quarta-feira, 21 de maio de 2025

AS VEIAS ABERTAS DO BRASIL E A ÁGUA VIRTUAL

 

O escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu o livro As veias abertas da América Latina. Nesse livro ele descreveu como as riquezas do continente foram historicamente sugadas para outras regiões do planeta, durante e depois da colonização. De certo modo, essa drenagem de riquezas continua com as atuais relações comerciais internacionais. Uma das riquezas envolvida nessas relações é a água.  Ela flui pelas veias abertas da rede hidrográfica e pelas águas subterrâneas.



figura: A rede hidrográfica da América do sul.

Usa-se água em cada etapa do ciclo de vida de todo produto da atividade humana., da produção ao consumo e ao descarte. A maior parte das atividades humanas é hidro dependente. Ela não está necessariamente contida no produto final, mas foi utilizada durante as várias fases do ciclo de vida de um produto. A água virtual é a quantidade de água necessária para se produzir uma unidade de um produto, seja um alimento, um veículo, uma casa. É o consumo da água para produzir cada bem ou serviço, embutida em grãos, carnes, minerais.

Há países que são importadores da água virtual, embutida nos produtos que importam e que foi usada nos países exportadores.  Muitos países que têm escassez ou estresse hídrico importam produtos que demandam grande quantidade de água para serem produzidos, de países que têm maior disponibilidade hídrica. De certa forma, eles sugam a água existente nos países produtores e a subtraem de outros usos possíveis. O pequeno filme Where is water mostra as interconexões globais que existem entre os hábitos  Juntamente com cada produto, soja, carne ou minério ou produtos industriais, está embutida naquele produto toda a água que foi usada nas várias etapas de seu processo de produção, transporte e comercialização. de consumo e a demanda.

A agricultura é uma das atividades humanas que mais a consome. Países com pouca disponibilidade hídrica precisam importar alimentos de países que tenham grande disponibilidade de água.  

 “Todos os produtos brasileiros que são exportados, sobretudo os produtos agrícolas, demandam um volume de água para serem produzidos e essa água é "exportada" juntamente com estes produtos (soja, carne ou cana-de-açúcar) sem que seja contabilizada.” O  Brasil é competitivo porque exporta soja sem cobrar por água e biodiversidade perdidas, diz cientista - BBC News Brasil

 


O mapa de importações hídricas mostra os fluxos de água virtual entre as regiões. Fonte: Wikipedia

Países produtores e exportadores de produtos agrícolas, pecuários, minerais, como o Brasil, usam muita água no processo de produção dessas mercadorias primárias, como a soja, a carne, o açúcar e o ferro.   O Brasil assumiu protagonismo na exportação de carne, frangos, soja e outros produtos agropecuários.  O Brasil tem um rebanho de mais de 200 milhões de cabeças de gado e exporta carne para 150 países. Isso é apresentado na mídia como um grande feito. Mas numa perspectiva e visão crítica, pode significar o inverso: que estamos facilitando hábitos alimentares carnivoristas, na contramão do que seria um hábito alimentar com menores impactos climáticos e ambientais.  O veganismo e o vegetarianismo, praticados milenarmente na civilização indiana,  são hábitos alimentares menos consumidores de água, energia e terra.

As relações de trocas internacionais têm consequências regionais e locais  sobre o meio ambiente e sobre as águas. No Brasil, a exportação de commodities para gerar divisas internacionais e abastecer as indústrias em outros países pressiona para se implantar a pecuária bovina ou para plantar soja. Os custos ambientais e climáticos se avolumam ao se gerar divisas para alguns e abastecer populações com alimentos que demandam muita água para serem produzidos (carne bovina por exemplo). A demanda alimentar por carne e soja para alimentar animais pressiona a devastação da Amazônia. Essa devastação enfraquece os rios voadores, reduz os volumes de chuvas no centro-oeste e sudeste brasileiros e num efeito bumerangue prejudica a agricultura nessas regiões.

O Brasil é exportador virtual de água. Exaure reservas, sem contabilização integral e provoca custos, chamados pelos economistas de externalidades ambientais negativas. Para atender demandas do mercado externo (China, Europa) e interno (grandes metrópoles) no imediato e no curto prazo, pode agravar problemas de desertificação, aridificação no centro-oeste e no sudeste. O cientista Antonio Nobre pergunta até quando essas regiões estarão livres de se tornarem desertos, com ao avanço no desmatamento na Amazônia.

Um redirecionamento do comércio internacional e uma repactuação internacional, contabilizando integralmente os custos, contribuiria para reduzir o desmatamento na Amazônia e suas consequências negativas para o restante do Brasil.  O Conselho Mundial da Água e o Instituto para a Educação da Água da Unesco, recomendam que a” água virtual tem de ser uma opção de política, ou seja, pode aliviar a pressão sobre países com pouca oferta de recursos hídricos, mas deve vir acompanhada de uma política de conscientização para o uso de produtos que demandem uma quantidade de água menor.” A água poderia ser usada de modo que beneficie a população e proteja os ecossistemas e biomas.

A água virtual contida em um produto pode ser reduzida quando se adotam tecnologias hidroeficientes. Também pode ser reduzida por meio de mudanças nos hábitos de consumo, substituindo-se a demanda por produtos muito sedentos por outros que precisam de menos água para serem produzidos.

 David Pimentel[1] é um autor que há muito estuda e propõe modos de reduzir a demanda de água: “A questão central, defendida por Pimentel (2004), é que o volume de água gasto em alguns produtos é muito elevado, e que haveria possibilidades de diminuição significativa da demanda de água a partir de modificações na dieta alimentar de várias populações. “Pimentel (2004) afirma a necessidade de que se reestruture o cardápio, de maneira que ele seja mais "sustentável", privilegiando os produtos que exigem menos água para sua produção. Assim, um prato com batata e frango, por exemplo, exige muito menos água para sua obtenção do que um prato com arroz e bife bovino.” Produzir soja para alimentar animais que por sua vez alimentam os humanos não é hidricamente eficiente e tampouco é eficiente na perspectiva da ecologia energética.

O hidronegócio – atividades que utilizam grandes quantidades de água para realizar suas operações - domina na área de produção de alimentos, na mineração e na economia das commodities sem que se faça a contabilidade integral de seus custos e benefícios.  O hidronegócio conta com fortes aliados na mídia, por ser um rico anunciante, e com fortes lobbies políticos que aprovam leis em seu benefício.

Caso venha a se fazer uma contabilidade integral, e a incluir os custos não contabilizados do uso e exaustão do patrimônio hídrico, pode-se ter uma melhor noção sobre quem se beneficia com o uso da água e quem é prejudicado. A partir daí, pode-se propor modos mais justos e ecologicamente amigáveis de redirecionar a demanda,  para privilegiar o consumo de bens pouco intensivos em água.

A água virtual é um conceito relevante para acertar a contabilidade integral. Ela chama a atenção para  a água embutida em cada etapa da cadeia produtiva. A consciência sobre a água virtual é um passo para se estancar a hidrorragia (o equivalente da hemorragia num organismo humano) que drena riquezas para fora do organismo brasileiro. Ela ajuda a formular políticas em que a água é usada prioritariamente para produzir bem estar para os brasileiros.



[1] Citado em Carmo, Roberto Luiz; Andréa Leda Ramos de Oliveira Ojima; Ricardo Ojima; Thais Tartalha do Nascimento - Água virtual, escassez e gestão: o Brasil como grande "exportador" de água. Artigo • Ambient. soc. 10 (2) • dez 2007 • https://doi.org/10.1590/S1414-753X2007000200006