quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Escalas da gestão das águas





As escalas de gestão da água variam do micro ao macro. Usando a imagem de Pierre Dansereau, distinguimos dez escalas, do indivíduo ao planeta; da água que se encontra no corpo dos seres vivos e de cada ser humano, até a água para o abastecimento nas casas, edifícios e cidades; às bacias hidrográficas em que ela circula na superfície; até as regiões, estados, países, continentes e a escala planetária onde ela circula na atmosfera e nos oceanos. Em cada uma delas destaca-se uma agenda de temas relevantes, exemplificada abaixo:

1.      1. No centro dessa mandala está o indivíduo interior, cujo organismo é composto de 70% de água e cuja saúde é diretamente relacionada com a quantidade e a qualidade da água que ingere. A água passa pelo nosso corpo e pelos corpos dos demais seres vivos animais e vegetais e somos parte do ciclo integral da água.
2.      2. O indivíduo exterior e sua higiene corporal, banhos, limpeza, relação com a umidade no micro clima e com a agua limpa ou contaminada, que afetam o bem estar e a saúde física.
3.  3.A família, o grupo social básico ao qual pertence e onde se educa na relação com o ambiente e com a água e onde aprende a não desperdiçá-la.
4.      4. A casa, com seus sistemas de abastecimento de água e de coleta e disposição de esgotos; a captação de água de chuva nos telhados, aproveitando de modo descentralizado a água que vem da atmosfera para regar jardins e para uso não potável. O auto abastecimento com cisternas, o reaproveitamento de águas servidas para fins menos nobres. Arquitetos e engenheiros e os projetos de edifícios que se relacionem de modo harmônico com a água.
5.      5. A vizinhança, escala em que podem-se construir sistemas de esgotamento condominial de um conjunto de casas e tomar cuidados para evitar a contaminação de cisternas.
6.     6. O assentamento urbano, ecossistema que precisa de água para funcionar e que a devolve ao entorno com pior qualidade. Sistemas de tratamento de água e de esgotos, o investimento necessário para colocar a água num padrão de qualidade que a torne potável. Os custos da despoluição. A drenagem e escoamento superficial de água para evitar inundações urbanas, a adequada ocupação do solo em fundos de vales, respeitando faixas de inundação de rios e demais cuidados do urbanismo hidroconsciente. As ilhas de calor que se formam sobre as cidades, que aumentam riscos de inundações.
7.     7. A paisagem no entorno das cidades. As periferias e áreas rurais nos municípios, a proteção de mananciais de abastecimento, os cuidados com o uso do solo. A interconexão das águas superficiais e subterrâneas: a recarga de aquíferos e a reservação de água subterrânea, os cuidados para se evitar enxurradas e escoamento superficial e os cuidados para facilitar com que a água se infiltre nos solos permeáveis e reabasteça os mananciais. A prevenção da poluição de aquíferos subterrâneos. O encarecimento do custo da água quando se perdem os serviços ambientais, e quando aumenta a necessidade de investir em obras de infraestrutura hídrica – reservatórios, aquedutos, estações de tratamento.
8.     8. As bacias e regiões hidrográficas, unidades de planejamento e de gestão enfatizadas na legislação de águas e nas quais se aplicam os instrumentos de gestão tais como os planos de bacias, os sistemas de informação sobre recursos hídricos, o monitoramento de chuvas e de vazões, a cobrança pelo uso da água, seu enquadramento em classes de uso. Os conselhos de recursos hídricos e os comitês de bacias hidrográficas e a participação da sociedade no planejamento e na gestão, com a mediação de conflitos pelo uso da água.
9.     9. Os países, cada qual com suas disponibilidades hídricas, problemas de escassez e estresse hídrico, necessidades de articulação institucional entre os vários usuários da água e entre os vários níveis federativos. Necessidade de gestão da agua de modo integral, que considere a etapa atmosférica. No caso brasileiro, o desmatamento na Amazônia e suas repercussões sobre a redução de chuvas no centro oeste e no sudeste brasileiro, com a redução dos rios voadores que trazem nas nuvens a umidade da Amazônia. As conexões entre as torneiras secas no sudeste e o desmatamento da Amazônia.
  10.  10. A escala do planeta. Os oceanos e a atmosfera, o ciclo da água na natureza e sua presença em estado gasoso, líquido ou sólido, como evapora ou congela com as variações de temperatura. A formação e a movimentação de nuvens e chuvas e o serviço prestado pela evaporação nos oceanos, que dessaliniza água de modo natural. O El Nino, com o aquecimento das águas do oceano Pacifico, e como provoca mais chuvas no sul do Brasil e menos chuvas no nordeste.
A água é parte de um sistema hídrico, que por sua vez é componente de um organismo vivo, seja ele o corpo humano, uma bacia hidrográfica ou o planeta Terra. A compreensão dessas várias escalas de abordagem da gestão da água pode reduzir a hidroalienação e permitir que nos relacionemos adequadamente com o ciclo das águas.


