimento humano ou ajuste social no laboratório da sociedade indiana. Se ela provar ser um sucesso, pode ser oferecida ao mundo como um fermento e como o melhor remédio contra a competição sem coração e a desintegração social nascida da avareza e da cobiça”.[1]
Sri Aurobindo  enfatizava aspectos subjetivos e  das responsabilidades de cada um ao escrever “o sistema serviu ainda como um meio automático de garantir uma divisão fixa do trabalho e um status econômico estabelecido “ e que “A casta era originalmente um arranjo para a distribuição de funções na sociedade, tanto quanto a classe na Europa, mas o princípio no qual a distribuição se baseava na Índia era peculiar a esse país. .... A divisão de castas na Índia foi concebida como uma distribuição de tarefas. A casta de um homem dependia de seu dharma, de seus deveres espirituais, morais e práticos, e seu dharma dependia de sua swabhava, seu temperamento e natureza inata.
[2]



Mas ele completou que a instituição da casta degenerou, precisa ser corrigida e tem um  potencial para auxiliar na civilização: “ O espírito de arrogância de casta, de exclusividade e superioridade passou a dominá-la, em vez do espírito de dever, e a mudança enfraqueceu a nação e ajudou a reduzir-nos à nossa condição atual. São essas perversões que desejamos ver corrigidas. A instituição deve se transformar de modo a cumprir seu objeto essencial e permanente sob as condições alteradas dos tempos modernos. Se ela se recusar a mudar, tornar-se-á uma mera sobrevivente social e se despedaçará. Caso se transforme, ela ainda desempenhará um grande papel na realização da civilização.[3]

O sistema de castas, questionado duramente por opositores, sobreviveu e demonstrou  resiliência em relação aos vários impactos que sofreu. Sobreviveu às transformações trazidas pela urbanização, a industrialização e a globalização e se expandiu para outros grupos religiosos fora do hinduísmo.

Ele  se extinguirá, como queriam Ambedkar e Vivekananda, ou se reinventará para desempenhar um papel, como propuseram Sri Aurobindo e Tagore?

Quem viver, verá!




[1]  PRABHU, R.K. & RAO, U.R. (Comp.). The mind of Mahatma Gandhi, p.110.


[2] “The Renaissance in India”, pp. 409-410-411


[3] “Bande Mataram”, pp. 683-684.








 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

A Índia é muito menos violenta do que o Brasil


Maurício Andrés Ribeiro
Ao se caminhar nas cidades indianas tem-se maior sensação de segurança do que ao circular nas cidades brasileiras. As estatísticas de criminalidade e segurança confirmam em números essa percepção. A Índia é muito menos violenta do que o Brasil.
A Índia tem mais de 1 bilhão e trezentos milhões de habitantes, quase sete vezes mais do que a população brasileira. Os índices de homicídios são nove vezes menores na Índia do que no Brasil. O Brasil tem   55.574 homicídios por ano e 26,74  mortes por 100 mil habitantes;  na Índia, há 3,21 homicídios por 100 mil habitantes,  com 41.623 mortes.
 
Estupros e agressões sexuais por 100 mil pessoas. No Brasil o índice é alto e crescente; na Índia é baixo e estável.
 

Os números absolutos de estupros são muito menores na Índia ( 33.707 casos em 2013) do que no Brasil (49.929 casos em 2013).
 No Brasil o  índice de estupros e agressões sexuais tem aumentado, enquanto na Índia permanece baixo e estável. Tanto no Brasil como na Índia grande parte dos estupros ocorrem no ambiente doméstico, privado. Quando ocorrem estupros coletivos e públicos na Índia há reação social vigorosa contra a violência com as mulheres.
 
Os índices de estupro por 100.000 habitantes são quatro vezes mais baixos na Índia (5.7 por 100.000 habitantes) do que no Brasil (24.44 por 100 mil habitantes em 2013).
Protesto em reação à violência contra mulheres.

