sábado, 26 de novembro de 2022

OCEANOS

 Maurício Andrés Ribeiro



 

Os cinco grandes oceanos são um só, interligado por correntes marítimas que no passado foram usadas pelos navegadores ao viajarem pelos mares. 96,5% de toda a água existente na Terra é salgada e se encontra no oceano. O sal existente nos oceanos resulta de milhões de anos em que os rios transportaram para  os mares os sais existentes nas rochas.

A água tem a capacidade de reter calor e de liberá-lo para a atmosfera, e o clima é afetado pelo comportamento dos oceanos. Os oceanos são crescentemente compreendidos como reguladores térmicos do planeta.

A água evaporada dos oceanos forma as nuvens que, trazidas pelos ventos, chovem nos continentes - as monções na Índia, os rios voadores na Amazônia. Com  o aquecimento  ela se evapora em maior quantidade e formam-se os furacões e tempestades. Ao evaporar, as águas se dessalinizam e o sol é portanto, um grande dessalinizador natural de água do mar. 

Com o degelo nos polos, a quantidade de água liquida aumenta e eleva-se o nível dos mares. Se as correntes marítimas se alteram existe a possibilidade de se cortar a corrente do Golfo, o que poderá levar à Europa uma nova era do gelo. 

Como grande parte da população humana se localiza em zonas costeiras, são expressivos os impactos sociais e econômicos da elevação do nível dos mares. As cidades costeiras tornam-se vulneráveis e exigem medidas de adaptação. Aumenta a intrusão da cunha salina,  ou seja, águas salgadas e salobras se misturam nas águas doces, e isso afeta os sistemas de abastecimento em cidades costeiras.

O fenômeno do El Nino, com a elevação da temperatura do Pacífico,  provoca alterações climáticas em várias partes do mundo e especialmente na América do Sul. No Brasil, aumentam chuvas no Sul, reduzem-se chuvas no nordeste, nos anos de El Nino. Inversamente, o fenômeno La Nina resfria o Pacífico e influencia o clima na América do Sul e no Brasil, onde aumentam as  chuvas no norte e nordeste e aumentam as secas no sul.

Os mares e oceanos recebem das águas doces superficiais dos rios. Quando não são devida e previamente saneadas, elas carreiam para os mares resíduos em grandes quantidades gerando ilhas de lixo como aquelas que se formaram no oceano Pacífico. Os oceanos tem sido crescentemente poluídos com plásticos e com o derramamento de óleo no mar em acidentes e desastres, bem como com o despejo de esgoto que afeta a balneabilidade das praias.  Em fevereiro de 2023 a Marinha brasileira afundou no oceano Atlântico o porta-aviões São Paulo, contendo toneladas de amianto, material  cancerígeno, outros poluentes químicos e eventualmente até resíduos radioativos, já que ele tinha operado no oceano Pacífico quando dos testes nucleares realizados alí pela França. Trata-se de mais um evento que demonstra a atitude do homo lixius de tratar o oceano como lata de lixo onde despejam seus resíduos, atitude que precisa ser superada. A ecologização da Marinha pode ser um caminho para evitar ações similares no futuro.

Os oceanos também são atingidos por desastres ecológicos, como o rompimento de uma barragem em  Mariana em 2018, que poluiu todo o rio Doce e chegou ao Oceano Atlântico. A construção de represas ao longo dos rios retém sedimentos e altera a vida a jusante e nos mares.

O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14, das Nações Unidas, trata da vida aquática e propõe conservar e utilizar de forma sustentável os oceanos, os mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.

A Agenda 21, produto da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992 dedica seu capitulo 17 à proteção dos oceanos, de todos os tipos de mares -- inclusive mares fechados e semifechados -- e das zonas costeiras, e proteção, uso racional e desenvolvimento de seus recursos vivos. 

James Lovelock, autor da Teoria de Gaia, observa que “durante bilhões de anos, os oceanos forneceram (e continuam a fornecer) um meio muito mais estável para o desenvolvimento da vida do que as superfícies terrestres. Os oceanos não estão sujeitos a amplas flutuações de temperatura: os nutrientes tendem a ficar mais uniformemente dispersos (embora as concentrações variem com a mistura física e a atividade dos plânctons); além disso, como é um meio mais denso do que o ar, fornece flutuabilidade e apoio para organismos simples, que carecem de estrutura rígida.” (Gaia - Pág. 104.)

