sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

COLEGIADOS E COMITÊS PARA A GESTÃO DAS ÁGUAS




No Brasil, a lei n. 9433-1997 propôs gerenciar os múltiplos usos das águas de forma democrática, participativa e descentralizada. 

Para tanto, foram criados comitês, consórcios e conselhos de composição diversificada, dos quais participam representantes dos governos, da sociedade civil e de usuários.  A lei brasileira prevê que cabe aos comitês e conselhos arbitrar administrativamente os conflitos relacionados aos recursos hídricos e que os planos de recursos hídricos devem identificar os conflitos potenciais. À medida que a demanda por água se acentua, torna-se cada vez mais necessária a gestão colegiada, para evitar que se agravem os conflitos e a violência na apropriação da água. 

Os colegiados, quando deliberativos, conferem poder e motivação para a participação dos cidadãos que lhes dedicam tempo voluntariamente.

Nos fóruns colegiados ocorrem visões de mundo e abordagens com uma diversidade de ênfases: desde a visão antropocêntrica, que submete a natureza à espécie humana, até a visão ecocêntrica e biocêntrica, que focaliza como central a preocupação com a estabilidade ecológica e com a biodiversidade. A essas se agrega a visão hidrocêntrica que percebe e compreende as interações na natureza a partir do elemento água.

Os conselhos de recursos hídricos, comitês de bacias e conselhos de proteção ao patrimônio são espaços de aprendizado para o diálogo.  Um processo pedagógico de dissolução de desconfianças e estranhamentos mútuos realiza-se neles, em aproximações sucessivas, com ajustes finos e superação de ignorâncias técnicas. 

O Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH, conselhos participativos,  aprovaram nos últimos anos inúmeras resoluções que foram fruto desses processos e que deram contribuições relevantes para a gestão. Em 2005, aprovou-se nos dois conselhos a proposta de resolução para articular o licenciamento – um instrumento da política ambiental – com a outorga de direito de uso de recursos hídricos – um instrumento da gestão das águas. Passaram-se quase três anos de discussão para o Conama aprovar a Resolução no.  357/2005, que define normas e padrões de qualidade ambiental para a classificação de corpos d’água e as diretrizes ambientais para o seu enquadramento. Manifestaram-se  na ocasião  várias formações técnicas e jurídicas e as divergências cederam lugar a convergências. As resistências à mudança, incompreensões, idas e vindas, os ritmos diferentes num e noutro conselho, as discussões em grupos de trabalho e nas câmaras técnicas evidenciam que existe uma distância entre a formação do gestor ambiental e a do gestor de recursos hídricos, que precisa ser transposta.

Um colegiado como o comitê de bacia tem poder de pressão. O colegiado é uma alavanca que facilita que os processos avancem, quando cada um faz a sua parte e estimula que os demais também o façam. Por meio da negociação, da mediação e da arbitragem, da participação pública e da construção de consensos é possível alcançar soluções sem a necessidade de se recorrer a ações judiciais.

Entretanto, com o tempo, alguns atores aprendem a controlá-los em seu benefício, ocupam espaços nas representações e os colegiados perdem representatividade e legitimidade. Suas decisões passam a ser contestadas e recorre-se à justiça para neutralizá-las. Na vida real os críticos dos comitês e agências de bacias denunciam que os colegiados são frequentemente capturados pelo empresariado  com a conivência do poder do estado, atores que têm maior poder econômico, político e de informação. Eles  formam maiorias para aprovar medidas e resoluções que atendam seus interesses, nem sempre alinhados com o interesse público e coletivo. Os colegiados tornam-se teatros em que a sociedade civil fica em minoria e não tem poder de influenciar nas decisões.

Para preservar sua legitimidade e aceitação social, os colegiados precisam manter uma postura equidistante e isenta diante de interesses particularistas e focar no interesse público e coletivo, no intuito de fortalecer a justiça das águas.

