sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Utilitarismo e crise ecológica






Mas pra que
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar,
Pra que
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem
Tom Jobim

A perspectiva humanista, característica da modernidade, coloca no centro a espécie humana, seus direitos, demandas e desejos.  A visão humanista reflete a perspectiva do ser humano como o ápice da evolução.
Na perspectiva antropocêntrica a natureza é um objeto para ser usado e consumido, com seus recursos minerais, vegetais e animais, atendendo aos desejos, à demanda e à voracidade do ser humano e como fonte de recursos para serem usados. A relação com essa coisa – a Terra objeto - é objetiva, sem afeto, pragmática. A principal questão deixou de ser a do sentido: o que significa? – para se tornar a da utilidade: para que serve? Que serviços presta? Se é inútil e não serve para nada, não tem valor de uso.
Algumas tradições religiosas colocam o ser humano como o coroamento da criação, com mandato para dominá-la. O historiador da cultura Thomas Berry apontou suas deficiências: “Tanto nossas tradições religiosas como humanistas são primordialmente comprometidas com uma exaltação antropocêntrica do humano.”  
A perspectiva humanista tem sido crescentemente questionada, diante da constatação de que nossa espécie tornou-se o grande fator de pressão sobre a natureza e da devastação ao dizimar habitats, provocar a extinção de espécies, mudar o clima.
James Lovelock, autor da teoria de Gaia, é crítico da visão humanista, que teria levado a sobre-explorar o planeta e a precipitar a atual crise ecológica e climática. Considera que “A humanidade, totalmente despreparada por suas tradições humanistas, enfrenta seu maior teste”. Ele propõe que se priorize o bem-estar e a saúde do planeta, Gaia, tendo em vista que sua existência saudável é precondição para a vida humana e de todas as outras espécies.
A ecologia profunda, que tem abordagem distinta do ambientalismo superficial, também rejeita o humanismo. Atribui os problemas ambientais ao antropocentrismo, que procura preservar recursos para o uso pelo homem e não pelo valor intrínseco da natureza. Propõe uma visão ecocêntrica, biocêntrica. Nessa perspectiva também se coloca o Movimento Anti-utilitarista nas Ciências Sociais – MAUSS que questiona a abordagem de considerar a natureza a serviço do ser humano.
A perspectiva utilitarista e pragmática confronta-se com limites éticos.  O bom nem sempre é o útil, já apontava com clareza Sri Aurobindo: “Há somente uma regra segura para o homem ético, alinhar-se ao seu princípio do bem, seu instinto do bem, sua visão do bem, sua intuição do bem, e governar assim sua conduta. Ele pode errar, mas estará no seu caminho, a despeito de todos os tropeços, porque será fiel à lei de sua natureza. A lei da natureza do ser ético é a busca do bem; não pode nunca ser a busca de utilidade.”
O utilitarismo subestima o valor dos serviços ambientais, tais como a regulação do clima, a produção de água e outros processos fundamentais para sustentar a vida. Manter ecossistemas intocados, espaços protegidos, templos naturais conservados é visto por aqueles com visão utilitarista como uma absurda renuncia ao desenvolvimento econômico e ao usufruto das riquezas naturais, a renúncia do ser humano à felicidade e ao conforto material. Nas artes, a postura utilitarista que coisifica a natureza levou a se associar a beleza à utilidade e a defender que o útil é o belo.
As respostas para a crise ecológica atual devem estar à altura das dimensões épicas das transformações. Isso inclui uma mudança de perspectiva semelhante àquela adotada por Copérnico, que demonstrou que o sol, e não a terra era o centro do sistema. Galileu sofreu por demonstrar essa realidade. Somos mais periféricos do que eles imaginavam, pois o sol é apenas uma estrela de quinta grandeza situada na periferia de uma das milhões de galáxias no universo.
Migrar de um ângulo de visão antropocêntrico e humanista para uma perspectiva Gaiacêntrica demanda humildade e desprendimento. O Homo sapiens não é o fim da evolução, mas é um ser em transição, como definiu Sri Aurobindo. Esse ser poderá ser sucedido por um ser trans-humano, pós-humano ou, numa perspectiva ecológica, eco-humano: o homo ecologicus.
Nesse contexto, cabe desaprender conceitos e visões de mundo, descondicionar a consciência de seu viés utilitarista e fortalecer o valor da frugalidade.  Cabe à educação transcender a perspectiva humanista e adotar princípios e conteúdos que facilitem a transição para a era da evolução consciente do planeta. Thomas Berry propõe um papel para a educação: “O objetivo da educação não é treinar pessoal para explorar a Terra, mas apoiar os estudantes numa relação íntima com a Terra, e estabelecer um caminho mais viável para o futuro.”
Para superar a atual crise ecológica e da evolução cabe uma perspectiva pós-antropocêntrica. Nela, o ser humano ecologizado deixa de ser uma presença devastadora, para tornar-se uma presença benigna diante do mundo natural.  Ele pode tornar-se um gestor consciente da evolução da terra e de sua própria evolução.
















sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Hidratar a arquitetura




Maurício Andrés Ribeiro

Figura – Azulejaria portuguesa. Azulejos foram usados na arquitetura colonial brasileira.
A água condicionou historicamente a arquitetura e tem sua importância redobrada no contexto da adaptação  às mudanças climáticas.
Em climas úmidos protegiam-se as paredes exteriores  com beirais e varandas - que reduziam o desgaste causado pela água de chuva - ou com azulejos que protegiam paredes e fachadas.  O objetivo era evitar o contato excessivo da água com a edificação. A proteção interna contra umidade excessiva provê higiene e salubridade, evitando as doenças relacionadas com o ambiente interno úmido. Azulejos em  áreas úmidas como banheiros e cozinhas e a ventilação natural e entrada de luz solar são recursos valiosos.  
 
