segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Hidrodesign

O navegador Amir Klink navega solitário  pelos mares. No oceano de água salgada, cada gota é preciosa. Ele fala que, no projeto do barco, a torneira é acionada com o pé para não desperdiçar água.

Quando Brasília foi construída, nos anos 1960 e 1970, não havia preocupação com gastos e água  e energia. Nos apartamentos então construídos, havia aquecedor central e a água quente precisava fluir vários metros até chegar aos chuveiros. Para tomar um banho quente, era preciso deixar a torneira aberta durante vários minutos. Em prédios recentes, construídos no contexto  da crise energética, climática e hídrica, instalam-se aquecedores solares  que reduzem o consumo de energia elétrica e a torneira de água quente é ligada nessa tubulação. O consumo de água é reduzido.

Em situações de extrema escassez, cada gota vale ouro e soluções  engenhosas de design poupam a água valiosa. Em Israel e na Austrália  tais soluções são concebidas e aplicadas. Na Califórnia os cidadãos recebem incentivos econômicos do governo para substituírem torneiras e chuveiros que gastam muita água por outros que as economizam. Industrias são estimuladas a colocarem tais instalações no mercado e as normas e regulamentos induzem o seu uso.                  

Por outro lado, o hábito de ter à disposição a fartura de água não ajudou a criar uma cultura de economia. Em cidades coloniais antigas, como Ouro Preto, a água corria livre e gratuitamente em chafarizes públicos e muitas casas tinham bicas de água  corrente  gratuitas. Não havia torneiras ou registros de controle ou cobrança de tarifas pelo  uso.

A expressãodo berço ao túmulo"  designa o ciclo de vida dos produtos – objetos, edifícios ou cidades. Ela considera o ciclo da extração e exploração de recursos naturais, sua transformação, uso e descarte.  Entretanto,  esse ciclo é mais amplo e precisa incluir seu período pré-natal: antes de um bebê ir para o berço, há a concepção e meses de gestação. Objetos, casas ou cidades, também têm um período de concepção e projeto, antes que venham à luz.  Arquitetos, urbanistas, engenheiros, designers e todos aqueles que projetam objetos, edificações ou o ambiente construído têm papel crucial nessa fase pré-natal para encontrar soluções hidroeficientes e proporcionar economia de água. Os objetos são projetados e, antes de se materializarem, existem na mente e na imaginação de quem os projeta e concebe.

O  hidrodesign é uma estratégia proativa para reduzir o consumo excessivo e para reduzir perdas de água. É uma forma inteligente de proteger o meio ambiente, preventivamente, ao aproveitar ao máximo as águas, promover o uso de tecnologias limpas e processos de produção hidroeficientes. O hidrodesign leva em consideração os aspectos estéticos, funcionais, de segurança ou de ergonomia dos produtos, casas ou cidades, bem como a maneira com que cada um de seus componentes afeta a água. 
Por meio do desenho de produtos que leve em consideração todo o seu ciclo de vida, desde sua concepção, é possível conceber formas de reduzir o impacto sobre a natureza que fornece a água virtual que resultará naqueles produtos.  

Escolas e centros de pesquisa e inovação têm um papel relevante na formação  profissional. A importância do trabalho de arquitetos e designers nesse campo justifica que, nas universidades, sejam tratadas as questões da captação de água de chuva, de  como a água  se comporta no seu ciclo, quando escorre nas superfícies, se infiltra no solo, evapora e está presente na atmosfera.

Hidratar o design de produtos, de edifícios e de cidades é um modo responsável de atuar na sua concepção, podendo reduzir os impactos da atividade humana sobre as águas e tornar essa  relação mais amigável.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Qualidade da água e o tempo livre

 


A qualidade das águas no Brasil é alterada por atividades agrícolas, industriais, de mineração, de construção de infraestruturas, pela falta de saneamento. Tais usos prejudicam sua qualidade ao polui-la com dejetos industriais, de agrotóxicos, de mineração.

 Os usuários da água do  ecoturismo, lazer e recreação, cultura e cultos necessitam de boa qualidade da água. Do mesmo modo os pescadores amadores dependem de agua de boa qualidade e são potenciais aliados nos trabalhos pela proteção das águas. O esporte aquático é outra atividade que depende de água despoluída, como se observou durante as Olimpíadas.

A poluição das águas prejudica o esporte, o lazer, a pesca recreativa, a celebração de cultos religiosos e o turismo. Muitas das atividades que se realizam no tempo livre dependem da água de boa qualidade. A água para a recreação de contato primário e para a balneabilidade precisa ter boa qualidade, para evitar epidemias e doenças.