Para restaurar oceanos limpos e saudáveis há uma pauta prioritária que inclui combater as fontes de degradação marinha, desde aquelas distantes - como por exemplo barragens de minério nas montanhas - lixo, esgoto urbano, até o derramamento por navios, do óleo que polui as praias. Filtrar, gradear, coletar os resíduos  com redes antes que cheguem ao mar e de preferência em sua origem são modos de gerenciar a questão do lixo e de limpar os oceanos. Para proteger as áreas costeiras e estuarinas dos efeitos das mudanças climáticas  são necessárias  ações para conter a progradação das praias, e a intrusão de cunhas salinas nas  águas que  abastecem cidades costeiras.

A Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, realizada em Lisboa em 2022 propõe salvar os oceanos e proteger o futuro. Oceanários como o de Lisboa ou o de Monterrey na California são locais de divulgação de conhecimentos sobre os oceanos e sobre a necessidade de sua proteção.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

HIDROLOGIAS

 Maurício Andrés Ribeiro





A palavra hidrologia significa o estudo da água. Ela estuda a sua ocorrência no planeta Terra, como está distribuída e se movimenta, suas propriedades físico-químicas, sua relação com o ambiente e com a vida. 

A hidrologia especializada usa um dialeto, o  hidrologuês, um jargão hermético e de difícil compreensão para os leigos, a quem são estranhos os conceitos e termos como curvas-chave, linhas de base, hidrograma ecológico, hidrograma unitário sintético, modelagem chuva-vazão, vazões mínimas de referência, estresse hídrico, tempo de concentração, período de retorno, volumes de espera, série temporal não-estacionária, regularização de reservatórios, vazão regularizada, rios intermitentes, alocação negociada, balanço hídrico, curvas de permanência, curvas de aversão ao risco etc. Essa hidrologia especializada e focada em questões quantitativas é  útil para a gestão e a tomada de decisões para obras de infraestrutura. Os especialistas em recursos hídricos, de várias profissões e formações acadêmicas dominam aspectos específicos e práticos do conhecimento sobre a água, aplicados para fins de gestão ou de engenharia e construção de obras hídricas. Cientistas, especialistas e interessados se ocupam em estudar e gerenciar seu uso.

Entretanto, deixam em segundo plano múltiplos aspectos qualitativos, tratados como pano de fundo sem maior relevância.

A hidrologia ambiental fornece o conhecimento de base para os especialistas em recursos hídricos atuarem em planos, na medição de chuvas e de vazões de rios, no cálculo das águas disponíveis; na medição dos aspectos físicos, químicos e biológicos que revelam a sua qualidade. Trata-se de abordagem quantitativa que tem sua base na coleta acurada de dados sobre chuva e vazão de rios. Equipamentos tais como pluviógrafo, pluviômetro de proveta, réguas de cálculo, amostrador de sedimentos, anemômetro de solo, piranógrafo, flutuador, radiômetro, molinete, sonda Doppler, ecobatímetro, mini Cartan (para medir a velocidade do fluxo), cadernos para anotar observações de campo, compõem a caixa de ferramentas dos hidrometristas que observam os dados em campo e os transmitem para serem analisados e produzirem informações estatísticas e séries históricas que são básicas para a tomada de decisões.  

A hidrologia estatística enfatiza aspectos quantitativos valiosos para a gestão.  A hidrologia aplicada focaliza questões relacionadas com o uso dos recursos hídricos, tais como os planos de bacias hidrográficas, o abastecimento e a drenagem urbana, os aproveitamentos hidroelétricos, a erosão, as poluições e a qualidade. Relaciona-se com o projeto e a construção de obras de engenharia e de infraestrutura hidráulica – reservatórios, represas, aquedutos, canais, portos – e também nas práticas de gerenciamento. Nesses aspectos práticos, técnicos, gerenciais e administrativos, conhecimentos hidrológicos quantitativos embasam a tomada de decisão.

A hidrologia espacial é um campo emergente e com grande futuro e que faz uso de satélites, de sensoriamento remoto e observações a partir do espaço com as tecnologias mais recentes. A hidrologia isotópica estuda os isótopos de hidrogênio e oxigênio nas moléculas de água e a informação que eles trazem sobre a origem daquela molécula, a idade das águas subterrâneas e diversos outros aspectos.

