O escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu o livro As veias abertas da América Latina. Nesse livro ele descreveu como as riquezas do continente foram historicamente sugadas para outras regiões do planeta, durante e depois da colonização. De certo modo, essa drenagem de riquezas continua com as atuais relações comerciais internacionais. Uma das riquezas envolvida nessas relações é a água. Ela flui pelas veias abertas da rede hidrográfica e pelas águas subterrâneas.
figura: A rede hidrográfica da América do sul.
Usa-se água em cada etapa do ciclo de vida de todo produto
da atividade humana., da produção ao consumo e ao descarte. A maior parte das
atividades humanas é hidro dependente. Ela não está necessariamente contida no
produto final, mas foi utilizada durante as várias fases do ciclo de vida de um
produto. A água virtual é a quantidade de água necessária para se produzir uma
unidade de um produto, seja um alimento, um veículo, uma casa. É o consumo da
água para produzir cada bem ou serviço, embutida em grãos, carnes, minerais.
Há países que são importadores da água virtual, embutida nos
produtos que importam e que foi usada nos países exportadores. Muitos países que têm escassez ou estresse
hídrico importam produtos que demandam grande quantidade de água para serem
produzidos, de países que têm maior disponibilidade hídrica. De certa forma,
eles sugam a água existente nos países produtores e a subtraem de outros usos
possíveis. O pequeno filme Where is water
mostra as interconexões globais que existem entre os hábitos Juntamente com cada produto, soja, carne ou
minério ou produtos industriais, está embutida naquele produto toda a água que
foi usada nas várias etapas de seu processo de produção, transporte e
comercialização. de consumo e a demanda.
A
agricultura é uma das atividades humanas que mais a consome. Países com
pouca disponibilidade hídrica precisam importar alimentos de países que tenham
grande disponibilidade de água.
“Todos os produtos brasileiros que são
exportados, sobretudo os produtos agrícolas, demandam um volume de água para
serem produzidos e essa água é "exportada" juntamente com estes
produtos (soja, carne ou cana-de-açúcar) sem que seja contabilizada.”
O Brasil
é competitivo porque exporta soja sem cobrar por água e biodiversidade
perdidas, diz cientista - BBC News Brasil
O mapa de importações hídricas mostra os fluxos de água virtual entre as regiões. Fonte: Wikipedia
Países produtores e exportadores de produtos agrícolas,
pecuários, minerais, como o Brasil, usam muita água no processo de produção
dessas mercadorias primárias, como a soja, a carne, o açúcar e o ferro. O
Brasil assumiu protagonismo na exportação de carne, frangos, soja e outros
produtos agropecuários. O Brasil tem um
rebanho de mais de 200 milhões de cabeças de gado e exporta carne para 150
países. Isso é apresentado na mídia como um grande feito. Mas numa perspectiva
e visão crítica, pode significar o inverso: que estamos facilitando hábitos
alimentares carnivoristas, na contramão do que seria um hábito alimentar com
menores impactos climáticos e ambientais.
O veganismo e o vegetarianismo, praticados milenarmente na civilização indiana,
são hábitos alimentares menos
consumidores de água, energia e terra.
As relações de trocas internacionais têm consequências regionais
e locais sobre o meio ambiente e sobre
as águas. No Brasil, a exportação de commodities para gerar divisas
internacionais e abastecer as indústrias em outros países pressiona para se
implantar a pecuária bovina ou para plantar soja. Os custos ambientais e
climáticos se avolumam ao se gerar divisas para alguns e abastecer populações
com alimentos que demandam muita água para serem produzidos (carne bovina por
exemplo). A demanda alimentar por carne e soja para alimentar animais pressiona
a devastação da Amazônia. Essa devastação enfraquece os rios voadores, reduz os
volumes de chuvas no centro-oeste e sudeste brasileiros e num efeito bumerangue
prejudica a agricultura nessas regiões.
O Brasil é exportador virtual de água. Exaure reservas, sem
contabilização integral e provoca custos, chamados pelos economistas de
externalidades ambientais negativas. Para atender demandas do mercado externo (China,
Europa) e interno (grandes metrópoles) no imediato e no curto prazo, pode
agravar problemas de desertificação, aridificação no centro-oeste e no sudeste.
O cientista Antonio Nobre pergunta até quando essas regiões estarão livres de
se tornarem desertos, com ao avanço no desmatamento na Amazônia.
Um redirecionamento do comércio internacional e uma repactuação
internacional, contabilizando integralmente os custos, contribuiria para
reduzir o desmatamento na Amazônia e suas consequências negativas para o
restante do Brasil. O Conselho Mundial da Água e o
Instituto para a Educação da Água da Unesco, recomendam que a” água virtual tem
de ser uma opção de política, ou seja, pode aliviar a pressão sobre países com
pouca oferta de recursos hídricos, mas deve vir acompanhada de uma política de
conscientização para o uso de produtos que demandem uma quantidade de água
menor.” A água poderia ser usada de modo que beneficie a população e proteja os
ecossistemas e biomas.
A água
virtual contida em um produto pode ser reduzida quando se adotam tecnologias
hidroeficientes. Também pode ser reduzida por meio de mudanças nos hábitos de
consumo, substituindo-se a demanda por produtos muito sedentos por outros que
precisam de menos água para serem produzidos.
David Pimentel[1]
é um autor que há muito estuda e propõe modos de reduzir a demanda de água: “A
questão central, defendida por Pimentel (2004), é que o volume de água gasto em
alguns produtos é muito elevado, e que haveria possibilidades de diminuição
significativa da demanda de água a partir de modificações na dieta alimentar de
várias populações. “Pimentel (2004) afirma a necessidade de que se reestruture
o cardápio, de maneira que ele seja mais "sustentável", privilegiando
os produtos que exigem menos água para sua produção. Assim, um prato com batata
e frango, por exemplo, exige muito menos água para sua obtenção do que um prato
com arroz e bife bovino.” Produzir soja para alimentar animais que por sua vez
alimentam os humanos não é hidricamente eficiente e tampouco é eficiente na
perspectiva da ecologia energética.
O hidronegócio – atividades que utilizam grandes quantidades
de água para realizar suas operações - domina na área de produção de alimentos,
na mineração e na economia das commodities sem que se faça a contabilidade
integral de seus custos e benefícios. O
hidronegócio conta com fortes aliados na mídia, por ser um rico anunciante, e
com fortes lobbies políticos que aprovam leis em seu benefício.
Caso venha a se fazer uma contabilidade integral, e a incluir
os custos não contabilizados do uso e exaustão do patrimônio hídrico, pode-se
ter uma melhor noção sobre quem se beneficia com o uso da água e quem é
prejudicado. A partir daí, pode-se propor modos mais justos e ecologicamente
amigáveis de redirecionar a demanda, para privilegiar o consumo de bens pouco
intensivos em água.
A água virtual é um conceito
relevante para acertar a contabilidade integral. Ela chama a atenção para a água embutida em cada etapa da cadeia
produtiva. A consciência sobre a água virtual é um passo para se estancar a
hidrorragia (o equivalente da hemorragia num organismo humano) que drena riquezas
para fora do organismo brasileiro. Ela ajuda a formular políticas em que a água
é usada prioritariamente para produzir bem estar para os brasileiros.
[1] Citado em Carmo, Roberto Luiz;
Andréa Leda Ramos de Oliveira Ojima; Ricardo Ojima; Thais Tartalha do Nascimento
- Água virtual, escassez e gestão: o Brasil como grande "exportador"
de água. Artigo • Ambient.
soc. 10 (2) • dez 2007 • https://doi.org/10.1590/S1414-753X2007000200006