Conflitos entre usos ocorrem quando populações locais pretendem proteger rios e cachoeiras como patrimônio natural para usufruto local e são confrontadas pelos interesses de investidores e de empreendimentos de geração de energia elétrica, como ocorreu na Cachoeira em Salto da Divisa em Minas Gerais.

Atualmente cresce a importância econômica dos  setores ligados às atividades do tempo livre – esportes, lazer, recreação, turismo, culto religioso. O fortalecimento desses aliados pode facilitar o alcance de resultados positivos na qualidade das águas.

 Os empreendedores ligados ao turismo, esporte, lazere recreação,  são potenciais aliados da luta pela boa qualidade das águas. Precisam mapear, identificar e proteger como patrimônio cultural  e natural inúmeras localidades que tem tal potencial e evitar que sejam  perdidas ou inundadas.

Água e turismo


A qualidade ambiental e das águas é um requisito fundamental para o desenvolvimento do turismo, porque as pessoas gostam de viajar, ter prazer e bem estar, usufruindo belas paisagens, ar puro, ambiente saudável e bem saneado. Lagos, cachoeiras, praias são locais de potencial turístico que precisam de boa qualidade das águas.

Garantir boa qualidade de saneamento é crucial para o sucesso de empreendimentos de turismo rural, esportivo, equestre e outros. Investir em saneamento básico e na despoluição dos cursos d'água ajuda a atrair turistas. O turismo pode ajudar a conservar os ecossistemas e a proteger a qualidade

No Brasil, entre as localidades com atividades turísticas ou com potencial turístico que têm as águas como atrativo destacam-se as cataratas do Iguaçu, os rios na região Amazônica, o encontro das águas em Manaus, cavernas calcárias, Bonito no Mato Grosso do Sul, o Pantanal, praias fluviais no rio Tocantins e em Alter do Chão, cachoeiras e lagos ou a costa oeste do Paraná no reservatório de Itaipu, as orlas de reservatórios de água como o de Furnas.

O principal motivo de insatisfação dos turistas no Brasil é a sujeira causada pelo lixo e pela falta de saneamento nos locais visitados. das águas, ao comprometer-se com o entorno que o viabiliza.  O turista internacional evita lugares sujos, poluídos, sem higiene e isso causa prejuízos econômicos vultosos. Esse foi um grande motivador para cidades que são destinos turísticos resolverem sua coleta e disposição final de lixo, o tratamento de esgotos e investirem para promover a beleza e a limpeza.

O potencial cênico ou paisagístico de uma área é de grande valor turístico. No passado, alguns locais de beleza cênica e paisagística foram sacrificados em nome do  chamado desenvolvimento e progresso, da geração de energia elétrica. Os saltos de Guaira ou Sete Quedas, por exemplo, foram inundados pelo reservatório de Itaipu. Naquela ocasião a geração de energia elétrica prevaleceu sobre a preservação do patrimônio cênico natural.

Preservar a qualidade das águas e sua disponibilidade é essencial para sustentar essas atrações.

 Por outro lado, o turismo também provoca impactos ambientais negativos, com a poluição das águas por esgotos, despejos de embarcações etc.  Saber a capacidade de suporte do ambiente e a carga máxima de visitantes que  se pode receber sem ser prejudicado é essencial para que as paisagens sejam protegidas. A cidade de Bonito tem política de turismo que considera o limite da capacidade do ambiente.

Os empreendedores ligados ao turismo são potenciais aliados da luta pela boa qualidade das águas. Precisam mapear, identificar e proteger como patrimônio cultural inúmeras localidades que tem tal potencial e evitar que sejam  perdidos ou inundados.

domingo, 18 de setembro de 2022

Hidromimética



A biomimética  é um campo da ciência, criado por Janine Benyus, que  se propõe a observar a dinâmica da natureza e daí extrair conhecimentos. Ela estuda as estruturas e funções biológicas e procura aprender com as estratégias e Soluções baseadas na Água (SbA). Aplica esses conhecimentos em diversos campos da atividade humana, como o design, a arquitetura, o urbanismo, o paisagismo, o planejamento territorial e do uso do solo etc.

A hidromimética é a área da ciência que estuda os comportamentos e a dinâmica da água visando aplicá-los em soluções para os problemas, com funcionalidade, estética e sustentabilidade. Observa-se a água e se reproduzem movimentos similares aos encontrados nos sistemas hídricos. A hidromimética se propõe a conhecer como ela se comporta e extrair daí conhecimentos para imitar esse comportamento na ação humana.