Os campos da glaciologia ou criologia estudam o gelo; a hidro-meteorologia estuda sua presença na atmosfera, a limnologia estuda as extensões de água doce, como os lagos e pântanos; a hidrostática, a hidro cinética, a hidrodinâmica, estudam seus aspectos físicos, a hidrografia estuda as águas correntes, a oceanografia estuda as águas oceânicas e a hidrogeologia estuda as subterrâneas. O campo da hidro cosmologia estuda a que existe no cosmos e nos corpos celestes, como as caudas dos cometas.

Cada vez mais os aspectos humanos, culturais, históricos, econômicos, tendem a se desenvolver. Devido à sua importância política e social surgiram os campos da hidropolítica e da hidrologia social, bem como a hidrologia urbana.

O campo da hidrologia médica trata das curas medicinais por meio da crenoterapia nas estâncias hidrominerais, das hidroterapias com agentes terapêuticos. A hidropatia é o tratamento de algumas doenças. Escalda pés e compressas alternadas de água quente e fria foram práticas efetivas para alguns males da saúde.

Tais abordagens são necessárias, porém não são suficientes quando isoladas umas das outras e tratadas de modo fragmentado. Dispor de competência técnica e cientifica é necessário, porém insuficiente.

Especialistas sabem muito sobre pouco e perdem a visão panorâmica. São um perigo se estão soltos e sem direção lúcida. Decisões baseadas apenas em sua visão podem causar estragos e danos.

 O conhecimento técnico e científico das várias hidrologias são valiosos  para gerenciar os usos da água, numa perspectiva utilitária. Nessa visão ela é um objeto de uso do qual se pode dispor ao bel prazer para atender demandas.

Em geral não se questionam ou avaliam criticamente essas demandas para saber se são prioritárias ou se seria melhor deixar de usar aquele bem para preservar uma paisagem natural, para a contemplação, para ela existir livremente.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

JUSTIÇA DAS ÁGUAS


Maurício Andrés Ribeiro
 

As ações humanas transformam o meio ambiente, o clima e as águas. Essas ações beneficiam alguns indivíduos, grupos sociais ou países e prejudicam outros. Assim, por exemplo, a emissão de gases de efeito estufa pelos países industrializados, desde a revolução industrial na Europa no século XVIII está causando consequências desastrosas em pequenas ilhas do Pacífico, situadas a milhares de quilômetros de distância.  Alguns agem e se beneficiam, outros são prejudicados pelas consequências negativas dessa ação.

A justiça climática procura distribuir de modo mais justo e equitativo os benefícios e custos. Um garimpeiro que usa mercúrio para separar o ouro do cascalho se beneficia desse uso, mas prejudica populações ribeirinhas muitos quilômetros rio abaixo, que precisam do peixe para se alimentar, que se contaminou com o mercúrio. Grandes empresas mineradoras ou de agropecuária bombeiam muita água do subsolo para fazer suas atividades de extração de minério ou de produção agrícola. Com isso, rebaixam lençóis freáticos e provocam a seca subterrânea mencionada pelo médico e ambientalista Apolo Heringer Lisboa. Pequenos sitiantes sofrem as consequências quando secam as nascentes e passam a precisar de caminhões pipa para abastecê-los.

Quando alguns se beneficiam e outros são prejudicados originam-se injustiças sociais.

Num mundo justo e equitativo, cada um dos bilhões de habitantes do planeta deveria ter acesso a uma quantidade adequada de água de boa qualidade para atender às suas necessidades de vida. No mundo real, não acontece assim.  Milhões de pessoas têm dificuldades de acesso a água potável de boa qualidade. Mulheres precisam caminhar longas distâncias para carregá-la para seu uso cotidiano. A água tratada não chega a todas as casas. Rios são poluídos. Fontes secam devido à extração exagerada.

Aprofundam-se situações de injustiça hídrica. Os direitos de acesso à água são outorgados pelos governos. Grandes empresas com recursos financeiros se apropriam do direito de acessá-la. As secas e enchentes contribuem para aprofundar a injustiça hídrica, para exacerbar as desigualdades no acesso e a vulnerabilidade dos segmentos mais pobres da população.

