segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Ecologizar as humanidades


                                                                                     


A UFMG promoveu em outubro uma Conferência internacional sul-americana sobre territorialidades e humanidades. Participaram acadêmicos e ativistas sociais, o que resultou numa boa combinação de perspectivas de abordagem dos temas. Quatro dias de palestras, mesas redondas, apresentação de trabalhos de estudantes preparam para uma conferência mundial que acontecerá na Bélgica em 2017 e que focalizará a relação das humanidades com o ambiente, a identidade cultural, fronteiras e migrações, patrimônio e a história.
As humanidades cobrem um campo amplo de áreas de conhecimento humano, desde as ciências humanas – história, educação, linguística, psicologia – até os campos das letras e artes, filosofias, estudos das tradições, teologia.
Na mesa redonda sobre Ecologia e meio ambiente, o historiador José Augusto Pádua focalizou os estudos de história ambiental no Brasil e Joceli Andreoli, do Movimento de Atingidos por Barragens, abordou o rompimento da barragem de rejeitos de mineração em Mariana e suas consequências.
Nessa mesa, propus Ecologizar as humanidades, o que significa aplicar os conhecimentos das ciências ecológicas e a sabedoria da consciência ecológica em todos e cada um dos campos das humanidades. Isso implica em não ignorar nossa base biológica e animal e as relações ecológicas harmônicas – comensalismo, simbiose etc - e desarmônicas – predação, parasitismo, escravagismo etc- que desenvolvemos com o ambiente e com os demais seres humanos, individual ou socialmente. Assim, por exemplo, o tema da corrupção é visto a partir da perspectiva do parasitismo e da predação; o tema do medo se enriquece a partir de perspectiva da ecologia interior. O tema da educação é visto como instrumento de expansão da consciência e de enriquecimento da noosfera, uma das esferas estudadas pela ecologia integral.  As migrações e fronteiras, bem como a hospitalidade, ou a falta dela podem ser abordadas ecologicamente. O estudo da história humana pode ser ecologizado ao inseri-la na história natural. O antropoceno é uma nova época na história natural, datada a partir dos testes nucleares em 1945 que se faz no ritmo rápido da evolução da consciência e não mais no ritmo lento da evolução biológica ou da evolução da matéria. No antropoceno a atividade de nossa espécie tem influído no rumo da evolução, provocado aceleração na dinâmica do planeta, mudanças do clima e extinções de biodiversidade. Essa época antropocena estaria inserida numa nova era na evolução, que outros propuseram ser a era eremozoica (E.O.Wilson); era ecozoica (Thomas Berry e Brian Swimme); era psicozóica (Daniel Bell), todas essas designações baseadas na vida animal (zoo). Propus que essa nova época antropocena está inserida numa nova era na evolução do planeta, a era noológica (a era da consciência) que sucede às eras da vida animal (cenozoica- mamíferos; mesozoica, dinossauro; paleozoica, organismos vivos primitivos antigos). De tal consciência derivam as ciências, tecnologias, inovações, conhecimentos culturais e espirituais.
Na era noológica há um salto de patamar, da vida animal ( zoo) para a consciência ( noos)
As marcas materiais do antropoceno, que os futuros arqueólogos e geólogos identificarão inscritas na matéria do planeta são traços de radiação atômica, resíduos de plástico, de alumínio e de concreto, bem como ossos de galinha. Todos eles são resíduos produzidos pelo homo lixius, a única espécie viva que produz lixo. Mas nossa espécie autodenominada homo  sapiens é também designada por diversos outras características: o homo ludens, que brinca e joga; o homo bellicus, que guerreia; o homo corruptus, que corrompe e é corrompido; o homo economicus, que se move por interesses de ganhos a acumulação; o homo stressatus, que se apressa e se estressa; o homo ecologicus, que procura se relacionar de modo harmônico com o ambiente; o homo noologicus, que se guia por sua consciência intuitiva e racional, entre outras designações.
Ecologizar as humanidades, no contexto da ecologia integral, implica em fecundar as ciências humanas com os conhecimentos dos vários campos em que se desdobram as ciências ecológicas, não apenas aqueles derivados de suas origens na biologia – a relação dos ambientes, com os bichos e plantas – mas também na ecologia social ecultural e na ecologia urbana e nos campos relacionados com a ecologia interior – a ecologia profunda a ecologia do ser, a ecologia pessoal e transpessoal etc.
A ecologia urbana considera a cidade como um ecossistema