 
A população carcerária na Índia é menor do que a brasileira tanto em números absolutos como em percentual da população total. (População carcerária na Índia – 33 por 100 mil habitantes   - 418.536 encarcerados; população carcerária no Brasil –- 342 por 100mil – 607.731 presos)
O número de habitantes por policial é muito maior na Índia do que no Brasil. ( No Brasil há 358 habitantes por policial; na Índia há941).  Isso resulta na menor necessidade de investir em presídios, prisões, contratação de policiais, custos com a segurança no orçamento e em melhor qualidade de vida, e sensação de segurança. A Índia mantem um nivel de criminalidade bem mais baixo, com menor investimento em aparatos de segurança.
Em praticamente todos os indicadores a violência na Índia é menor do que no Brasil, exceto para a ocorrência de suicídios.  Diferenças  no modo de lidar com a vergonha, a honra e a dignidade, bem como os impactos do uso de pesticidas na agricultura podem explicar essa maior incidência de suicídios na Índia.
A menor criminalidade e violência na Índia não se deve a investimentos em presídios, penitenciárias, forças policiais ou militares, ou ao encarceramento da população. Tampouco se deve apenas à redução de desigualdades que ocorreu depois da Independência em 1947.
Não são os freios e aparatos externos que reduzem a violência, mas a autolimitação interna, cultural, psicológica, espiritual a se cometer crimes e violências. Na Índia a autolimitação vem de dentro para fora, do senso de consciência e responsabilidade. Isso é produto de milhares de anos de aprendizado de convivência social que foi transmitido de uma geração para outra. Mais consciência significa menos violência e mais segurança. Uma consciência mais evoluída  induz mudanças de atitudes na relação com os outros. Várias  crenças contribuem para tal resultado. Assim, por exemplo, existe a crença de que toda ação produz consequências e de que aquele que pratica boas ações é recompensado e aquele que pratica mas ações é punido, seja nesta encarnação presente ou em outras vidas. Tal crença é um freio e uma autolimitação para a prática de más ações pois, pela lei do carma, a lei da ação e reação, quem errou paga, não há como escapar. Outra crença, de que Deus está dentro de cada um, como uma centelha divina, ajuda a cultivar esse lado positivo e inspirador do ser humano e não apenas o seu lado animal e voltado para conquistas materiais.
Do mesmo modo, é dada importância ao grupo e à comunidade que aprova ou reprova comportamentos e atitudes e isso tem valor, induz os indivíduos a se autolimitarem ou a pensarem duas vezes antes de cometer um crime ou uma violência.
Os fatores estruturais de caráter cultural e espiritual  são os que mais ajudam a explicar essa baixa incidência de violência e criminalidade na Índia. Alinhamos entre os fatores que levam à redução da violência:
1.      Ambiente de liberdade de expressão democrática, que alivia tensões e as canaliza construtivamente.
2.      Valorização das estruturas familiares - Na ausência de um estado provedor de bem estar social, a família é a instituição que oferece colchão de proteção,  de seguridade  e assistência. Em famílias estendidas há relações de respeito e confiança nos mais velhos. É praticado  o casamento arranjado,  e muitos jovens colocam nas mãos dos pais conduzir essa decisão crucial para suas vidas. A família é a mais resiliente e duradoura instituição do país, cultivada com senso de lealdade para com os deveres e valores do grupo comunitário ou casta ao qual se pertence.
3.      Há o efeito benéfico de valores culturais baseados em princípios filosóficos tais como a ahimsa (não-violência), praticada na luta politica por Gandhi e na vida cotidiana; crença no karma (lei que rege a repercussão de nossas ações positivas e negativas em nosso próprio destino); e aparigraha (desprendimento em relação às coisas materiais). A aplicação do princípio da tolerância,  a facilidade de conviver com a diferença e respeito à diversidade. A produção cultural, na mídia e no cinema, é fortemente relacionada com a transmissão da cultura  indiana.
4.      Ainda é forte a  visão de mundo espiritualizada, que crê  que Deus está dentro de cada um. Ao invés de cada pessoa se identificar com o corpo físico, identifica-se com o espírito único que está dentro de cada um.   
No campo da paz e da não-violência é proveitoso para os brasileiros conhecer a experiência indiana e aprender com ela.