Em 2018 Brasília sediou o 8. Fórum Mundial da Água e naquela ocasião juízes de todo o mundo aprovaram uma carta sobre justiça hídrica. Essa declaração sobre justiça da água explicitou  dez princípios:

 1. A água é um bem público.

2. Deve-se respeitar a função ecológica da propriedade.

3. Deve-se promover a justiça com os povos indígenas e das montanhas.

4. Deve-se adotar o princípio da prevenção.

5. Deve-se adotar o princípio da precaução pelo qual, ainda que não haja certeza cientifica sobre as consequências das ações, elas não devem ser tomadas para evitar que ocorram danos irreversíveis no ambiente.

6.  As leis devem ser interpretadas da maneira que mais proteja as águas. Em latim a expressão “in dubio pro aqua” significa que, na dúvida, a interpretação deve ser   a favor da água. A justiça das águas a torna sujeito de direitos e dá a ela a prioridade.

 7. Quem usa e polui deve pagar por esse uso, o poluidor e o usuário pagam.

8. Precisa haver a boa governança, com aplicação e imposição de boas leis.

9. Os juízes devem considerar a integração ambiental e ecossistêmica das águas.

10. Os procedimentos da justiça devem assegurar acesso e participação dos interessados.

Podemos acrescentar alguns princípios orientadores para a gestão que leve à justiça hídrica:

·         O princípio da solidariedade

·         O princípio da subsidiariedade

·         O princípio protetor recebedor

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

HIDROSOFIA

Maurício Andrés Ribeiro 

Hidrosofia: essa palavra que ainda não existe nos dicionários significa a sabedoria sobre a água. Tem um significado mais amplo e abrange um campo maior do que a hidrologia, o estudo científico da água.  Inclui além do conhecimento científico, outros modos de conhecer e de saber.

Para se lidar com ela de modo amigável, harmonioso e orgânico, a água  merece ser vista a partir de diversos ângulos e de diversos campos do conhecimento humano, tais como as artes, as tradições espirituais e sapienciais, a intuição  e as filosofias. Complementarmente, eles contribuem para construir uma abordagem holística, numa variedade de modos de se abordar o tema: do teórico ao prático, do abstrato ao conceitual, num mosaico de percepções.

A hidrosofia abarca o conhecimento geral e não apenas aquele produzido e comunicado por especialistas. Ao adotar uma cosmovisão  abrangente a hidrosofia inclui a visão especializada, a visão interdisciplinar e a visão transdisciplinar.

Abordar a água pelo ângulo da hidrosofia abre o olhar para outras dimensões e modelos mentais e para outras possibilidades de lidar e se relacionar com ela. Os seres humanos são vistos como parte integrante do ciclo da água que circula por seus corpos; a água deixa de ser um objeto externo ao corpo e passa a ser percebida como parte do sujeito que pensa sobre ela e a sente. O ser humano é visto de forma integrada com os processos globais. Restabelecem-se os vínculos de comunhão entre o ser humano e a água.

A hidrosofia ultrapassa o racionalismo, o intelectualismo e o cientificismo, que não tem sido capazes de evitar sua exaustão e os maus tratos que recebe na abordagem apenas utilitarista. Ela se abre em direção à experimentação comunitária e social, compreendendo a metamorfose que está em curso no planeta.

Em meio ao excesso de dados, informações, conhecimentos técnicos e científicos procura-se alcançar a sabedoria hidrológica. Uma sabedoria que permita discernir para extrair da natureza o que é necessário para sustentar a vida e ao mesmo tempo garantir as normas, regras e prioridades que não prejudiquem a integridade dos ecossistemas e dos hidrossistemas.

O termo ainda está em elaboração. Até o momento o vocábulo
hidrosofia
foi usado apenas para fazer a publicidade de uma combinação de nutrientes num copo d’água, que teria o poder de fazer bem à saúde;
numa obra de arte de um designer intitulada  hydrosophy; e num jogo eletrônico.
 Quando se consolidar como um campo dos saberes, a hidrosofia catalisará os movimentos na busca de uma hidrologia integral e transdisciplinar.