A ecologia, que se originou nas ciências biológicas, se desdobra em inúmeros campos que crescentemente estudam a presença humana, tais como a ecologia humana, a ecologia cultural, a ecologia social, a ecologia urbana, a ecologia industrial, bem como um outro tanto de campos que estudam a consciência e os aspectos subjetivos e psicológicos: a ecologia do ser, a ecologia pessoal, a ecologia mental entre outros. Uma agenda atualizada sobre as humanidades precisa se apoiar em concepções do que seja o ser humano, o objeto e o sujeito do que elas cobrem. Isso implica em se aprofundar no autoconhecimento e no conhecimento sobre o universo interior (as inscapes definidas por Pierre Dansereau) e sobre as questões subjetivas.
A ecologia integral, pioneiramente estudada por Pierre Dansereau e adotada em 2015 como conceito central pelo papa Francisco em sua Encíclica Laudato Si integra aspectos biológicos, sociais e a ecologia interior. Tal movimento integrador não se limita às fronteiras das disciplinas e encontra pontes entre elas, numa visão holística e menos fragmentada.
Essa mandala elaborada por Pierre Dansereau mostra as várias escalas de territórios, do interior do corpo ao planeta.
A Conferência na UFMG deu destaque ao tema do território. Nesse contexto lembrei que o meio ambiente pode ser abordado em múltiplas escalas espaciais, desde o interior do organismo de um indivíduo, que é em si mesmo um ecossistema complexo habitado por milhões de seres microscópicos, até a escala do ambiente local, regional, global e cósmico. A mandala desenhada por Pierre Dansereau torna visível essas várias escalas do território.
Ecologizar as humanidades é oportuno porque a ecologia adquiriu centralidade nas últimas décadas e tornou-se um tema de interesse para questões estruturantes da vida e da sociedade, tais como a segurança e a economia. Exemplificando, as mudanças climáticas trazem cada vez mais eventos críticos, secas, enchentes, furacões, que provocam prejuízos às atividades econômicas e que trazem novos riscos à vida e à segurança humana. Fenômenos tais como os dos refugiados ambientais se multiplicam e criam novas dinâmicas e tensões entre sociedades, países e indivíduos.

Para se refundar as ciências humanas é relevante ecologizá-las, trazer para dentro delas a perspectiva das relações ecológicas e da consciência ecológica, para que elas se tornem sintonizadas com o espírito necessário neste século XXI.
Ecologizar as ciências humanas ajudará que elas tragam sua contribuição nessa nova etapa da evolução no planeta, caracterizada pelo predomínio da consciência e não mais apenas da matéria e da vida.

                                                                                 