segunda-feira, 25 de novembro de 2019

A Índia como um laboratório

Maurício Andrés Ribeiro

A Índia experimentou ao longo de sua história, com grande liberdade,  modos de oferecer respostas aos vários problemas com os quais se defrontou.
O experimentalismo na Índia se aplica em diversos campos da vida. A sociedade faz experiências consigo mesma, na sua forma de organização social, na sua psicologia, no seu modo de lidar com a consciência e com a espiritualidade.   É como se um espírito científico alimentasse a busca por autoconhecimento. Por isso indianos como Sri Aurobindo e Tagore consideram a Í 
ndia uma experiência única entre as várias civilizações humanas.
O cristianismo primitivo, introduzido na Índia pelo apóstolo São Tomé, o mais experimental dos discípulos de Jesus, que precisava ver para crer, foi distinto do cristianismo romano com seus dogmas, que  lá chegou há 500 anos com a colonização europeia.
Sadhu à margens do Ganges em Rishikesh. Liberdade de busca espiritual.
No Vedanta não se demanda das pessoas acreditarem em verdades ou dogmas, mas  estimula-se a experimentação, a vivência prática. A sociedade incentivou a liberdade de busca espiritual e de investigação religiosa de cada um, experimentando o seu caminho para a autorrealização.
Na  Satyagraha, Gandhi  fazia experiências com a verdade.
Os últimos passos  de Gandhi no Memorial em Delhi. Ele fazia experiências com a verdade.
As experiências com o corpo levaram ao desenvolvimento de pranayama, modos de respirar, ásanas, modos de ter posturas corporais, hábitos alimentares, uso de sons, formas, cores, conhecimento sobre a energia que flui no corpo (chacras) e conhecimento sobre as fases da vida no Kama sutra.
A respiração é elevada de um ato natural que um ser vivo realiza do momento em que nasce ao último suspiro, a um ato cultural consciente. Exercita-se  a respiração e como ela influi sobre os estados de consciência, sobre o corpo e a mente. Pranayamas, exercícios respiratórios  facilitam a  concentração e a atenção no aqui e agora. Uma boa respiração reduz estresse, hipertensão, depressão. Relaxa, produz boa irrigação sanguínea, oxigenação. A Índia desenvolveu a ciência e arte de respirar.
O Ioga, com sua ação sobre o corpo, a mente e as emoções, desenvolveu práticas e exercícios que expandem os limites humanos, desenvolvem a atenção e presença no agora, a concentração,  a criatividade nas artes e ciências.
A psicologia yogue faz experiências com níveis extremos da consciência e da supraconsciência, domínios em que não se aventura a  maior parte da psicologia ocidental (exceto a psicologia transpessoal).
Acumulou-se valioso conhecimento sobre a mente, na meditação e na alteração de estados de consciência. Ken Wilber (no livro Psicologia Integral, Pg. 30) escreve sobre os benefícios da meditação que torna o campo mental mais limpo; permite esvaziar a mente de pensamentos, emoções, crenças, percepções; entra em estados de consciência mais lúcidos, melhora a qualidade dos pensamentos; tira o supérfluo e deixa o essencial, permite acessar domínios superiores de forma deliberada e prolongada.
Formou-se em séculos e milênios de experiências um impressionante corpo de conhecimentos sobre o ser humano, seu corpo, sua mente, suas emoções, seus processos psicológicos. Esse corpo de conhecimentos está hoje à disposição do mundo globalizado, que chega a um estágio de crescimento populacional e adensamento em seu território similar ao que a Índia vivenciou no passado. Daí a razão da frase de Tagore, de que  O que a Índia já foi, o mundo todo é agora.”. Invadida e dominada por muitos e variados povos ela desenvolveu um know how de inclusão, de tolerância,  de hospitalidade e de adaptação valioso para o mundo moderno.
Até mesmo o polêmico e controverso sistema de castas que organiza a vida social foi um experimento da sociedade indiana consigo mesma. A Índia constituiu uma sociedade que nunca escravizou nem se deixou escravizar. Sobre esse sistema, Tagore observa  “O que os observadores ocidentais não conseguem discernir é que, em seu sistema de castas, a Índia seriamente aceitou sua responsabilidade de resolver o problema de raças de maneira a evitar toda fricção, e ainda assim oferecendo a cada raça liberdade dentro de suas fronteiras. Admitamos que a Índia não obteve nisso um sucesso absoluto. Mas também deve ser lembrado que o ocidente, situado mais favoravelmente quanto à homogeneidade de raças, nunca deu atenção a esse problema; sempre que confrontado com ele, tentou torná-lo mais fácil, ignorando-o." Num período em que proliferam fundamentalismos e fanatismos ideológicos e religiosos, que polarizam e criam conflitos violentos,  em que os migrantes são hostilizados ou enxotados, vale conhecer o know how indiano  de convivência das diferenças, da hospitalidade e de todos os aspectos do soft power indiano que trazem de modo difuso e discreto influências positivas para o mundo contemporâneo.
Essa civilização com mais de 4000 anos de experiência acumulou um patrimônio enorme de sabedoria e de conhecimentos. Muito desse patrimônio foi acumulado a partir de métodos experimentais, de tentativa e erro, de aproximações sucessivas, de incrementalismos.
A riqueza de um povo não é apenas material, financeira, econômica, ou o seu patrimônio natural,  mas principalmente seu patrimônio social, espiritual e cultural, intangível e imaterial.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Por quê a Índia tem uma leve pegada ecológica per capita?