 

 

 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

ÁGUA E TRANSDISCIPLINARIDADE

Maurício Andrés Ribeiro

 


A palavra Transdisciplinar foi usada pela primeira vez pelo educador Jean Piaget e depois por Basarab Nicolescu no seu Manifesto da Transdisciplinaridade. No Brasil,  foi adotada  nos anos 1980 pelo psicólogo e educador  Pierre Weil que criou a Universidade Holística Internacional de Brasília- UNIPAZ.

Os especialistas – hidrólogos, hidrogeólogos, oceanógrafos, climatologistas – têm papel crucial para compreender a fundo os temas relacionados com a água. Entretanto essa visão necessária não é suficiente.  Para superar a visão fragmentada acadêmica não basta somente uma visão interdisciplinar, que mantem as disciplinas. É necessária uma visão abrangente, transversal, que articule e integre os diversos olhares fragmentados e setoriais. Ser transdisciplinar significa ir além das disciplinas fragmentadas  e especializadas com as quais usualmente se classifica e se opera na educação escolar e nas profissões. Um clínico geral vê o organismo como um todo e pode identificar os pontos que merecem a atenção de especialistas.

Uma visão panorâmica sobre as águas enxerga a sua presença tanto no macro como no microambiente. Ela está no cosmos, na cauda dos cometas e nos outros corpos celestes onde se busca a existência de vida; está presente no planeta Terra, nos corpos dos seres vivos; está, ainda, na consciência das pessoas.

No campo cultural, ela está nos nomes de lugares, em palavras, músicas, poesias, manifestações religiosas e sagradas.

A visão transdisciplinar não se limita à abordagem racional, científica. O pensamento intelectual sobre a água é uma das muitas maneiras de abordá-la. Pode ser pragmático e facilitar seu uso, mas não é o modo mais abrangente para se relacionar com ela.

O transdisciplinar vai além da superação das disciplinas acadêmicas formais que fazem uso da razão e se expande para o campo das emoções, dos sentimentos e da intuição, mobilizando não apenas as ciências.  A transdisciplinaridade  articula os conhecimentos das ciências, das artes, das tradições espirituais e da filosofia.

Ela  inclui toda a percepção que as artes trazem, com a música,  literatura, a poesia, as artes plásticas, o teatro, o cinema, que mobilizam emoções e sentimentos. Os artistas têm grande poder de comunicação, de atuar sobre as emoções e mobilizar para causas hídricas e ambientais. Os artistas que colocam suas habilidades e talentos a serviço das águas prestam um relevante serviço ao sensibilizar a sociedade. Textos técnicos são importantes, mas é insubstituível o poder do cinema, da linguagem não verbal da música, da poesia, da literatura, da dança. A água está diretamente relacionada com as emoções. A emoção move, a razão organiza. Não por acaso os humores do corpo e os humores psíquicos têm a mesma palavra para designá-los.

A transdisciplinaridade e a visão holística também incluem o senso do sagrado, a ressacralização da natureza e das águas, para tratá-las com reverência e respeito e não apenas como um recurso a ser utilizado pragmaticamente para atender a necessidades, demandas e caprichos humanos.

 Pensar sobre a água, refletir sobre a água, estudar a água, sentir e se emocionar com a água se expressam numa abordagem transdisciplinar.

Em 2018, durante o 8. fórum mundial da água em Brasília criou-se o Centro Internacional de Água e Transdisciplinaridade- CIRAT- que defende uma visão holística e transdisciplinar sobre a água. O CIRAT atua em rede nos campos da arte e cultura, ciência e academia, educação, produção de conhecimento e inovação. Tem projetos de agricultura regenerativa, estrutura molecular da água, desenvolvimento territorial. Desde então, explorou diversos caminhos originais e alcançou resultados em seus estudos e pesquisas, articulando-se com entidades em outras partes do mundo que compartilham o mesmo espirito de  olhar a água de um jeito novo.

domingo, 20 de novembro de 2022

Agrosofia – o agro com sabedoria

Maurício Andrés Ribeiro

A agronomia é uma área do conhecimento que lida diretamente com o campo e com a produção agrícola. Aplicada, é um ramo das engenharias que define as regras e normas para trabalhar no campo.