Em outros modos de pactuação colegiada, como por exemplo nas alocações negociadas de água ou nas salas de crise, quando os diversos interesses estão bem representados e há uma base sólida de dados e informações de qualidade, as decisões são tomadas  com participação social democrática, com conhecimento e se possível com sabedoria, em benefício de todos.


quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

TRANSPOSIÇÕES DE ÁGUA

 


Figura: Transposição do rio São Francisco



A transposição de águas entre bacias hidrográficas é uma estratégia complexa que requer cuidadosa avaliação de impacto ambiental, estudos hidrológicos e sociais, além de considerações éticas, políticas e econômicas. 

Ela é um projeto de engenharia hidráulica que consiste na transferência controlada de água de uma bacia hidrográfica para outra. Essa prática é realizada por meio da construção de sistemas de canais, aquedutos, túneis ou outras estruturas que permitem o deslocamento da água de uma área para outra.

Geralmente, a transposição de águas é realizada com o objetivo de atender às demandas de abastecimento humano, agrícola e industrial em regiões que sofrem com escassez de água ou para equilibrar a distribuição de recursos hídricos em diferentes áreas geográficas. Também pode ser uma estratégia para mitigar os impactos de secas ou inundações em determinadas regiões, buscando transferir o excedente de água de uma área para outra que dela tenha necessidade.

No entanto, a transposição de águas entre bacias pode ser controversa e enfrentar críticas devido aos seus possíveis impactos ambientais, sociais e econômicos. Alguns dos desafios e preocupações associados à transposição de águas incluem alterações nos ecossistemas aquáticos de ambas as bacias, afetando a biodiversidade, a qualidade da água e os habitats naturais; o deslocamento de comunidades locais, mudanças nas práticas agrícolas e disputas pelo acesso à água entre diferentes regiões; custo elevado de construção e manutenção das infraestruturas necessárias para a transposição, além da viabilidade a longo prazo do projeto; possíveis impactos na disponibilidade de água nas bacias de origem e na sustentabilidade do ciclo hidrológico.

Se alargarmos o conceito de transposição para abarcar também as águas atmosféricas a evaporação e a movimentação dos rios voadores pelos ventos podem ser vistas como grandes processos de transposições de águas de uma bacia para outra.


RENATURALIZAÇÃO DE FUNDOS DE VALES

 

A natureza é uma mestra que, por meio de desastres, ensina lições. Caso sejam aprendidas, elas podem levar a mudanças de comportamentos individuais e coletivos. Por meio dos deslizamentos de encostas, inundações urbanas e rurais, secas e estiagens, a natureza se manifesta. Aprende-se a evitar comportamentos temerários, tais como a ocupação de áreas vulneráveis e de risco, e a ter prudência  a partir do sofrimento, das perdas de vidas e dos prejuízos econômicos. 




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Figura: Água, sua linda! Várzea natural e ocupada indevidamente.

Os cursos d’água têm leitos de vazante, leitos menores e leitos maiores que enchem durante chuvas intensas. 

  

Cada curso d’água tem seu leito normal e seu leito de inundação, que corresponde à faixa inundável, quando vêm as chuvas mais fortes. No afã de aproveitar ao máximo os terrenos, durante muitos anos adotou-se a prática de drenar os fundos de vales e construir avenidas sanitárias ao longo deles. Não satisfeitos em eliminar as faixas de inundação, os administradores urbanos, com o auxílio técnico de engenheiros e urbanistas, cobriram com asfalto e concreto os próprios córregos, riachos e ribeirões. Em muitas cidades os rios tornaram-se invisíveis ao serem canalizados, cobertos com pistas de rolamento para veículos.  Sistemas de alerta para interditar tráfego em períodos de pico de cheia passam a ser necessários nos fundos de vales já ocupados. Eles foram literalmente encaixotados. Essa abordagem tinha, aos olhos de quem a praticava, a vantagem de tirar da vista e do convívio dos cidadãos os lugares úmidos, propícios à criação de mosquitos e ao despejo de resíduos. A avenida sanitária liberava terrenos para uso, ocupação e especulação imobiliária; eliminava áreas insalubres e propiciava novas pistas de rolamento para veículos, nas cidades dominadas pelos automóveis.