Telhados e coberturas protegiam o interior das casas das indesejáveis goteiras durante chuvas fortes. Para evitar que a água subisse por capilaridade pelas paredes as casas eram projetadas suspensas do solo. Em muitas partes, palafitas foram construídas sobre a água. No clima gelado do ártico os iglus dos esquimós  são casas feitas de água em estado sólido, o gelo que ali  ainda é abundante.
Figura– A água  presente nos jardins na arquitetura muçulmana. Taj Mahal. India.
Em climas secos e desérticos busca-se trazer umidade para o ambiente construído e melhorar o conforto ambiental. Na arquitetura árabe, fontes e lagos nos jardins umedecem o ambiente, provendo melhor conforto.
 
No planalto central brasileiro isso também é necessário. Nos ambientes interiores, umidificadores de ar são valiosos para melhorar o bem estar nos periodos secos. Em Brasília,  espelhos d’água umedecem o ambiente.
Figuras – Espelho d’água junto ao Museu Nacional- Brasília
 
 
No Japão rural, a relação com a água orienta a escolha de áreas para se  construir: evita-se a construção em declives onde há enxurradas fortes e evita-se construir nos fundos de vales úmidos e insalubres.
As águas usadas têm diferentes qualidades, identificadas por cores: as águas cinzas passaram pelo chuveiro e lavabo e podem ser reaproveitadas em usos que necessitam menor qualidade da água; águas negras passaram pelos vasos sanitários e podem ser diferenciadas: as águas amarelas  receberam urina e as águas marrons receberam fezes. Elas podem ser tratadas e reaproveitadas em usos menos exigentes. Projetos de casas autônomas  procuram fazer com que se  auto abasteçam de água. Biopiscinas são crescentemente usadas, com o tratamento biológico da água. Em ecovilas, sanitários secos e tratamento biológico de água são soluções adotadas


Em Belo Horizonte há mais de 3000 coletores  instalados  para aquecer a água com energia solar.
 


O abastecimento de água por gravidade é valioso em contextos rurais em que não há energia elétrica para o bombeamento. Quando escolheu o local para construir uma nova casa, meu tio fazendeiro estendeu uma mangueira desde o ponto de captação de água e localização exata da casa foi escolhida depois de verificar que a água ali chegava por gravidade, sem necessidade de bombeamento.
Em contextos urbanos modernos há relação entre gastos de água e de energia para seu aquecimento. Assim, nos apartamentos construídos há 50 anos no início de Brasília com aquecedor central, para a água quente chegar ao chuveiro, a torneira tem que ser aberta para deixar escorrer a água fria, com  desperdício.
O uso de torneiras automáticas e eletrônicas, aeradores, reguladores, restritores de vazão, dispersores em torneiras e chuveiros, vasos sanitários com duplo acionamento por descarga  permite reduzir o gasto de água e as despesas na conta de água.
Coletores solares para aquecer água  economizam na conta de energia e também reduzem o consumo de água, ao reduzirem as distâncias para a água chegar quente aos chuveiros.  Em novos projetos, esse é um recurso valioso.
A legislação de construções de Curitiba criou o programa de conservação e uso racional da água nas edificações. Ver http://cm-curitiba.jusbrasil.com.br/legislacao/340030/lei-10785-03 .  Isso reduz a conta de água a ser paga e reduz o volume de água que escorre nas enxurradas. A água de chuva coletada é usada para todos os usos não potáveis.
O arquiteto hidroconsciente pode atuar em várias frentes: ao conceber o projeto inicial de modo integrado com o projeto hidráulico e de uso de energia solar; ao especificar componentes da construção que economizem ou reusem água,  ao aproveitar água de chuva, ao lutar pela aprovação de legislação municipal de obras que induza a economia de água,  seu aproveitamento e reúso.



quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Hidratando o planejamento e a gestão local