José Lutzemberger foi um agrônomo que se transformou em ambientalista naturalista e que denunciou a visão estreita de uma formação apenas especialista; o agrônomo Antonio Donato Nobre avançou numa abordagem ecologicamente consciente para compreender os rios voadores da Amazônia e as interfaces da água com as florestas e a biodiversidade. Ana Maria Primavesi focou na estrutura porosa dos solos férteis, sem a qual não adianta a fertilidade química, pois é pelos poros do solo vivo e pelas raízes que a água e o ar entram.  Rudolf Steiner, o criador da agricultura Biodinâmica, via a propriedade agrícola como um organismo, tendo o agricultor como o cérebro e as árvores, pássaros, insetos, animais selvagens, plantações e gado como os demais órgãos deste organismo. 

 

 O poder do agronegócio de grande escala influenciou as escolas de agronomia e expandiu um modo de perceber e atuar com a terra que desconsidera a integração com a natureza, as águas, o solo vivo e se baseia no uso intensivo de adubos químicos e agrotóxicos.   As mentalidades de tais agrônomos foram condicionadas por essas influências. Isso trouxe consequências para a poluição das águas e para a perda dos solos férteis, compactados e transformados em pó e para os variados impactos negativos do agronegócio industrializado.

Práticas de plantio direto e de agroflorestas consorciando a produção agrícola com a existência de florestas procuram reintegrar a produção agrícola nos processos e ciclos naturais.

As práticas agronômicas tradicionais valorizavam uma abordagem hidroconsciente que vem sendo revalorizada. A  hidroagronomia faz evoluir de uma agronomia hidro alienada (Aha) para uma 
  agronomia hidroconsciente (ahc) de baixo consumo de água (ABCA).

A agronomia integral, com visão holística e abrangente se aproxima da Agrosofia (o conhecimento amplo e a sabedoria sobre a agricultura). Esse neologismo em português, usado por  Ainor Loterio, propõe dar atenção a uma relação harmônica com a natureza e com os seres humanos, animais e vegetais que nela vivem, além da terra, as águas, o ar e a cultura.  

A palavra Agrosofia já é usada em várias línguas: em francês, denomina uma comunidade exploratória de pesquisadores alternativos. Na Rússia há uma empresa de importação e exportação e alimentos com esse nome e uma associação de produtores, processadores, consumidores, comerciantes, institutos e pesquisa e educação, certificação, orgânicos e biodinâmicos. Na Colômbia trata do conhecimento camponês como uma outra filosofia, que valoriza o senso comum como forma de filosofar.

A Agrosofia pode significar uma mudança de mentalidade e de compreensão que ajudarão a tornar mais amigáveis e menos destrutivas as relações dos seres humanos com o campo e a terra.

 

(com a colaboração de Euler Andrés Ribeiro)

 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

O CLIMA E A AVALIAÇÃO DE IMPACTOS DAS GUERRAS

                                                               Maurício Andrés Ribeiro (*)

 A guerra é a  atividade humana potencialmente mais degradante, devastadora do ambiente e emissora de gases do efeito  estufa. É a  atividade que tem a maior possibilidade de gerar conseqüências negativas e sofrimento para as pessoas e para o meio ambiente. “De uma maneira geral genocídio e ecocídio são gêmeos”, observa Ignacy Sachs.

As guerras  produzem vários impactos negativos sobre o ambiente natural, cultural e humano.


Figura – Efeitos ambientais da atividade bélica

 

O impacto ambiental negativo das guerras está presente em todo o ciclo de vida dos conflitos armados: da extração das matérias primas para a indústria de armamentos, passando pelo uso desses equipamentos, até a sua disposição final, constituída pelos resíduos atômicos, químicos e bacteriológicos. Isso sem falar nas conseqüências funestas dos atos de terrorismo ou nos impactos do uso de armas biológicas nas guerras convencionais como na possível propagação intencional do botulismo, da varíola e do antraz ou no desmatamento ocasionado pelo napalm e outras armas de guerra. O urânio usado nas balas contamina o ambiente com radioatividade e dissemina o câncer e outras doenças. A contaminação dos rios e a perda de potencial de uso do solo pela disseminação das minas terrestres, que mutilam pessoas e animais, ou o uso da bomba de nêutrons – a chamada “bomba capitalista”, porque destrói a população mas preserva o patrimônio material - , são exemplos da destrutividade e do potencial de devastação causados pelas atividades bélicas.