(*) Autor de Ecologizar, Meio Ambiente&Evolução humana. www.ecologizar.com.br  ecologizar@gmail.com


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O papel das ciências ecológicas na ecologização das crenças.






Ecologizar as crenças é aplicar os conhecimentos das ciências ecológicas e a sabedoria da consciência ecológica àquilo em que se acredita. No campo ambiental, há muitos interesses controversos: são polêmicos temas como a energia nuclear, organismos geneticamente modificados,  reciclagem de resíduos.. O papel reciclado, por exemplo, pode por um lado reduzir o corte de árvores; por outro, sua produção exige usar mais água, mais químicos para tirar a tinta; seria ele ecologicamente mais amigável que o papel branco, quando se computam os custos logísticos, as distâncias percorridas e a emissão de gases de efeito-estufa durante o seu recolhimento? A energia nuclear, muito tempo execrada pelos ambientalistas, tem sido resgatada por  cientistas como James Lovelock, pelo fato de não emitir gases de efeito-estufa.

O temor, o medo, a busca da segurança se encontram na raiz de posturas ambientalistas prudentes. A crença é, então, escudo de proteção contra riscos ecológicos e ameaças. Assim, o movimento antinuclear se apóia no medo ao terror e ao lixo atômico; o movimento contra os organismos geneticamente modificados se apóia no princípio da precaução e na prudência ecológica, considerando temerário apostar em novos produtos e processos cujos impactos não se conhecem bem.

Nesse contexto de informações incompletas, como diferenciar o consumo consciente do consumo crente, ecoreligioso? A crença pode ser uma forma de auto-engano, de preferir negar ou não ver algo que para outros é evidente. Desconstruir, desmitificar crenças, desaprender, pode ser útil no caminho  de aproximação  do que seja mais verdadeiro. Há necessidade de ciência, de informação abalizada e de conhecimento técnico para evitar auto-enganos bem intencionados.  A moral e a ética tendem a desaguar em uma pregação que pode ser enganadora, dogmática. A aceitação inquestionada, a fé, a crença, sem verificação ou consideração da verdade científica e apoio em conhecimentos, levam a logros e descréditos. Crenças ecológicas desinformadas levam a equívocos. Boa vontade, boa fé e boas intenções desinformadas  levam a atitudes e comportamentos  aparentemente virtuosos, porém inócuos ou contraproducentes, além de pouco sábios.
Corre-se a cada momento o risco de cometer equívocos, ter uma pseudoconsciência sem ciência, enganar-se por falta de embasamento.

Nesse contexto, algumas controvérsias são alimentadas por quem tem interesses específicos, que trata de se movimentar para fazer prevalecer um ponto de vista ou crença que o beneficie. Assim, por exemplo, uma empresa fabricante de papinha de nenê pode propagendear que o aleitamento materno não é tão importante assim. Ou que é substituível sem problemas e com vantagens.