 Maurício Andrés Ribeiro
A India tem cerca de 1 bilhão e 350 milhões de habitantes. Cerca de 1 bilhão de pessoas, que correspondem a 70% da população indiana, vivem em 600.000 aldeias. Nos anos 70 estudei uma dessas aldeias, Kenchankuppe, no estado de Karnataka, perto  de Bangalore.
 A aldeia é estruturada para produzir grande economia de recursos em atividades diárias: no mobiliário, nos objetos, nos hábitos vegetarianos, nas posturas corporais e no uso intensivo do corpo, Come-se com a mão direita, faz-se a higiene pessoal com a mão esquerda, senta-se no chão,  come-se em pratos de folha vegetal,  movimenta-se a pé, de bicicleta, usa-se o carro de boi,  usam-se modos de transporte que não dependem de combustíveis fósseis; o vestuário  tem poucas perdas de tecidos,  a arquitetura tem climatização natural, sacralizam-se os animais, o desenho das casas para abrigar os animais e recolher o precioso estrume como adubo nas plantações. a aldeia se supre nas vizinhanças de alimentos, água,  energia e materiais. Uma aldeia indiana é um dos modos de assentamento humano mais eficientes  e econômicos no uso de recursos da natureza. Faz-se mais com menos.
Escola ao ar livre em Kenchankuppe. Simplicidade e economia de recursos.
Se consideramos que essa aldeia é uma célula de um organismo mais amplo e que tais hábitos e práticas de vida também se adotam em milhares de outras, pode-se estimar a quantidade geral de recursos naturais que deixam de ser consumidos por tais hábitos frugais de vida. Um bilhão de garfos, facas e colheres a menos, um bilhão de cadeiras a menos, um bilhão de rolos de papel higiênico a menos, bilhões de litros de combustíveis  a menos, bilhões de toneladas de gases de efeito  estufa a menos são emitidas, bilhões de kilowatts de energia elétrica a menos para climatizar edificações etc. Tudo isso contribui para manter  muito leve a pegada ecológica per capita de um indiano médio.
O vegetarianismo é um habito alimentar que mantém leve a pegada ecológica indiana.
A pegada ecológica é o índice que mede a pressão dos seres humanos sobre a biosfera devido ao consumo e estilo de vida. Ela mede a quantidade de recursos que usamos e as emissões de  gases de efeito estufa que produzimos. Uma pegada ecológica leve produz baixa contribuição para a destruição ambiental. Já uma pegada ecológica pesada provoca  forte impacto ambiental negativo.
Ela é um instrumento de avaliação dos impactos antrópicos no meio natural, um indicador de sustentabilidade que permite calcular a área de terreno produtivo necessária para sustentar nosso estilo de vida.
Cada povo tem sua própria pegada ecológica medida  em hectares globais (hag) per capita. Ela varia enormemente de um país para outro. Assim por exemplo, um alemão   médio necessita de 5,1  hectares globais para se sustentar; um brasileiro, 2,9  hag; um chinês,  2,2 hag; um estadunidense,  8  hag; um  japonês, 4,7  hag. A média mundial é de 2,7  hectares globais.