O planejamento e a  gestão municipal da água incluem temas tais como os mananciais de superfície e subterrâneos, o sistema de abastecimento, o esgotamento sanitário, os resíduos sólidos, as inundações ribeirinhas agravadas pelas ilhas de calor sobre as
cidades, o uso do solo, os deslizamentos de encostas, a drenagem urbana.( Ver figura de autoria de  Tucci, C.E.M.).
A gestão do lixo é essencial, pois sua disposição inadequada agrava enchentes urbanas, ao entupir os sistemas de drenagem. Também prejudica a qualidade das águas superficiais e subterrâneas quando sua disposição final é feita em lixões. A gestão de resíduos exige ações de todos e, especialmente, um forte envolvimento das cidades e dos cidadãos.
Os cursos d’água têm leitos de vazante, leitos menores e leitos maiores que usam durante os períodos de chuvas intensas. Inundações e enchentes urbanas se agravam quando os espaços para a ocupação imobiliária e para o automóvel invadem as faixas ribeirinhas nos fundos de vales e são construídas avenidas “sanitárias”, que encaixotam os rios urbanos e tiram o espaço natural da água. A formação de ilhas de calor sobre as cidades aumenta a precipitação de chuva sobre elas e agrava as inundações urbanas.  Em Belo Horizonte, pessoas já morreram afogadas dentro de seus veículos que trafegavam por uma avenida de fundo de vale no momento de uma súbita enchente.  Manter parques lineares ao longo dos fundos de vales é uma forma de reduzir riscos à vida das pessoas e prejuízos econômicos. No Japão esse tipo de cuidado é praticado no urbanismo. A enchente inunda áreas não edificadas e quando ela se vai retomam-se as atividades daquela área verde. A proteção da cobertura vegetal é uma forma de reduzir os riscos de deslizamentos de encostas, que mostram a força da água e as consequências trágicas da ocupação temerária do espaço. É também  um modo de trabalhar a favor da natureza  para que ela preste serviços valiosos de estocagem de água no subsolo. Os lagos, lagoas, reservatórios e açudes urbanos estão sujeitos aos efeitos do mau uso do solo na sua bacia de drenagem, à erosão dos solos, à falta de tratamento de esgotos e aos efeitos do descontrole no uso de detergentes, de agrotóxicos e defensivos agrícolas. A proliferação de algas nos açudes nordestinos ameaça o abastecimento urbano. 
A lagoa da Pampulha já perdeu mais de um terço de sua área original devido ao assoreamento causado pela expansão urbana em Contagem e em Belo Horizonte. Em Brasília, o Lago Paranoá também se assoreia com os sedimentos provenientes das áreas urbanizadas.
A água depende do que ocorre com o uso e ocupação do solo na bacia hidrográfica. O uso do solo tem repercussões diretas sobre o ciclo da água, sobre o escoamento superficial e a drenagem, a infiltração da água nos solos e a qualidade das águas superficiais e subterrâneas. Quando áreas e mananciais que abastecem as cidades são ocupados, agravam-se as dificuldades de abastecimento de água e torna-se  necessário buscá-la mais distante, com o aumento dos seus custos para a população.
As limitações para o abastecimento de água tornam-se fator de restrição ao adensamento urbano, à ocupação do solo e à economia. Antes de se aprovar um novo loteamento ou parcelamento do solo para fins urbanos, é necessário saber como será o abastecimento de água para atender à futura demanda da sua  população. Restrições hídricas limitam as  atividades econômicas. A estimativa da capacidade de suporte ou de carga de um ambiente e do limite máximo a partir do qual se gera o estresse hídrico, ambiental e a insustentabilidade, tornam-se pré-requisitos para o planejamento e a gestão urbana. A gestão das águas usadas e seu tratamento, questões de drenagem e escoamento de águas superficiais são parte da hidroconsciência no urbanismo desde a concepção do projeto e
durante cada etapa de sua implementação.
De acordo com a Constituição brasileira, cuidar do uso e ocupação do solo é competência dos municípios, que atuam por meio de planos diretores, leis orgânicas municipais, leis de uso e ocupação do solo, leis de loteamento ou parcelamento. Também podem fazê-lo por meio da criação e implantação de unidades de conservação e áreas de propriedade pública direta. O município dispõe de competência para cuidar do uso e ocupação do solo urbano, suburbano e rural. A produção e distribuição de água envolve o uso do solo rural, onde ela é produzida e o uso do solo urbano, onde flui e é devolvida ao ambiente natural. Nos planos diretores, leis de uso e ocupação do solo e programas de expansão urbana é relevante cuidar para que haja áreas de recarga de aquíferos e de proteção de mananciais. Criar condições para estocar e reservar agua no subsolo, proteger mananciais são ações que dependem de um processo de ocupação do solo hidroconsciente.
Não se pode obrigar o município a cumprir determinações de outras escalas de governo, mas é possível induzir comportamentos hidroconscientes por meio de incentivos econômicos. Leis estaduais de ICMS ecológico estimularam municípios a priorizarem a criação e a manutenção de unidades de conservação (agenda verde), bem como o licenciamento de aterros sanitários e usinas de lixo (agenda marrom). Incentivos similares poderiam ser estendidos a municípios que disponham de plano de
ordenamento territorial hidroconscientes, que considerem a gestão das águas superficiais e subterrâneas, a drenagem e a recarga de aquíferos (agenda azul).
Relevante, ainda é difundir boas leis e normas que podem ser adotadas nas cidades brasileiras, hidratando também a legislação urbanística. Em resumo, resgatar o urbanismo de sua hidroalienação e hidratar o planejamento e a gestão urbanas são passos relevantes para se prover segurança hídrica às populações urbanas.