Este tipo de solução cobra seu preço. Inundações e enchentes urbanas se agravam quando os espaços para a ocupação imobiliária e para o automóvel invadem as faixas ribeirinhas nos fundos de vales e são construídas avenidas, que encaixotam os rios urbanos e tiram o espaço natural da água. Anos depois, a impermeabilização das bacias hidrográficas ocupadas por construções, asfalto e cimento, faz com que aumentem os volumes que escorrem nas enxurradas e nas chuvas mais fortes. Os caixotes que contêm os córregos não comportam a vazão aumentada e eles literalmente estouram, extravasando as águas ali comprimidas e quebrando o concreto e o asfalto. Fatos como esses tornaram-se comuns em várias cidades, provocando prejuízos econômicos e mortes. Em Belo Horizonte, pessoas morreram afogadas dentro de seus veículos que trafegavam por uma avenida de fundo de vale no momento de uma súbita enchente.

Essa concepção de engenharia e de urbanização passou a ser contestada em muitas cidades em todo o mundo e surgiu a tendência de renaturalizar os fundos de vales, devolver essas faixas a seu estado natural, retirar concreto e asfalto e criar parques lineares destinados ao lazer, à recreação e aos esportes.

Esse padrão urbanístico foi utilizado em algumas cidades, antes que os vales fossem ocupados. No Brasil, Curitiba, com seu urbanismo ecologicamente amigável, foi pioneira na criação de parques lineares nos fundos de vales.  Em países de urbanização mais antiga e com alta densidade de população, como o Japão, também se pratica o urbanismo que preserva os fundos de vales. As faixas verdes amortecem as cheias, abrigam temporariamente os grandes volumes, são inundadas. Quandoas águas se vão, reaparecem os parques de lazer, esportes e recreação. Sem mortes, sem prejuízos econômicos, respeitam-se as faixas marginais dos rios e seus leitos de inundação. As águas agradecem, a cidade também.

É possível recuperar os rios e reintegrá-los à paisagem urbana, como mostram várias experiências no mundo. 

Faixas de inundação são deixadas sem ocupação ao longo de vários rios. Florença tem essas áreas ao longo do rio Arno. São João del Rey tem faixas verdes no córrego do Lenheiro.

Para isso acontecer é necessária uma mudança de mentalidade e de padrão de engenharia urbana e o abandono do urbanismo hidroalienado. Administradores, engenheiros, urbanistas e arquitetos concebem os projetos de renaturalização e os modos de colocá-los em prática.  Empreiteiras acostumadas a propor obras caras e ineficientes e a drenar recursos públicos para tais soluções perdem espaços para empresas que propõem e constroem  soluções hidroconscientes. Os cidadãos cansados dos desastres causados pelas chuvas nas cidades aprendem que esse é um padrão adequado e cobram dos governos para que seja aplicado o urbanismo hidroconsciente. Com mudanças como estas, constroem-se as cidades sensíveis à água.


DRENAGEM



Drenar é fazer escoar. A drenagem natural se faz a partir da força da gravidade, pela qual as águas escoam de pontos mais altos para pontos mais baixos de um terreno. Na escala continental, cada bacia ou região hidrográfica representa um espaço territorial que compartilha água de uma mesma rede de drenagem. 

Mapa das bacias hidrográficas da América do Sul e suas redes de drenagem

Por meio das redes de drenagem as chuvas escorrem pela superfície ou infiltram-se no solo. Solos arenosos ou porosos são mais permeáveis e facilitam a drenagem natural; já os solos argilosos em geral são menos permeáveis. A compactação do solo em estradas, em áreas agrícolas trabalhadas com máquinas pesadas e sua cobertura com asfalto ou cimento também o tornam impermeável, dificultam a infiltração de água de chuva e aumentam as enxurradas.

Terrenos acidentados e com alta declividade permitem o escoamento mais rápido de água. Dependendo da força das enxurradas, há erosão e carreamento de solos. Terrenos planos nas partes baixas, áreas úmidas, pântanos, várzeas, terrenos em fundos de vales são o destino dessas águas.  Quando não se valorizam os serviços ambientais prestados por essas áreas, são propostas e realizadas obras que drenam essas águas e secam essas áreas, para  aproveitar economicamente esses espaços. Há danos ecológicos e prejuízos econômicos, quando os leitos de inundação dos rios são ocupados e as águas extravasam.