Um Indiano precisa de apenas  0,9 hag  e a  India tem, pois,  uma leve pegada ecológica per capita. O indiano médio tem uma pegada ecológica  9 vezes mais leve do que um americano,  3 vezes mais leve que a pegada global ou brasileira. Seis planetas seriam necessários se cada indiano vivesse como um americano.
Seis planetas seriam necessários se um indiano vivesse como um americano
O indiano médio tem um crédito ecológico, pois  ameaça pouco a sustentabilidade global.
Por quê a Índia tem uma leve pegada ecológica per capita? Porque há 1 bilhão de pessoas com uma pegada ecológica extremamente leve.  A Índia tem 200 milhões de classe média e rica, com aspirações  e estilos de vida consumistas.
Esta leve pegada ecológica se deve a privação material ou a estilos de vida frugais? A ambos, mas a meu ver deve-se principalmente aos hábitos de vida frugais.
Estilos de vida frugais significam aplicar a inteligência e a habilidade para suprir necessidades materiais com uma mínima pressão ecológica e consumo reduzido de recursos naturais.
Fazem parte desse ecodesign sustentável a organização territorial descentralizada em aldeias, as famílias estendidas, a vida comunitária em milhares de ashrams ou comunidades que dispõem de cozinhas coletivas. A leve pegada ecológica per capita dos indianos decorre de frugalidade e sabedoria no modo de vida ecologizado, e não resulta apenas de pobreza econômica. Essa leve pegada merece ser mais bem compreendida e valorizada como um antídoto para a voracidade ocidental cujo peso machuca a Terra.
Isso está em sintonia com o que disse o Mahatma Gandhi: “A civilização, no verdadeiro sentido da palavra, não consiste em multiplicar nossas necessidades, mas em reduzi-las voluntariamente, deliberadamente.”

  
 

A cosmovisão indiana e sua contribuição para o futuro da humanidade

Maurício Andrés
Os povos que se estabeleceram no subcontinente indiano, ao invés de se ocuparem  com conquistas externas, voltaram-se para conquistas internas, para o autoconhecimento, a psicologia, a busca da conexão com o cosmos. Para tanto, precisaram conhecer a fundo o corpo e desenvolveram práticas de respiração, posturas corporais, alimentação, cuidados com a saúde física. Compreenderam a energia que existe no corpo vivo, compreendendo as funções dos chacras ou centros energéticos.
A energia no corpo humano, nos chakras concebidos pelos indianos.
Asanas ou posturas corporais no ioga  resultam de profundo conhecimento sobre o corpo e sua relação com a mente e as emoções.
Precisaram conhecer a fundo a mente, por meio de práticas e exercícios de meditação que expandem os limites humanos, desenvolvem a atenção e presença no agora, a concentração, a criatividade nas artes e ciências.  Desenvolveram práticas mentais por meio do ioga e das alterações de estados de consciência na meditação. Desenvolveram uma sofisticada psicologia e conhecimentos sobre as emoções. Coomaraswamy observa que para cada termo de psicologia em inglês há quatro em grego e quarenta e sânscrito. A psicologia yogue faz experimentações em faixas da consciência que não são aceitas pela maior parte dos campos da psicologia ocidental, exceto a transpessoal.
Os indianos desenvolveram uma elaborada filosofia e cosmovisão, permeada por conhecimentos espirituais. Na narrativa sobre a criação do universo, desenvolveram uma concepção cíclica do tempo, não linear. Conceberam  a narrativa de que os universos são criados conforme o ritmo da respiração de Brahman, o deus absoluto. A narrativa hindu da criação e da extinção do mundo tem grande similaridade com as concepções mais atuais da ciência, do big bang ao big bounce. Pode ser que um dia a ciência adote a narrativa da grande respiração.
A unidade humana é valorizada por seus grandes pensadores, tais como Gandhi, Sri Aurobindo e Tagore, para além das micro unidades nacionais ou regionais e das micro identidades que separam.  A arte indiana expressa a espiritualidade e a toma como motivo prioritário. A Vedanta, a sabedoria das escrituras sagradas, os Vedas, desenvolveu a concepção de que Deus está dentro de cada um e não apenas em cima e no alto. O Namasté é o cumprimento tradicional que reflete isso : O Deus que habita em mim saúda o Deus que habita em ti.” Sacralizaram bichos e arvores, rios e montanhas. Experimentaram de tudo e valorizaram a experimentação e não apenas o acreditar numa verdade externa dogmatizada.
Na Vedanta, Deus está dentro e práticas de meditação permitem acessá-lo.
Na relação com o tempo desenvolveram a paciência e a capacidade de evoluir sem sacrificar valores fundamentais como o das liberdades individuais, especialmente a liberdade espiritual, de pensamento e de expressão. Sempre atuaram com a força de seu soft power, o poder suave de sua cultura e cosmovisão: “A Índia, fiel ao seu motivo espiritual, nunca participou dos ataques físicos da Ásia contra a Europa; seu método sempre foi uma infiltração do mundo com suas ideias, como hoje vemos novamente em andamento.“ (Sri Aurobindo –  IS INDIA CIVILISED? “The Renaissance in India”, pp. 53-66)
A espiritualidade é um dos principais motivos da arte indiana.
Por  suas características únicas a Índia oferece contribuições fundamentais nessa fase da história em que o mundo encolheu, em que se evidenciam os seus limites físicos e ecológicos e de sua capacidade de suporte. O soft power indiano amadurecido em milênios de história torna-se valioso pois ali se experimentaram formas de convivência, de tolerância, de paciência, de não violência, de frugalidade, de convivência com a diversidade, cada vez mais necessárias no mundo contemporâneo.
 