Observa-se como ela se comporta e usa o que  se aprende como inspiração para solucionar problemas. Ela se mistura,  uma gota se funde no oceano. Persiste, absorve, ladeia, redemoinha, move-se em ondas, círculos e espirais. São qualidades dela a limpeza, a pureza, a dinâmica, a  adaptabilidade à forma, a agitação e diluição, a formação de vórtices ou espirais.

 Ela se desvia de obstáculos, contorna dificuldades. Ela se acelera em corredeiras e cachoeiras, fica parada em remansos, tem ritmos variados. Se perpetua no tempo,  perpassa. Chove, infiltra, condensa, solidifica, sublima, ferve. Serve como suporte para outros elementos, absorve impurezas e outras substâncias e as transporta consigo; limpa, purifica. Transmuta de um estado físico para outro. Condensa, evapora, congela, regenera, mata a sede, molha. Penetra em ambientes permeáveis e porosos. Hidrata, não tem ego, sua forma adapta-se ao recipiente que a recebe, no qual se  dissolve e perde a sua identidade. Ela oferece ambiente para a vida aquática. Ela dá lições de ser maleável.  Ela insiste e não desiste, é paciente e perseverante: água mole em pedra dura tanto bate até que fura.

Ela reage ao calor e ao frio, se expande e se contrai. Apresenta diferenças de comportamento e anomalias em suas propriedades físicas e químicas. Por exemplo, o gelo flutua. Em estado sólido ela é mais leve do que no estado liquido, o que permite a existência de vida sob o gelo superficial.  

A água é um meio em que flui informação. A homeopatia é um dos campos que trabalha com diluições e dinamizações em ambiente aquoso de elementos que podem curar. Os seus poderes solventes e dissolventes e suas propriedades moleculares a tornam apta a receber e transmitir informação.

Ela se polui ao absorver elementos do ambiente. Ela se purifica.  Ela reage à informação do ambiente e não apenas aos elementos químicos.  O japonês Masaru Emoto fez fotos de cristais de neve e associou sua forma mais ou menos harmônica com as vibrações sutis do ambiente em que se encontrava, como se ela tivesse memória. Ela é um mistério ainda desconhecido (ver Philip Ball, Water – an enduring mystery)

Ela flui no espaço, em seu ciclo e dinâmica. Ela também flui no tempo: as que estão em meu corpo hoje já perpassaram muitos outros corpos e já estiveram no ar e nos oceanos.

A hidromimética busca identificar padrões funcionais e eficientes, utilizáveis na arquitetura, engenharia, design e em soluções tecnológicas.  Estudos hidromiméticos são multi e transdisciplinares e  envolvem a química, a física, a informática, a matemática, a hidrologia, a ecologia das paisagens  além de fazerem uso de conhecimentos das artes, filosofias e tradições.

Com ela se aprende a hidro ação e suas qualidades: despersonalizar, desidentificar, desfulanizar,  liquefazer a autoria, fundir a gota no oceano. Aprender como ela supera obstáculos, suas qualidades e características, pode trazer  inspiração para a ação humana.[1]   Ailton Krenak, no livro futuro Ancestral diz: “Sejamos água, em matéria e espírito, em nossa movência e capacidade de mudar de rumo, ou estaremos perdidos.”



[1] SCHWENK, Theodor – Sensitive Chaos – The creation of flowing forms in Water & air, Shocken Books, 1976. Rudolf Steiner Press, London. 1976.

 

[2] Este é o título de um livro eletrônico  publicado em 2020 na Amazon, https://www.amazon.com.br/Maur%C3%ADcio-Aparecida-Maria-Helena-Andr%C3%A9s-ebook/dp/B0864PKN3B voltado para o público infanto-juvenil, uma faixa etária da população para a qual será valioso ter uma visão holística e integral sobre a água.

Todos os rios são especiais


Num planeta sem os seres humanos todas as águas estavam em seu estado natural. Algumas tinham altos teores de minerais diluídos ou dissolvidos, em função de sua origem e dos terrenos que atravessavam.

No Brasil pré-cabralino a população humana era pequena e não causava maiores danos aos rios. “Águas são muitas, infindas”, escreveu Pero Vaz de Caminha. Águas eram muitas, tinham qualidade especial e eram de primeira classe. Entretanto, como se verifica 500 anos depois da Carta de Caminha, não são infindas.

Ao serem poluídos e contaminados com os resíduos e efluentes das atividades humanas, muitos rios e águas subterrâneas perderam essa condição especial.