As atividades relacionadas à preparação e à realização das guerras – desde a extração de minerais para a produção dos armamentos e equipamentos bélicos, até a alimentação de tropas e  os eventos durante os conflitos emitem gases de efeito estufa e contribuem para o aquecimento global e os desequilíbrios climáticos. A organização que mais consome energia no mundo é o exército dos Estados Unidos, que gasta US$ 11 bilhões por ano. "No campo de batalha, 70% da tonelagem logística é consumida por combustíveis", observa Thomas Morehouse, do Instituto de Análise de Defesa.(matéria divulgada na Folha de São Paulo em 4-4-2007).

Da mesma forma que as guerras, também o preparo bélico  requer exercícios com tiros, minas, mísseis e torpedos, que explodem, destroem vegetação e paisagens naturais, poluem o solo e as águas e deterioram o meio ambiente. Trata-se de atividades intrinsecamente destrutivas e cujo objetivo é a destruição, que inclui a devastação e a degradação do meio ambiente.

O belicismo está na raiz da pressão sobre os recursos naturais, transformados pelo complexo acadêmico-industrial-militar em artefatos bélicos de alto potencial destrutivo. Proliferam hoje guerras regionais, guerras civis nacionais, atos de terrorismo como forma extrema de questionamento do poder político organizado. O emprego da força e da violência tem, ainda, custos psicológicos e subjetivos, prejudicando o desenvolvimento do ser humano integral devido ao ódio, aos ressentimentos, ao revanchismo, às vinganças e mágoas que desencadeiam.

As sociedades que cultivam a cultura da paz e que evitam envolver-se na corrida armamentista e em conflitos bélicos evitam emissões significativas de gases de efeito estufa e dão uma expressiva contribuição para evitar o agravamento das mudanças climáticas. 

A eliminação das guerras como formas de resolução de conflitos seria uma forma de reduzir as pressões sobre o ambiente e os impactos negativos das mudanças climáticas, Trata-se de um tema sobre o qual existe muito pouca informação e discussão pública.

Assim, já é chegado o momento de que os princípios, métodos e instrumentos utilizados para mitigar ou neutralizar os impactos negativos das demais atividades humanas tenham sua aplicação estendida à atividade da guerra. Procedimentos como as avaliações de impacto ambiental e o licenciamento ambiental deveriam ser objeto de pactos internacionais obrigatórios, visando ao bem da humanidade, sempre que esteja em jogo a possibilidade de realizar-se uma ação bélica potencialmente degradadora ou poluidora do ambiente. Isso ajudaria a  desenvolver a consciência global a respeito das conseqüências desse tipo de ação, com a cuidadosa avaliação prévia dos seus impactos. O licenciamento ambiental das guerras deveria contemplar, entre outros, os impactos bióticos, antrópicos e físicos desses eventos. Somente depois de detalhada e cuidadosa avaliação de riscos, elas deveriam ser matéria de discussão nacional e internacional. A aplicação rigorosa dos procedimentos de avaliação prévia de impactos ambientais às atividades bélicas poderia levar, no limite, à sua inviabilização, seja pelo exorbitante aumento de seus custos, que incluiriam os necessários recursos para recuperar a degradação que viessem a causar, seja pela conseqüente ampliação do tempo para a busca de consenso em torno a sua necessidade e para seu eventual preparo. Nessa fase, inclusive, poderiam e deveriam ser colocadas em prática todas as maneiras e técnicas diplomáticas e de mediação e resolução não-violenta de conflitos, com vistas a evitar os embates bélicos.

Essas idéias contêm um conteúdo utópico, considerando-se o momento histórico presente. Mas merecem ser consideradas, posto que todas as guerras constituem um fator destrutivo para  o clima, para o ambiente e para o ser humano.

As guerras só serão abolidas quando se tornarem psicologicamente intoleráveis, da mesma forma como a escravidão somente foi abolida quando tornou-se socialmente intolerável, além de economicamente desejável, já que a libertação dos escravos traria impacto altamente positivo para o mercado consumidor. 

Nesse contexto, o risco de degradação climática das guerras poderá tornar-se um fator adicional que acabará por levar à sua abolição como forma de resolver conflitos, num estágio mais avançado de evolução da espécie humana.