 
 

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

A Índia é uma terra de inspirações

Maurício Andrés Ribeiro
A Índia exerceu a hospitalidade para com a diversidade de povos que se estabelecerem em seu fértil território.


A Índia tem um território, uma mente e alma férteis. O subcontinente indiano faz parte da Ásia,  que tem 1/3 das terras e 3/5 da população mundial, sendo composto por 49 países. Na Ásia há civilizações milenares que sofreram colonização e nas quais se mesclam tradição e modernidade.
Enquanto a civilização egípcia, a grega e outras tiveram sua ascensão, apogeu e declínio, tendo se extinguido, a  Índia tem 4.000 anos de civilização contínua (a única outra tão longeva é a civilização chinesa).
No século 20 a Índia se tornou independente em 1947 depois de um processo de luta admirável  liderado pelo Mahatma Gandhi, em que quase não houve derramamento de sangue.
No início do século XXI a Índia tem 1.350 bilhões de habitantes, ou seja, 17 % da população mundial. Dentro de poucos anos ultrapassará a China e se tornará o país mais populoso do mundo. Sua população dobrou em 40 anos e hoje é 30% urbana. O restante vive em mais de 600 mil aldeias.  A agricultura gera  28 % do PIB e responde por 67 %  do emprego.
Mais de 600 mil aldeias abrigam cerca de 1 bilhão de habitantes.
É a maior democracia do mundo. Há diversidade religiosa, com 80% de hindus, 13% de muçulmanos, 2,5% de cristãos, além de sikhs, budistas, jains, parsis,  e outras tradições.
A diversidade de tradições espirituais é um dos aspectos da diversidade indiana.
 
Há diversidade linguística, com 17 línguas e centenas de dialetos.  Ali se usam 9 das 23 línguas mais faladas no mundo: hindi, marathi, urdu,  telugu, tamil, bengali,  francês, português, inglês. 125 milhões falam inglês. É comum ser poliglota.
Muitas vezes invadida, a Índia nunca foi expansionista nem se ocupou em conquistar outros povos ou territórios. No fértil vale do Ganges e no subcontinente indiano parecia haver espaço para todos.  O poeta de prêmio Nobel Rabindranath Tagore observou que “A missão da Índia foi como a da anfitriã que tem que prover acomodações apropriadas para numerosos hóspedes, cujos hábitos e necessidades são diferentes uns dos outros. Isso causa complexidades infinitas, cuja solução depende não meramente de tato, mas de simpatia e de um verdadeiro entendimento da unidade do homem.”
Com essa história e essa geografia, o subcontinente indiano gerou um povo tolerante, paciente, cuja riqueza  não é apenas material, financeira, econômica, ou o seu patrimônio natural,  mas principalmente seu patrimônio social, espiritual e cultural, intangível e imaterial. Seu conceito de não-violência ou ahimsa se estende ao mundo animal e à natureza e foi aplicado na luta pela independência. Suas lutas políticas recorreram a esse tesouro imaterial de visões sobre o mundo e a independência se faz sem grande violência.
Na sua experimentação na relação com a natureza, produziu uma sociedade frugal, capaz de se sustentar com o mínimo de recursos materiais e com forte inteligência espiritual. A pegada ecológica indiana per capita é muito baixa e isso se deve em parte a tais práticas cotidianas que dispensam o uso de recursos materiais em hábitos tais como sentar-se, alimentar-se, na organização do território em centenas de milhares de pequenas aldeias que se abastecem nas vizinhanças com água, alimentos e energia e materiais, nas práticas comunitárias e cozinhas coletivas nos ashrams.