Atualmente há grande confiança na ciência e na tecnologia, sobre as quais são depositadas expectativas de que dêem respostas verdadeiras e satisfatórias aos problemas causados pelas ações humanas. Como ter conhecimento sobre temas especializados, que necessitam de formação, capacitação, especialização? Num contexto de especialização crescente, a confiança e a difusão responsável e sistemática de informações tornam-se necessárias, pois não é possível conhecer a fundo cada tema. Por outro lado, segmentos da sociedade manifestam desconfiança nos cientistas e em sua capacidade de responder aos problemas; em parte porque, seres humanos falíveis, estão sujeitos a serem instrumentalizados por interesses econômicos. Nesse contexto,  comportar-se a partir de bons padrões éticos e técnicos torna os especialistas confiáveis e lhes conferem credibilidade.

Há crenças que não podem ser provadas, e que levam a ações boas e ruins. Uma crença pode vir a mostrar-se verdadeira ou falsa. Enquanto ela não é comprovada ou refutada, pode-se acreditar, ter fé e por ela pautar atitudes. Uma crença independentemente de mostrar-se verdadeira ou  falsa, tem, assim, conseqüências práticas, ao influenciar comportamentos ecológicos ou antiecológicos. Ecologizar as crenças é, portanto, uma forma de induzir mudanças de comportamentos e de conduzir a uma crescente  ecologização da sociedade.

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(*) Autor de Ecologizar e de Tesouros da Índia



[1] Ken O'Donnell, Caminhos para uma Consciência Elevada, Editora Gente, São
Paulo, 1996

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Hospitalidade, uma abordagem ecológica