Restaurar a qualidade original pode ser o objetivo de um pacto pelas águas, com a meta de alcançar com que todos os ribeirões, rios e lagos, voltem a seu estado natural. Talvez essa meta seja utópica, mas não faz mal colocá-la como um ideal a ser buscado no horizonte.

Cada uso da água tem certas exigências de qualidade: a água destinada ao consumo humano sem tratamento deve ser pura o suficiente para não provocar doenças e ter uma classe especial. Já as águas destinadas para o esgotamento de resíduos, por exemplo, não precisam ter boa qualidade.

O sistema de classificação de corpos d’água definido na resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente n.357 de 2005 as classifica segundo a qualidade requerida para seus usos preponderantes.

Rios ou trechos de rios podem ser enquadrados como de classe especial, de primeira, segunda, terceira e quarta classes. Essa classificação é semelhante àquela que classifica os hotéis com estrelas: seis ou cinco estrelas, quatro, três, duas ou uma estrela, em função de seu padrão de qualidade. Em geral os hotéis de cinco estrelas são mais caros do que aqueles com menor classificação.

Do mesmo modo, para se alcançar a meta dos rios serem de primeira classe ou classe especial, podem ser necessários investimentos em saneamento e despoluição.   Nos casos em que esses rios já se encontram naturalmente na condição especial, basta o controle ambiental, evitando que se localizem nas suas bacias hidrográficas atividades que poluam as águas superficiais ou subterrâneas. O licenciamento ambiental e a outorga de direito de uso das águas são dois instrumentos valiosos para tal controle.

Ao se tomar cuidados preventivos para que eles não sejam poluídos, evita-se que no futuro seja necessário investir em obras para limpá-los. Prevenir para que não sejam sujos é uma medida com alto valor econômico, pois protege esse patrimônio valioso e evita gastos com despoluição.

Um passo no rumo de que os rios voltem a ser especiais é alterar a norma ambiental concebida e aprovada no passado, quando ainda não se colocavam com clareza as questões de segurança hídrica, a crise hídrica e as mudanças no clima que a agravam. Essa norma considera como de segunda classe as águas doces que não tenham sido enquadradas, ou seja, que não tenham um objetivo de qualidade a ser alcançado através de metas progressivas aprovado por um conselho de recursos hídricos. Uma consequência dessa norma ainda vigente, tal como foi então concebida, é que mesmo aqueles corpos d’água que hoje apresentem uma qualidade especial ou sejam de primeira classe estão vulneráveis a serem poluídos por atividades que venham a ser instaladas em suas bacias hidrográficas.  A boa qualidade de suas águas não é valorizada como um patrimônio a ser protegido.

Mudar esse dispositivo, considerando que os rios não enquadrados deixem de ser de segunda classe e sejam valorizados como rios de primeira classe é uma medida que pode contribuir para protegê-los, pois os licenciamentos ambientais, as outorgas de direito de uso das águas e outras ações de gestão precisam levar em consideração as metas de qualidade.

Combinada com recursos para promover a sua restauração e a recomposição ambiental em suas bacias, essa pode ser uma medida valiosa para proteger a qualidade das águas e para reduzir os custos para tratar a água que se usa para abastecimento humano e urbano.

No contexto das crises hídricas que tendem a se tornar cada vez mais severas à medida que as mudanças no clima avancem, é vital proteger cada gota d’água de boa qualidade. Esse é um patrimônio que merece ser valorizado. Enquadrá-lo como de primeira classe é um pequeno, mas importante passo para protegê-lo, preventivamente. Medidas como essa  podem contribuir para que, um dia, todos os rios voltem a ser especiais.

 

 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Água virtual




Todo produto da atividade humana tem um ciclo de vida. Um alimento é plantado na terra, irrigado, colhido, transportado, processado, comercializado, cozinhado, consumido e seus restos são descartados. Um bem mineral é extraído da natureza, transportado, transformado industrialmente, comercializado, comprado, consumido e depois descartado ou reciclado. Em cada etapa desse ciclo, do berço ao túmulo, da produção ao consumo e ao descarte, usa-se água. Ela não está necessariamente contida no produto final, mas foi usada nas várias fases do processo de produção. 

A água virtual se refere à quantidade de água utilizada durante as várias fases do ciclo de vida de um produto.

Países produtores e exportadores de mercadorias primárias, como a soja, a carne, o açúcar e o ferro, usam muita água no processo de produção. Há nisso um custo de oportunidade, pois essa mesma água poderia ser usada de modo a beneficiar internamente a população.