Nas áreas rurais, barraginhas e drenos em curvas de nível  ajudam a reter água de enxurradas e a fazê-las infiltrar nos solos. Em ambientes urbanos, é frequente se construírem soluções de engenharia tais como redes coletoras de águas pluviais, piscinões, jardins filtrantes, pavimentação  permeável, para regular a drenagem e reduzir riscos de cheias. 

Pavimentação permeável

Planos diretores, planos de saneamento local e planos de drenagem são alguns dos instrumentos de que dispõe o município para lidar com a drenagem e reduzir as inundações.  

Os alagamentos de curta duração acontecem durante um pico de chuva e em pouco tempo vão embora, deixando um rastro de destruição. Um padrão de uso do solo que evite a pavimentação impermeável numa grande superfície reduz riscos de enchentes.

A micro drenagem difusa e descentralizada no território da bacia hidrográfica permite que a água se infiltre no solo mais poroso. 

Jardins filtrantes distribuídos no território prestam esse serviço de infiltração. Isso reduz a necessidade de construir piscinões ou grandes reservatórios para armazenar a água durante os períodos de pico de cheias.

No que se refere à ocupação do solo, leis urbanísticas em várias cidades não permitem índices excessivos de impermeabilização dos terrenos, que agravem inundações. Esse tema é de difícil fiscalização, já que um proprietário de terreno, depois de conseguido o alvará de construção, pode cimentar até 100% da área. Mas existem meios, por fotointerpretação, de identificar os índices de impermeabilização.

As enchentes urbanas têm uma componente climática, que é associada ao aumento das chuvas. As enchentes catastróficas que ocorreram no Rio Grande do Sul no início de 2024 e que tem ocorrido em cidades de outras regiões do Brasil  e em outras partes do mundo têm um forte componente climático e exigem conhecimento e monitoramento para a prevenção de desastres. 

As enchentes também têm uma componente não climática, como, por exemplo, o entupimento de redes de drenagem pelo lixo ou o escoamento superficial aumentado, devido à impermeabilização dos solos. 

A capacidade de escoamento da rede de águas pluviais é dimensionada conforme o tempo de recorrência das chuvas, isto é, o tempo em que um volume de chuva alto volta a ocorrer. 

A operação e manutenção do serviço de drenagem tem custos que precisam ser recuperados ao longo do tempo. Isso implica em definir uma taxa ou tarifa. Diante disso, há prefeitos que preferem não gerenciar a  drenagem,  porque a disposição a pagar dos contribuintes é baixa e ele pode ter desgastes eleitorais. Isso traz prejuízos materiais, riscos de vida e outros custos. 

Nas periferias urbanas de cidades  sensíveis à água, quando novos loteamentos  são desenhados,  o desenho urbanístico precisa considerar a existência de nascentes e córregos. Manter parques e áreas verdes permeáveis nesses parcelamentos ajuda a reduzir os danos causados por inundações. Em cidades pouco sensíveis à água, os parcelamentos do solo maximizam o número de  lotes e não consideram as nascentes, para aumentar os ganhos econômicos. Na busca de lucros, ignoram-se  os prejuízos  ecológicos e hídricos. Pratica-se o desenho ganancioso, sem limites ou cuidados ecológicos.  

Nas cidades brasileiras e nas franjas entre as áreas urbanas e rurais pratica-se uma ocupação irregular em que governos fecham os olhos para práticas de invasores e ocupantes. Posteriormente as condutas passam a ser regularizadas em Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) e os proprietários oferecem algumas compensações, mas os danos ecológicos já foram causados. Os problemas decorrentes de má drenagem, alagamentos, inundações, se multiplicam.

O cuidado com a drenagem é um componente chave das cidades sensíveis à água. Aprender com a natureza os processos da drenagem natural pode inspirar soluções de planejamento que reduzam  os problemas de drenagem em áreas urbanizadas.