Ecologia, Corrupção e Ética




 O ser humano integra o mundo natural e compartilha uma base biológica comum com as demais espécies. Guardadas as devidas diferenças entre o mundo natural e o mundo dos humanos, uma abordagem ecológica do tema da corrupção pode iluminar alguns de seus fundamentos biológicos e ajudar a lidar com ela.
Relações ecológicas variam da parceria e cooperação ao antagonismo e competição. Assim, a simbiose e o comensalismo são relações em que os organismos atuam em conjunto para proveito mútuo; são desarmônicas interações como a antibiose (princípio usado nos antibióticos, que matam ou inibem certos organismos vivos), a predação, o canibalismo, o vampirismo, o escravagismo, o parasitismo.
O carrapato  é um parasita que suga seu hospedeiro
 Na natureza, um parasita suga um animal ou vegetal e dele tira seu sustento. Em alguns casos, leva o hospedeiro à morte. Os predadores se multiplicam quando há muito do que se alimentar, mas quando escasseia a comida, eles podem, no limite, ser extintos. Hospedeiros precisam experimentar mutações para ter um organismo geneticamente mais adaptado para sobreviver na guerra com os invasores. Flávio de Carvalho Serpa observa que “Sobrevive o mais adaptado. A natureza não distingue entre o bem e o mal. A humanidade é a única que tem a ética e honestidade como fator seletivo, o que é bom...”.
 O parasita social suga a sociedade na qual se hospeda, a explora e vive à sua custa; se beneficia dela e a enfraquece quando extrai e se apropria de seus recursos somente em proveito próprio. Dependendo da percepção ou da ideologia de quem os define, já foram apontados como parasitas sociais os indivíduos que vivem à custa alheia, os capitalistas, os burgueses, os senhorios, os que vivem da previdência social. Nos governos, alguns veem como parasitas os servidores públicos que não trabalham; que defendem seus interesses e privilégios corporativos acima do interesse público mais amplo. O avanço civilizatório traz maior eficiência no controle dos predadores aproveitadores, que aparecem e se multiplicam quando há oportunidade.
Predador e presa no mundo animal. No mundo humano a corrupção é uma relação de predação..
 A corrupção pode ser vista como uma forma extrema de parasitismo social, combinado com a predação. Corruptores e corrompidos colaboram entre si como os parasitas/predadores; o hospedeiro/presa do qual se alimentam é a sociedade. O corruptor e o corrompido se apropriam de recursos coletivos. Atuam como sanguessugas, que causam sangria nos cofres públicos.  Corruptores e corrompidos são muitas vezes hábeis e tentam se esconder para não serem descobertos; se disfarçam, camuflam, enganam, dissimulam e aplicam estratagemas e táticas de ação engenhosas e às vezes criativas.
 Nas sociedades humanas, entre as condições que facilitam a corrupção, relacionam-se a impunidade e a inexistência de riscos; as debilidades institucionais, tais como o mau funcionamento dos poderes judiciário, legislativo e executivo; o loteamento partidário da administração pública, sem a contrapartida da probidade e competência técnica; o sistema eleitoral corrupto, as oligarquias aproveitadoras, as empresas corruptoras, o hábito da transgressão das regras, normas e leis como atributo de espertos; a autocomplacência individual ou grupal.  A falta de proteção policial, de consequência jurídica e a prostração e o conformismo social estimulam o aumento da atividade de parasitas e predadores.
 Num quadro mais amplo, Jared Diamond, em seu livro Armas, Germes e Aço, dedica um capítulo à análise da evolução do igualitarismo às cleptocracias modernas, que surgiram depois dos bandos, das tribos, dos principados e sultanatos. Diz ele que “A diferença entre um cleptocrata e um estadista sábio, entre um barão ladrão e um benfeitor público é meramente de grau.” Depende de qual a porcentagem dos impostos coletados é retida pela elite e quanto dos impostos é destinado aos bens comuns e usos públicos. Ele constata que as grandes sociedades precisam ser centralizadas “Mas a centralização do poder inevitavelmente abre a porta - para aqueles que detêm o poder, a informação, tomam as decisões e redistribuem os bens - para explorar as oportunidades resultantes de se premiarem e a seus parentes”. Em cleptocracias, parasitas se incrustam em nichos do estado, nos quais se locupletam e usufruem de direitos, vantagens e benefícios pessoais.
 Há também quem associe a corrupção à era ‘Kali Yuga’, a idade do ferro do ciclo hindu. Nessa era, há poluição, gratificação dos sentidos, matança de animais, destruição da natureza, com grupos, quadrilhas, gangues, máfias, corporações, empresas e companhias disputando e competindo pela riqueza material coletiva. Se parasitismo e predação são relações naturais, também são naturais as estratégias de defesa dos organismos contra predadores e parasitas.
 Nesse contexto, cabe perguntar:
 1) Como descobrir a ocorrência de um processo de parasitismo ou predação social?
 2) Em que medida são aplicáveis aos casos de corrupção, no mundo dos humanos, as estratégias dos hospedeiros para sobreviverem a parasitas, e das presas, para escaparem de seus predadores?
 3) Como dificultar a vida dos parasitas e predadores? Como facilitar a vida dos hospedeiros/presas?
 4) É possível prevenir ou combater a corrupção com a aplicação de princípios e de estratégias de sobrevivência ecológicos?
 Se o predador e o parasita desenvolvem formas astuciosas de agir, também as presas e os hospedeiros concebem maneiras criativas de se livrar dos ataques e se proteger. A evolução civilizatória dificulta a sobrevivência dos aproveitadores. Para se prevenir a corrupção é eficaz desenvolver a consciência coletiva sobre as consequências e os ônus de uma relação corrupta. Transparência e informação clara e circulante à luz do dia ajudam na prevenção de relações de parasitismo ou de predação social.
A possibilidade de se estruturar uma sociedade menos corrupta depende de ações de fortalecimento social (o hospedeiro/presa) e de enfraquecimento dos corruptores e corrompidos (os parasitas/predadores)
 1) Ações e atitudes do hospedeiro/presa:
 Estar vigilante e atento; ter imaginação, sagacidade, astúcia. (Um exemplo: para tentar neutralizar ataques cibernéticos é a contratação de hackers por serviços de inteligência.) Ter vontade e coragem para enfrentar resistências. Detectar preventivamente e corrigir situações de corrupção conhecidas. Manter informação livre (imprensa); conceber e colocar em prática estratégias - sociais, políticas, culturais - para escapar do parasita. Exercitar a indignação consequente. Adotar controle social externo e interno com hierarquias claras, gestão participativa e transparente, critérios de avaliação; reduzir a autocomplacência; reduzir, por meio de gestão bem feita, as frestas por onde se infiltram oportunistas e parasitas. Fortalecer a defesa imunológica contra vírus e espécies invasoras.  Manter sistemas eficazes de fiscalização e auditoria, internos e externos, com padrão ético. Criar fatores de repulsão aos ataques dos parasitas, como, por exemplo, na natureza, o mau cheiro; por meio de tolerância zero, aplicar ao corpo do hospedeiro repelentes que afugentem os potenciais parasitas; fortalecer as defesas imunológicas do hospedeiro.
 2) No parasita/predador:
 Descobrir os liames e romper o conluio e a cooperação entre corruptores e corruptos; adotar a delação premiada, que funciona como um antibiótico ao romper a relação simbiótica corruptor-corrompido; promover a cizânia entre corruptos, com tratamento igual para todos os que forem descobertos; encontrar e fortalecer os predadores dos corruptos; fazer limpeza e saneamento, punir e demitir servidores corrompidos, sabendo que não basta extirpar, porque o parasita retorna quando se mantêm as condições ambientais favoráveis; eliminar as condições para que voltem, melhorando controles administrativos e transparência; evitar que novos parasitas venham a ocupar o nicho institucional dos anteriores. Esclarecer e desativar mecanismos de louvação e elogio da esperteza corrupta e a simpatia para com as ilegalidades; quando descoberto o parasitismo da corrupção, aplicar punição exemplar; reduzir suas fontes de alimentos: bloquear contas bancárias, obrigar ao ressarcimento dos recursos públicos, punir os aproveitadores corruptores.