“Todos os produtos brasileiros que são exportados, sobretudo os produtos agrícolas, demandam um volume de água para serem produzidos e essa água é "exportada" juntamente com estes produtos (soja, carne ou cana-de-açúcar) sem que seja contabilizada.” [1]

A agricultura é uma das atividades humanas que mais consome água. Países com pouca disponibilidade hídrica precisam importar alimentos e outros produtos de países que tenham grande disponibilidade de água.  

No Brasil, a exportação de commodities para gerar dívidas internacionais e abastecer outros países, induz a se implantar a pecuária bovina ou a plantar soja. A demanda alimentar por carne e soja para alimentar animais pressiona pela devastação da Amazônia. Essa devastação enfraquece os rios voadores, reduz os volumes de chuvas no centro-oeste e sudeste brasileiros e prejudica a agricultura nessas regiões. Os custos ambientais se avolumam ao se abastecer populações com alimentos que demandam muita água para serem produzidos (carne bovina por exemplo). O  Brasil é competitivo porque exporta soja sem cobrar por água e biodiversidade perdidas, diz cientista - BBC News Brasil

O Brasil tem um rebanho de 200 milhões de cabeças de gado e exporta carne para 150 países. Isso é apresentado na mídia como um grande feito. Mas numa perspectiva e visão crítica, pode significar o inverso: estamos cevando no mundo e facilitando hábitos alimentares carnivoristas, na contramão do que seria um hábito alimentar com menores impactos para o meio ambiente, para o clima e para a água.  O veganismo e o vegetarianismo são hábitos alimentares menos consumidores de água, energia e terra.

A água virtual contida num produto pode ser reduzida quando se adotam tecnologias hidroeficientes, que permitem produzir mais com menos água. Também pode ser reduzida por meio de mudanças nos hábitos de consumo, substituindo-se produtos muito sedentos por outros que precisam de menos água para serem produzidos.  

No comércio internacional esse tema está presente. O Conselho Mundial da Água e o Instituto para a Educação da Água da Unesco, recomendam que a” água virtual tem de ser uma opção de política, ou seja, pode aliviar a pressão sobre países com pouca oferta de recursos hídricos, mas deve vir acompanhada de uma política de conscientização para o uso de produtos que demandem uma quantidade de água menor.”

 David Pimentel[2] é um autor que estuda e propõe modos de reduzir a demanda de água: “A questão central, defendida por Pimentel (2004), é que o volume de água gasto em alguns produtos é muito elevado, e que haveria possibilidades de diminuição significativa da demanda de água a partir de modificações na dieta alimentar de várias populações. “ “Pimentel (2004) afirma a necessidade de que se reestruture o cardápio, de maneira que ele seja mais "sustentável", privilegiando os produtos que exigem menos água para sua produção. Assim, um prato com batata e frango, por exemplo, exige muito menos água para sua obtenção do que um prato com arroz e bife bovino.” Produzir soja para alimentar animais que por sua vez alimentam os humanos não é hidricamente eficiente e tampouco é eficiente na perspectiva da ecologia energética.

Caso o comércio internacional contabilizasse integralmente os custos, contribuiria para reduzir o desmatamento na Amazônia e suas consequências negativas para o restante do Brasil.

O hidronegócio domina na área de produção de alimentos, na mineração e na economia das commodities. É preciso fazer uma contabilidade integral, incluir os custos não contabilizados do uso e exaustão do patrimônio hídrico e encontrar modos de redirecionar a demanda para privilegiar o consumo de bens pouco intensivos em água. A água virtual é um conceito relevante para acertar essa contabilidade integral.

 

 



[1] Citado em Carmo, Roberto Luiz; Andréa Leda Ramos de Oliveira Ojima; Ricardo Ojima; Thais Tartalha do Nascimento - Água virtual, escassez e gestão: o Brasil como grande "exportador" de água. Artigo • Ambient. soc. 10 (2) • dez 2007 • https://doi.org/10.1590/S1414-753X2007000200006 

 

[2] Citado em Carmo, Roberto Luiz; Andréa Leda Ramos de Oliveira Ojima; Ricardo Ojima; Thais Tartalha do Nascimento - Água virtual, escassez e gestão: o Brasil como grande "exportador" de água. Artigo • Ambient. soc. 10 (2) • dez 2007 • https://doi.org/10.1590/S1414-753X2007000200006 

 

Gestão transfronteiriça das águas na América do Sul

Numerosos corpos hídricos na América do Sul fazem fronteiras entre países ou nascem num país e passam para outro. O Brasil tem pelo menos 83 rios e 11 aquíferos transfronteiriços.