ÁGUA E USO DO SOLO


Na legislação brasileira o município não tem responsabilidades na gestão das águas, que cabem aos estados e ao governo federal. Isso, entretanto, não significa que o município esteja marginalizado de importantes decisões que interferem diretamente com o ciclo das águas.

Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro. 

São múltiplas as responsabilidades municipais na produção e na demanda de água: proteger mananciais de superfície e subterrâneos e áreas de preservação permanente, criar e manter parques urbanos, cuidar das lagoas urbanas, proteger áreas de recarga de  aquíferos, lidar com as inundações ribeirinhas, agravadas pelas ilhas de calor sobre as cidades, gerenciar o uso do solo de modo hidricamente responsável, evitar  os deslizamentos de encostas, prover o saneamento - o abastecimento, o esgotamento sanitário a gestão das águas usadas e seu tratamento, os resíduos sólidos, e drenagem e escoamento que evitem inundações; legislar para que as  edificações  e o paisagismo sejam hidroeficientes.

 


 

Figura: Fonte: (Tucci, 2003) in Avaliação Ambiental integrada de bacia Hidrográfica, de Carlos E.M. Tucci e Carlos André Mendes, 2006.


Em todas as bacias as águas dependem do que ocorre com o uso e a ocupação do solo. O que acontece no território da bacia hidrográfica tem repercussões diretas sobre o escoamento superficial e a drenagem, a percolação nos solos e a qualidade das águas superficiais e subterrâneas.  Em muitas cidades brasileiras, encostas íngremes e fundos de vales sujeitos a riscos foram ocupados, o que aumentou a vulnerabilidade das populações que aí vivem.

A Constituição Federal de 1988 dispõe que cuidar do uso e da ocupação do solo é  competência dos municípios, que atuam por meio de planos diretores, leis orgânicas municipais, leis de uso e ocupação do solo, leis de loteamento ou parcelamento, Estatuto da Cidade e normas urbanísticas. Também podem fazê-lo por meio da criação e implantação de parques e unidades de conservação. Devido a essas responsabilidades legais, as ações municipais incidem direta ou indiretamente na gestão das águas. A produção de água envolve o uso do solo rural, onde ela é produzida e o uso do solo urbano, onde é distribuída, flui, é usada e devolvida ao ambiente natural. 

No município se localiza uma multiplicidade de usuários, desde o consumidor doméstico até os usos industriais, minerários e a irrigação. Conflitos entre usuários podem ser evitados por meio da aplicação dos instrumentos de ordenamento territorial.

Por meio de autorizações e alvarás, os municípios aprovam os usos do solo em seu território. Com vontade política e competência técnica e jurídica, podem negar alvarás ou licenças para usos, parcelamentos ou loteamentos do solo que se encontrem desconformes com sua legislação. Autorizações ou licenças ambientais estaduais ou federais dependem da anuência municipal, por meio de declaração de que o empreendimento a ser licenciado não se localiza em desacordo com o uso e ocupação do solo municipal. 

A água é um elemento de convergência, catalisador, que pode orientar o ordenamento territorial.  São vários os casos de municípios que, por meio de seu planejamento de uso e ocupação do solo, construíram relações amigáveis com ela. Curitiba foi um exemplo pioneiro quando, ainda na década de 70, criou parques lineares nos fundos de vales, aproveitando de modo ecologicamente adequado essas partes de seu território.

Nos planos diretores, leis de uso e ocupação do solo e programas de expansão urbana é relevante prever áreas de recarga de aquíferos e de proteção de mananciais, além de estocar água no subsolo. Isso depende de um processo de ocupação do solo hidroconsciente. 

Produtores rurais resistem e se opõem a medidas de ordenamento territorial e de controle do uso e ocupação do solo que limitem a liberdade de usarem como lhes aprouver as suas propriedades. As leis de uso e ocupação do solo, os planos diretores municipais, os zoneamentos e macrozoneamentos, os ordenamentos territoriais são recebidos com frieza e até mesmo com hostilidade, pois significam uma perda de liberdade, ao introduzirem critérios de responsabilidade social e ecológica e limitações ao uso e ocupação do solo.  Caso essas limitações sejam neutralizadas ou compensadas com incentivos e estímulos econômicos, as resistências a elas são arrefecidas.