 

 



 

O valor da renascença indiana para lidar com a atual crise na evolução




A frugalidade nos hábitos cotidianos economiza os recursos da natureza. Lodi Park, Delhi.
Maurício Andrés Ribeiro

Gandhi, Sri Aurobindo e Rabindranath Tagore buscaram no conhecimento indiano ancestral inspiração e força espiritual para potencializar a luta política. Eles atuaram num período em que havia a luta pela independência da Índia contra a colonização europeia. Essa etapa passou e foi alcançado o resultado pelo qual lutaram.
O renascimento indiano se iniciou no século XIX quando Vivekananda e os teosofistas reconheceram o valor da cultura indiana menosprezada pelos colonizadores.  Um resultado expressivo dessa valorização foi a independência da Índia em 1947 aplicando-se conhecimentos da cultura védica.
Nos anos 60 a contracultura e os Beatles ajudaram a divulgar no ocidente os benefícios da meditação e do yoga.  O poder suave da cultura indiana se disseminou no mundo.
Hoje o mundo vive em outro contexto, o dos limites físicos e ecológicos do planeta diante de uma população crescente que consome e exaure os recursos da terra. A renascença indiana se fortalece e recebe um novo impulso mais de cem anos depois que  Tagore e  Sri Aurobindo escreveram sobre ela. A motivação que impulsiona o renascimento  indiano e sua influência no mundo atual está no reconhecimento dessas riquezas da Índia para a evolução humana.

No momento atual da história,  tornam-se  relevantes valores como o da frugalidade, que mantém uma pegada ecológica leve, a sacralização da natureza,  encontrar formas de se organizar de modo econômico  e ecológico. A Índia dispõe de conhecimentos e práticas  nesses campos, valiosos para o contexto atual.

Olhar para a Índia,  para seus problemas e as formas como lida e lidou  com eles constitui uma valiosa aprendizagem. Aquela civilização, entre todas as que existiram, soube ser sustentável em sua relação com o ambiente natural, forjando estilos de vida e padrões de consumo com baixa pressão sobre o meio ambiente e sacralizando bichos, plantas, elementos do ambiente natural.
Macacos em templo. A sacralização dos animais na cultura indiana.
 

Soube, ainda, desenvolver uma tecnologia das emoções para lidar com o equilíbrio físico, emocional, mental e espiritual dos seres humanos e codificar de modo claro seus conhecimentos para transmiti-los para outras gerações. Outras civilizações antigas na África ou nas Américas também desenvolveram uma cosmovisão abrangente, mas talvez por não terem uma cultura escrita tão sofisticada, muito dessa sabedoria se perdeu no tempo.

Por sua diversidade cultural e política e por sua formação histórica, a Índia é uma nação multinacional, que mantém unidade na diversidade e que foi celeiro e campo fértil para ideias e propostas globalistas, mundialistas e voltadas para o federalismo mundial.

Soube ser resiliente em sua relação com outras culturas, por meio da capacidade de suportar invasões e de não se deixar destruir ou oprimir por outros povos; a civilização  indiana resistiu à colonização ocidental, absorveu influências e agora por sua vez influencia o mundo ocidental que a colonizou.

Especialmente no Brasil, fortemente influenciado pela cultura europeia e norte americana, há um déficit de conhecimento sobre tais riquezas da Índia, que poderiam ser valiosas para aprimorar a civilização brasileira, tropical como a da Índia. Além desse déficit, há preconceitos e visões negativas alimentadas por informações superficiais das atualidades e que não valorizam a sabedoria ancestral ali formulada e guardada.  O  menosprezo e desprezo pela cultura védica  demonstrados pelos colonizadores europeus há um século ainda persiste na mídia e influencia as percepções sobre aquele país. Entretanto essa percepção vem sendo dissolvida à medida que se buscam novos caminhos para superar os impasses e as encrencas em que se meteu a humanidade.