Na bacia Amazônica (figura 1) o Brasil recebe águas de países situados a montante, como a Bolívia, a Guiana Francesa, a Guiana, a Venezuela, a Colômbia e o Peru. Na bacia do Paraná-Paraguai-Prata (figura 2), águas brasileiras fluem para países situados a jusante, como  a Bolívia, o Paraguai, a Argentina e o Uruguai.

Figura 1 – Rios fronteiriços e transfronteiriços na Bacia Amazônica.  Figura 2- Rios Fronteiriços e transfronteiriços na Bacia do Paraná - Paraguai- - Prata.    Fonte: Guimarães, ANA, 2013.

Reservas  subterrâneas de água são compartilhadas entre os vários paíes.  Elas não respeitam fronteiras politicas nacionais. Os aquíferos subterrâneos têm fluxos em várias direções, cujo conhecimento ainda depende de estudos mais detalhados.

Na falta de cooperação e diálogo sobre as águas, ocorrem conflitos entre os países. Na América Sul, ficou conhecido o conflito sobre as papeleiras no rio Uruguai, que colocaram em campos opostos o Uruguai e a Argentina. Esse conflito foi resolvido pela Corte Internacional de Justiça em Haia mas deixou sequelas.

Melhor do que reagir a um conflito depois que ele ocorreu é agir preventivamente para que os problemas não surjam. Apesar de existirem acordos de cooperação técnica assinados pelo Brasil com todos os países fronteiriços, alguns ainda não saíram do papel ou contam com pouca participação nos processos de implementação.

Encontrar formas de atuar preventivamente para evitar conflitos pela água em rios transfronteiriços contribui para manter pacíficas as relações entre países.

O monitoramento hidrológico conjunto é uma forma de cooperação entre países, compartilhando dados e informações sobre a quantidade e qualidade das águas. Programas de capacitação e de cooperação técnica e científica para o planejamento de redes de medição de dados de chuva e vazão de rios; criação de bancos de dados compartilhados; estudos de sedimentometria, qualidade de água, medições hidrológicas, são valiosos para criar uma base de entendimento comum.

A cooperação internacional baseada na solidariedade entre vizinhos, sem ingerência em assuntos internos, sem condicionalidades, faz decrescer as tensões sociais e políticas e colabora para a segurança coletiva.

Regulações, normas e procedimentos comuns pactuados para monitorar as águas e para manter a sua qualidade reduzem os riscos de conflitos entre países.

Nesse contexto é inspiradora a experiência europeia que criou uma regulamentação comum para seus 27 países, expressa na Diretiva Quadro das águas.

A gestão integrada dos recursos hídricos e colaborativa entre os países poderá, um dia, apoiar-se em uma ainda inexistente, virtual e potencial  Diretiva-Quadro das Águas para a América do Sul.

 



[1] Agradeço a Luiz Amore por colaborações em versão  preliminar deste texto.

A regulamentação europeia para as águas


A União Europeia estruturou uma gestão das águas integrada que serve como modelo para uma federação como a brasileira.

Muitos dos rios europeus nascem num país, atravessam outros países e desembocam em outros ainda, a exemplo do Reno, que nasce nas Suíça, atravessa a Alemanha e tem sua foz na Holanda. Assim, uma adequada gestão das águas, que evite acidentes ou sua poluição é fundamental como elemento de prevenção de conflitos entre países.

Atualmente com 27 países e ciente da importância de agir preventivamente para evitar conflitos, a União Europeia criou uma regulamentação comum para as águas. 

Nas décadas de 70 e 80 havia normas, porém fragmentadas, tratando de temas específicos como água para abastecimento ou padrões de qualidade das águas adequados para a saúde humana. O processo começou por demanda social. A sociedade europeia identificava a poluição da água como o maior problema ambiental. Era importante que os governos dos países agissem. A pressão popular instigou a Comissão Europeia a formular uma política conjunta na área da água.

Em 1996 uma grande conferência com a participação de governos, organizações da sociedade e empresas chegou a um consenso sobre a necessidade de uma abordagem integrada e unificada. Quatro anos depois, isso se materializou na diretiva quadro das águas da União Europeia, uma lei aprovada no parlamento europeu e no conselho europeu. Essa lei tem 26 artigos e 11 anexos e trata de águas superficiais, subterrâneas, costeiras, de aspectos ambientais e de qualidade da água. O acesso a recursos financeiros da comunidade europeia é condicionado a seu cumprimento.

A Diretiva Quadro das águas leva os países a uma prática articulada para a gestão da água, pactuando objetivos comuns ao longo do tempo, com metas precisas.