Não se pode obrigar o município a cumprir determinações de outras escalas de governo e de planos de recursos hídricos, mas é possível induzir comportamentos hidroconscientes. Incentivos econômicos, como os oferecidos pelo ICMS ecológico, (com a reforma tributária, substituido pelo IBS ecológico) induzem os municípios a serem ambientalmente responsáveis. Leis estaduais de ICMS ecológico estimularam municípios a introduzirem em suas prioridades a criação e a manutenção de unidades de conservação (Agenda Verde), bem como o licenciamento de aterros sanitários e usinas de lixo (Agenda Marrom). Incentivos similares podem ser oferecidos a municípios que disponham de plano de ordenamento territorial hidricamente conscientes, que considerem a gestão das águas superficiais e subterrâneas, a drenagem e a recarga de aquíferos (Agenda Azul).

A disposição para renunciar a liberdades a favor do bem comum é maior quando a noção de  auto interesse estreito  evolui para a noção de auto interesse ampliado. Aquilo que é de interesse comum pode aliar-se ao interesse particularista privado. Na medida em que uma população urbana toma consciência de que um manancial é relevante para sua segurança hídrica, ela passa a defender a proteção daquela bacia hidrográfica contra empreendimentos que beneficiam apenas os interesses particularistas mais imediatos.

Os macrozoneamentos de uso e ocupação do solo são instrumentos valiosos para proteger áreas de mananciais. O município, em seus planos diretores, tem responsabilidade nisso, pois ele é o gestor do uso e ocupação do solo. Um macrozoneamento e um plano diretor hidroconscientes são instrumentos valiosos para reduzir os riscos de desabastecimento no município e em cada um de seus distritos.


quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O SISTEMA DE GESTÃO DAS ÁGUAS INSERIDO EM SEU ORGANISMO

 



Há semelhanças entre o sistema circulatório do corpo humano e uma rede hidrográfica. Embora existam diferenças fundamentais entre o funcionamento de um sistema circulatório humano e uma rede hidrográfica, a analogia ajuda a visualizar a interconexão e o movimento fluido em sistemas complexos, fornecendo uma maneira simplificada de entender o fluxo e a dinâmica do líquido em diferentes contextos.

Essa analogia ilustra a relação entre o fluxo de sangue no corpo humano e o movimento da água em um sistema hidrográfico. Tanto o sistema circulatório como uma rede hidrográfica possuem uma estrutura de ramificação. Há uma hierarquia de vasos sanguíneos (artérias, veias, capilares) no corpo humano e uma hierarquia de rios, córregos e afluentes em uma bacia hidrográfica. Assim como o sangue circula pelo corpo humano, a água flui através de rios, córregos e afluentes em um sistema hidrográfico, seguindo uma direção específica, desde nascentes até a foz. Tanto no sistema circulatório quanto na rede hidrográfica, há um ciclo contínuo de movimento do líquido. No corpo humano, o sangue é bombeado pelo coração, viaja pelas artérias, capilares e veias, retornando ao coração. Na rede hidrográfica, a água evapora, forma nuvens, precipita, flui pelos rios, infiltra no solo e retorna aos corpos d'água. Os sistemas circulatório e hidrográfico possuem uma estrutura de vascularização que distribui e coleta o líquido (sangue ou água). No corpo humano, as artérias transportam o sangue rico em oxigênio para os tecidos, enquanto as veias coletam o sangue pobre em oxigênio de volta ao coração. Da mesma forma, a rede hidrográfica coleta água de nascentes e a direciona para rios e, eventualmente, para o oceano.

O organismo humano compõe-se de vários sistemas: o sistema nervoso central, o respiratório, o digestivo, o ósseo, o urinário, o reprodutor, cada um deles composto por seus respectivos órgãos e relacionado com os demais. Entre eles está o sistema circulatório, que se compõe de vários órgãos (o coração, as artérias, veias, capilares etc.)