Hoje, em todo o mundo, migrantes se deslocam de uma região para outra em busca de melhores oportunidades de vida. O fotógrafo Sebastião Salgado retratou os fluxos de migrantes pelo mundo em seu trabalho sobre os êxodos modernos. Eles são expulsos pela miséria, por instabilidades políticas, intolerância racial ou religiosa e por desequilíbrios ambientais de seus países de origem ou atraídos pela riqueza dos países em que tentam se estabelecer. Geram tensões ao competir com os nativos por espaço e oportunidades de trabalho. Num mundo regido pela competição e interesses econômicos, a hospitalidade não é característica dominante.
A lei internacional não dispõe sobre o que fazer no caso de refugiados ambientais, um tema novo que não existia na ocasião em que a legislação foi formulada. Refúgio é negado a habitantes de ilhas que estão sendo afogadas pela elevação do nível do mar, como mostra o exemplo relatado no link abaixo, em que a Nova Zelândia recusa conceder status de refugiado a habitante de Kiribati, uma dessas ilhas/países em processo de extinção.
No mundo natural, o hospedeiro abriga parasitas que sugam seus recursos e que podem acabar por matá-lo. No mundo das colônias, os colonizadores eram os parasitas, que sugavam os recursos de seus hospedeiros, os países colonizados. Deles retiravam recursos e alimentos para sobreviver e enriquecer. Os colonizadores foram predadores que atacaram suas presas e as fragilizaram. Como os parasitas e predadores dependem da vida e energia de seus hospedeiros ou presas para se sustentarem, a eles não interessa causar sua extinção. A hiperinfestação de parasitas pode, entretanto enfraquecer os organismos que os hospedam, como ocorreu com inúmeras ex-colônias empobrecidas. Em muitas ocasiões, os colonizadores praticaram também o escravagismo, relação ecológica desarmônica onde uma parte se aproveita e se nutre da energia, da força de trabalho, das atividades, ou de produtos produzidos pela parte escravizada.
Na migração moderna, vista como um processo de inquilinismo, migrantes procuram se beneficiar dos recursos e oportunidades que lhes são oferecidos pelo hospedeiro onde obtém abrigo ou suporte. Atualmente, num efeito bumerangue, cidadãos das ex-colônias buscam os países colonizadores, num processo de ação e reação histórica.
A capacidade de ser um bom anfitrião, de bem receber migrantes está relacionada com um entendimento generoso da unidade do ser humano. Tem a ver com solidariedade, empatia, compaixão, valores que vão além dos interesses econômicos e materiais imediatos. A receptividade para com aqueles que migram e pretendem se estabelecer de modo permanente está relacionada com a capacidade de colocá-los à vontade, não hostilizá-los ou excluí-los. A habilidade de ser receptivo e de acolher imigrantes é valiosa num mundo com números crescentes de refugiados ambientais.
Em circunstâncias nas quais se agravam o neonazismo, a intolerância racial, a segregação e a violência, a discriminação e a ausência de solidariedade, é oportuno buscar inspiração na milenar civilização indiana. A tecnologia de convivência e respeito a diferenças desenvolvida nessa civilização é essencial no mundo conflagrado por conflitos étnicos.
A Índia exerceu a hospitalidade e criou um sistema de valores que facilitava a tolerância para com a diversidade. Ela acomodou em seu território, durante milênios, invasores, colonizadores, imigrantes e descendentes de arianos e drávidas, maometanos e gregos, europeus de Portugal, França, Inglaterra. No campo da hospitalidade e no exercício da convivência com o diferente, a cosmovisão indiana tem grandes contribuições para as demais civilizações. O poeta indiano e prêmio Nobel Rabindranath Tagore assim expressou essa condição do país: “A missão da Índia foi como a da anfitriã que tem que prover acomodações apropriadas para numerosos hóspedes, cujos hábitos e necessidades são diferentes uns dos outros. Isso causa complexidades infinitas, cuja solução depende não meramente de tato, mas de simpatia e de um verdadeiro entendimento da unidade do homem". Para abrigar hóspedes tão diversos em seu território, a civilização indiana desenvolveu o espírito de tolerância e não violência. Continuando a refletir sobre a Índia, Tagore conclui: “Temos que reconhecer que a história da Índia não pertence a uma raça em particular, mas a um processo de criação para o qual várias raças do mundo contribuíram – os drávidas e os arianos, os antigos gregos, os persas, os maometanos do oeste e aqueles da Ásia central. E por fim, foi a vez dos ingleses nessa história, trazendo-lhe o tributo de suas vidas; não temos o poder nem o direito de excluir esse povo da construção do destino da Índia.”
Disso resultou um país com grande diversidade de línguas, culturas, costumes que talvez seja, no mundo, o povo mais diverso e a sociedade em que se experimentam mais explicitamente os extremos das grandezas e misérias da condição humana. Ela absorveu, metabolizou influências das inúmeras invasões que sofreu ao longo de sua história e as devolveu transformadas ao mundo. À diferença dos países europeus, que colonizaram a África, Ásia e América, e ali predaram e parasitaram recursos com os quais se sustentar, a Índia nunca foi expansionista. Pelo contrário, absorveu os imigrantes que chegavam. Até mesmo na luta pela independência, liderada pelo Mahatma Gandhi, usou da gentileza da resistência passiva e da não violência para fazer os invasores europeus saírem de seu território.
A Índia cultivou a convivência entre diferentes de forma introspectiva: aprofundou-se na psicologia humana, no autoconhecimento; desenvolveu verdadeira tecnologia de vivência menos violenta em contextos densos. Em poucos anos será o país mais populoso do mundo, com cerca de 18% da população mundial e com baixos índices de violência, se comparados com os da America Latina e da Africa. Ver World Tables, do Banco Mundial, que mostra que os índices de homicídios intencionais por 100.000 habitantes na India são seis vezes menores do que no Brasil. Link http://data.worldbank.org/indicator/VC.IHR.PSRC.P5
Nesse estágio terminal da era cenozoica, caracterizado por mudanças climáticas, eventos críticos e extremos, catástrofes, êxodos e deslocamento de populações, é positiva a capacidade de exercer a cultura de paz e a tolerância, a habilidade de conviver pacificamente uns com outros. São riquezas intangíveis e imateriais valiosas a generosidade, a solidariedade e a hospitalidade.