Na criação da diretiva para as águas havia motivações econômicas para que, na competição, os estados mantivessem uma mesma política ambiental e a internalizassem nas suas atividades produtivas. Dessa forma, eventuais diferenças normativas não resultariam em desvantagens competitivas de um país em relação a outro.

A Diretiva-Quadro Europeia assinada em 2000 racionaliza a legislação sobre as águas e tem normas para medição, triagem, intercâmbio de informação, sobre o tratamento de substâncias perigosas; define normas para rios e lagos, determina padrões físicos e químicos de qualidade da água, estabelece metas a serem cumpridas.

Foi definido um cronograma de implementação da diretiva, que começa com a definição de distritos hidrográficos e quem é competente para geri-los, e segue com varias atividades ao longo de vários anos.

A Diretiva-Quadro definiu como objetivo atingir o bom estado ecológico das águas.  Na União Europeia, o primeiro considerando da norma que estabelece um quadro de ação comunitária no domínio da política da água diz que “A água não é um produto comercial como outro qualquer, mas um patrimônio que deve ser protegido, defendido e tratado como tal. ” A diretiva europeia para as águas também põe ênfase na abordagem ecológica e na proteção das aguas. Patrimônio hídrico, proteção dos ecossistemas aquáticos, abordagem ecológica, âmbito de aplicação abrangente são algumas das características das leis das águas europeias.

A diretiva quadro se aplica em todos os países da Europa, sendo as metas internalizadas na legislação de cada país. Conferências bianuais propiciam o intercâmbio de visões e experiências. Planos de bacia são elaborados e revisados de 6 em 6 anos e isso permite um acompanhamento e monitoramento dos avanços alcançados.

São parte do processo de implementação da diretiva os prazos que foram definidos para os estados-membros cumprirem os compromissos assumidos. Cada país precisa relatar os problemas na implementação e há multas impostas àqueles que não logram cumpri-las.

A diretiva quadro europeia para as águas é um exercício inspirador para  países federativos, como o Brasil, que precisa harmonizar as relações entre o domínio das águas federal e o domínio dos estados.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Reúso da água



A  sustentabilidade se colocou como uma meta a partir do final do século XX.   Adotaram-se a partir de então  os 5 Rs: repensar, recusar, reduzir, reutilizar e reciclar. Esses 5Rs se aplicaram no campo  das águas e um deles se traduziu nas tecnologias de reúso das águas.

O reúso é a reutilização de uma água que já serviu para outras finalidades, depois de devidamente tratada. O reuso reduz descarga de poluentes racionaliza  e conserva recursos hídricos para o abastecimento público. O reuso possibilita economizar água e cortar custos para empresas  e companhias de saneamento. Reduz a retirada de água da natureza para os processos industriais.

No Brasil, desde o início do século XXI  desenvolveram-se estudos. Um deles tratava sobre um Programa de reúso agrícola de efluentes tratados no Semiárido Brasileiro”.  Estudou-se a eficiência de uso de Água em Edifício Residencial e em edificações públicas, em municípios de pequeno porte. Este edital e o anterior, em conjunto, foram a iniciativa inicial da ANA com vistas ao desenvolvimento de um Programa de Reúso de Água. No Ceará criou-se um Centro de Treinamento, Demonstração e Desenvolvimento em Reúso Agrícola de Água . Estudou-se no Rio Grande do Sul a criação de  Estação de Tratamento do Lodo do Esgoto Doméstico e reúso de água na produção de mudas para reflorestamento. Em 2018 foi proposta uma Política de Reúso de Efluente Sanitário Tratado no Brasil. No Conselho Nacional de Recursos Hídricos  a resolução 54 de 2005 estabeleceu regras para o reúso direto não potável de água.

Em 11 de setembro de 2022 o programa Cidades&Soluções, do jornalista André Trigueiro, apresentou vários exemplos de reúso de água. Numa escola no Rio Grande do Norte implantaram-se sistemas para o tratamento de água usada e seu aproveitamento em irrigação em quintais. Numa lavanderia  de tapetes em São Paulo separam-se os poluentes e ela é novamente utilizada, proporcionando economia de água tratada.  No AquaPolo, empreendimento dedicado exclusivamente ao reuso, recebem-se as águas de esgoto, que são tratadas e depois fornecidas a industrias com a qualidade adequada para seus processos industriais.  Numa fazenda em São Paulo, o esterco do curral é lavado e reaproveitado nas plantações. Uma fábrica de pneus, grande consumidora de água, passou a usar água de reuso, mais confiável em seu fornecimento do que o uso de água de poços, que pode um dia faltar e  é  mais econômica do que a água fornecida pela concessionária. Naquele programa, ressaltou-se que muitas cidades, sem saber, estão sendo abastecidas com águas de reuso, pois usam como mananciais rios poluídos pelos esgotos de cidades situadas rio acima na mesma bacia hidrográfica  e cujas águas precisam ser tratadas e tornadas águas potáveis.