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Descrição gerada automaticamente



Figura: Sistema circulatório humano. Fonte:  Wikipedia.



O sistema hídrico num território ou numa bacia hidrográfica é análogo ao sistema circulatório num organismo humano.  A rede hidrográfica se compõe de suas nascentes, riachos, ribeirões, rios e lagos. Uma diferença é que o sistema hídrico se compõe também de aquíferos e lençóis subterrâneos e da água na atmosfera

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Descrição gerada automaticamente

Fig.- O sistema hidrográfico brasileiro. Fonte: ANA







 


A saúde de um corpo humano pode ser avaliada a partir de informações do sistema circulatório. Um exame de sangue mede o nível de colesterol, de triglicérides, de ureia, de glicemia, de hemácias, entre outros indicadores. Os resultados do exame indicam onde e como se deve atuar para restaurar a saúde do organismo. 

Analogamente, a saúde ambiental de um território (um país, uma bacia hidrográfica, um município) pode ser avaliada a partir do sistema hídrico. O exame da qualidade da água de um rio ou de um lago, sua DBO (demanda bioquímica de oxigênio), nitrogênio, fósforo, turbidez, pH - permite aferir a saúde ambiental. 

Tão importante como conhecer a situação é ter a capacidade de atuar sobre a parte do organismo que origina o problema. 

 

No organismo humano com o sistema circulatório saudável, quando entope uma artéria e há um infarto, faz-se uma ponte de safena que ultrapassa o trecho entupido e o sistema continua a funcionar. Stents são colocados para garantir o fluxo do sangue numa veia que ameaça entupir.  Não há grande variação no volume de litros de sangue no corpo, exceto quando há hemorragias devido a ferimentos graves ou por outras causas. O sistema circulatório do corpo funciona integrado aos demais sistemas, como o digestivo, que processa os alimentos e abastece o sangue com eles; e com o sistema urinário, que processa os líquidos ingeridos e os expele para o ambiente externo.  Caso uma pessoa tome de uma só vez vários litros de água, isso não interfere no volume do sangue que corre em suas veias.

Já o sistema circulatório numa bacia hidrográfica sofre as influências diretas do volume de água que vem da atmosfera e que cai sobre ela. Ocorrem, então, enchentes e inundações ou secas e estiagens.

A medicina oriental, especialmente a chinesa e a ayurvédica, enxergam o corpo humano como um todo e não apenas como uma composição de sistemas e cuidam de sua saúde a partir dessa visão integral. Além disso realçam a relação existente entre o corpo, a mente, as emoções, a alma e o espírito, todos eles integrantes de um ser integral.  Do mesmo modo, no território, é preciso evoluir da visão focada apenas num dos sistemas - o de gestão dos recursos hídricos - para uma visão e prática focadas no organismo inteiro e nas relações entre os vários sistemas de gestão que o compõem. A articulação e integração com os demais sistemas de gestão que incidem sobre o território é um dos principais meios pelos quais se pode melhorar a situação das águas.  Para restaurar a saúde do território é necessário sair da zona de conforto do sistema de gestão de recursos hídricos e atuar fora dele. 

A água é o elemento central na estruturação de um território regional. É um elemento vital que deve ser considerado por urbanistas com compromissos sociais e por ruralistas com motivações econômicas. 

Diferentemente de segmentos da população, tais como movimentos sociais ou empreendedores econômicos, a água não conta com advogados ou lobistas que lhe deem voz e por isso muitas vezes é esquecida. Somente é lembrada quando se torna um problema, por escassez, má qualidade ou excesso.


SISTEMAS DE GESTÃO RELACIONADOS COM AS ÁGUAS


 Um corpo vivo é composto por diversos sistemas: o sistema nervoso central, o sistema respiratório, o sistema digestivo, o sistema circulatório, entre outros. Num organismo saudável tais sistemas interagem entre si, trocam informações, se auto regulam e preservam as condições de saúde. Num corpo doente essas relações harmônicas entre os sistemas se rompem e alguns órgãos passam a crescer descontroladamente, como nos cânceres de vários tipos, que podem matar o ser vivo.