 Quando confrontada com possível colapso, com inseguranças e insustentabilidade, a consciência humana busca socorro em cosmovisões que valorizam a sustentabilidade e a frugalidade como antídotos para esses descaminhos.

Atualmente a Ásia reassume protagonismo no mundo por sua relevância em termos demográficos, políticos, econômicos, culturais. Na Ásia, a civilização  indiana se destaca pelo modo como se organizou, como desenvolveu práticas de autoconhecimento, nunca agrediu ou invadiu outros povos e territórios, valorizou a inteligência espiritual,  registrou e codificou os conhecimentos sobre sustentabilidade que experimentou na prática. A renascença indiana está em curso e sua contribuição para a história humana nesse momento de crise na evolução vem sendo dada por meio do poder de sua espiritualidade e da sua riqueza intangível e imaterial.

 

 

 

A cultura indiana, do menosprezo à renascença


Maurício Andrés Ribeiro 

Prática de exercícios de yoga em escola em Delhi auxilia na concentração e no aprendizado. O soft power indiano em ação.
Durante  muitos séculos o subcontinente indiano foi invadido, colonizado e se transformou. As grandes navegações que buscavam um caminho marítimo para as Índias, as invasões mongóis e muçulmanas e a colonização pelos europeus impactaram as culturas e valores preexistentes.

A cultura indiana foi desprezada pelos colonizadores europeus e particularmente pelos ingleses.  O político Lorde Macaulay, que reformou o sistema educacional indiano durante a colonização,  afirmou que:  ”o conjunto inteiro da filosofia e literatura indianas  não valia uma única prateleira de uma boa biblioteca europeia.” E Winston Churchill disse que “ Eles (os indianos) são um povo bestial com uma religião bestial”. Falar e ensinar as línguas locais era punido e a língua inglesa era incentivada. Nos clubes dos colonizadores, indianos e cachorros  não entravam.

A partir do final do século XIX redescobriu-se o valor da sabedoria ancestral contida nos Vedas, as escrituras sagradas. Vivekananda no Congresso Mundial de religiões em Chicago em 1893 e os teosofistas (cuja sede mundial se instalou em Adyar - Chennai, no sul da índia) tiveram papel importante nessa revalorização. Sri Aurobindo escreveu sobre a renascença indiana e a força  de seus pensamentos e conceitos, que foram aplicados na política por Gandhi e pelos que alcançaram a independência da Índia em 1947.

Na segunda metade do século XX a influência da Índia se propagou no mundo por meio do yoga, da meditação, da literatura, da ciência, da medicina, da alimentação, do cinema, do poder suave da cultura (o soft power indiano).  Nos anos 60 os Beatles ali buscaram inspiração e a divulgaram; a Índia abrigou o Dalai Lama depois da invasão do Tibete pela China e dali os conhecimentos budistas se disseminaram pelo mundo.  Diversos gurus, uns mais e outros menos polêmicos e controversos, criaram comunidades nos Estados Unidos e na Europa.

O poeta e prêmio Nobel Rabindranath Tagore compreendia a importância de a Índia compartilhar sua experiência com o mundo: “Ao encontrar a solução para nosso problema, teremos ajudado a resolver também o problema do mundo. O que a Índia já foi, o mundo todo é agora. O mundo todo está-se tornando um único país por meio das facilidades científicas.”[1]

O grande laboratório social indiano experimentou modos de solucionar cada questão que ali se apresentou, recorrendo à sua riqueza imaterial. A independência política alcançada por meios não violentos é o resultado mais conhecido. O adensamento demográfico, a convivência entre  os diferentes, a relação com a natureza são questões enfrentadas pioneiramente na Índia há muito tempo. Vários problemas foram solucionados, outros ainda estão sendo processados com liberdade. No mundo que hoje passa por problemas similares recorre-se à sabedoria indiana para buscar respostas.

Na primeira parte do século XXI, a consciência sobre a emergência climática e sobre a atual crise na evolução busca em cosmovisões como a indiana inspirações para produzir respostas adequadas.

 



[1] TAGORE, Rabindranath. On Nationalism, p.59-60.