Em 2022  um grupo de trabalho sobre reuso no CNRH,  se debruça sobre a produção de uma norma nacional que regule o tema. Normas claras podem evitar a contaminação de solos com poluentes, o descarte inadequado do lodo de esgoto ou dos resíduos que decantam depois do tratamento da água. Os órgãos ambientais precisam  definir padrões de qualidade ambiental associados à água de reúso para produção agrícola e cultivo de florestas plantadas, de modo a evitar a contaminação de solos.

A Estratégia Global para a Administração da Qualidade das Águas, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e da Organização Mundial da Saúde propõe o reuso  planejado da água e define que, a não ser que haja grande disponibilidade, nenhuma água de boa qualidade deverá ser utilizada em atividades que tolerem águas de qualidade inferior. Essa diretriz internacional ajuda a impulsionar os programas de reúso da água.

 


quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Renaturalização de fundos de vales

 


Cada curso d’agua tem seu leito normal e seu leito de inundação, que corresponde à faixa inundável quando vêm as chuvas mais fortes. No afã de aproveitar ao máximo os terrenos, durante muitos anos adotou-se a prática de drenar os fundos de vales e construir avenidas sanitárias ao longo deles. Não satisfeitos em eliminar as faixas de inundação os administradores urbanos, como  o auxílio técnico de engenheiros e urbanistas, cobriram com asfalto e concreto os próprios córregos, riachos e ribeirões. Eles foram literalmente encaixotados. Essa abordagem, tinha, aos olhos de quem a praticava, a vantagem de tirar da vista e do convívio dos cidadãos os lugares úmidos, propícios a criação de mosquitos e ao despejo de todo tipo de resíduos. A avenida sanitária liberava terrenos para uso, ocupação e especulação imobiliária; eliminava áreas insalubres e propiciava novas pista de rolamento para veículos, nas cidades dominadas pelos automóveis.

 Este tipo de solução cobra seu preço. Anos depois,  a impermeabilização das bacias hidrográficas ocupadas por construções, asfalto e cimento, faz com que aumentem os volumes de água que escorrem nas enxurradas e nas chuvas mais fortes. Os caixotes que contêm os córregos não comportam a vazão de água aumentada e eles literalmente estouram, extravasando as águas ali comprimidas e quebrando o concreto e o asfalto. Fatos como esses tornaram-se comuns em várias cidades, provocando prejuízos econômicos e mortes.

Essa concepção de engenharia e de urbanização passou a ser contestada em muitas cidades em todo o mundo e surgiu a tendência de renaturalizar os fundos de vales, devolvendo essas faixas a seu estado natural, retirar concreto e asfalto e criar parques lineares destinados ao lazer, à recreação e aos esportes.

Esse padrão urbanístico foi utilizado em algumas cidades, antes que os vales fossem ocupados. No Brasil, Curitiba, com seu urbanismo ecologicamente amigável, foi pioneira na criação de parques lineares nos fundos de vales.  Em países de urbanização mais antiga e com alta densidade de população e ocupacional, como o Japão, também se pratica esse urbanismo que preserva os fundos de vales. As faixas verdes amortecem as cheias, abrigam temporariamente os grandes volumes de água, são inundadas. Quando as águas se vão, reaparecem os parques de lazer, esportes e recreação. Sem mortes, sem prejuízos econômicos, respeitam-se as faixas marginais dos rios e seus leitos de inundação. As águas agradecem, a cidade também.

Faixas de inundação  são deixadas sem ocupação ao longo de vários rios. Florença tem essas áreas ao longo do rio Arno. São João del Rey tem faixas verdes no córrego do Lenheiro.

São João del Rey

Para isso acontecer é necessária uma mudança de mentalidade e de padrão de engenharia urbana. Administradores hidroconscientes implantam essas concepções. Engenheiros, urbanistas e arquitetos hidroconscientes  concebem os projetos de renaturalização e os modos de colocá-los em prática.  Empreiteiras acostumadas a propor obras caras e ineficientes  e a drenar recursos públicos para tais soluções perdem espaços para empresas que propõem e constroem  soluções hidroconscientes. Os cidadãos cansados dos desastres causados pelas chuvas nas cidades aprendem que esse é um padrão adequado e cobram dos governos para que seja aplicado. Com mudanças como estas, constroem-se as cidades  sensíveis à água.