As sociedades, como entes vivos, têm o seu corpo, que pode estar saudável ou doente. As águas são um indicador da saúde do ambiente. Uma análise da sua qualidade indica onde se encontram focos de doenças ou poluições que precisam ser combatidas e eliminadas. Como a informação, a água flui por entre sistemas, dentro de  organismos, sendo o principal deles Gaia, o nosso planeta vivo. 


No complexo mundo moderno procura-se organizar os órgãos e instituições em sistemas. 

Leis organizam os diversos sistemas que compõem o corpo social e espacial. Há um sistema de gerenciamento de recursos hídricos, um sistema de gestão ambiental, um sistema de saneamento, sistema de unidades de conservação, sistemas de abastecimento cultural entre outros. 

No Brasil, o Sistema Nacional de Meio Ambiente - Sisnama engloba os vários órgãos que participam da gestão ambiental nos três níveis de governo. Tal como concebido na lei da Política Nacional do Meio Ambiente, estrutura-se no âmbito federal, dos estados e municípios. Criaram-se conselhos de meio ambiente em cada um desses níveis: na escala nacional, em praticamente todos os estados e em centenas de municípios.

Para os recursos hídricos, criou-se o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos-Singreh, composto por órgãos com diversas funções; os conselhos de recursos hídricos nacional e nos estados, com participação do governo, da sociedade e dos usuários; os órgãos gestores de recursos hídricos, como a Agência Nacional de Águas e Saneamento básico - ANA e os órgãos estaduais; e os comitês de bacia, que constituem parlamentos, com suas secretarias executivas ou agências de bacia.

O sistema de gestão de recursos hídricos dispõe de instrumentos tais como a outorga, a cobrança, o enquadramento, os planos, o sistema de informações. Entretanto tal sistema e seus instrumentos são limitados para dar conta da multiplicidade de questões. Quando há falta de saneamento, uso inadequado do solo, aplicação de agrotóxicos na agricultura, lançamento de poluições industriais, rompimento de barragens de rejeitos de mineração, chuvas torrenciais com deslizamentos de encostas, enchentes, a ação preventiva ou corretiva precisa ser tomada pelo sistema de gestão correspondente, seja ele o de meio ambiente, de saneamento, de emergência climática ou outro sistema. 

As instituições e pessoas que lidam com a gestão ambiental e com a gestão de recursos hídricos vêm de vertentes com origens, culturas e histórias distintas. Na zona de mistura de conhecimentos, saberes, interesses e atitudes diversas há desde aqueles que se propõem a buscar convergências, integração e articulação, como aqueles que resistem a tal integração ou que não se empenham para que ela aconteça.

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O encontro das águas turvas do rio Solimões com as escuras do rio Negro produz uma zona de mistura que se prolonga por vários quilômetros, até que as duas vertentes se mesclem totalmente no rio Amazonas. 

O encontro da política de recursos hídricos com a política de meio ambiente é um fato recente e a zona de mistura entre esses dois sistemas precisa ser permanentemente trabalhada. O encontro da política e gestão das águas com a gestão ambiental recomenda hidratar a gestão ambiental e as demais políticas públicas e ecologizar a gestão das águas; aconselha articular a gestão das águas e o gerenciamento costeiro; promover a articulação entre os diversos sistemas e colegiados que tratam de temas com interfaces e que precisam ser trabalhados de forma integrada, destacando-se as políticas e os códigos legais setoriais. Recomenda aplicar alguns princípios orientadores  para a gestão:

  • O princípio da solidariedade

  • O princípio da subsidiariedade

  • O princípio protetor-recebedor

  • O princípio da precaução

  • O princípio da prevenção 

Na ausência de um propósito, meta ou objetivo comum, claro e bem formulado, cada sistema tende a atuar isoladamente, com pouco diálogo e interação. Exerce sua autonomia, por vezes compete com os demais ou os ignora. A articulação e coordenação entre os vários sistemas é um pré-requisito para manter a saúde do organismo. A disposição para o diálogo e a cooperação, a renúncia a graus de autonomia e liberdade em prol do todo ajudam a manter as condições de saúde do organismo vivo.