sexta-feira, 15 de julho de 2016

França, fratura e fraternidade




E eu não tenho pátria, tenho mátria. E quero frátria.
Caetano Veloso


Meu bisavô francês Luiz Andrés migrou de Estrasburgo para o Brasil no século XIX,  desgostoso com a guerra entre França e Alemanha, que disputavam aquela região europeia.
Deixou para trás seus irmãos e parentes e se estabeleceu em Juiz de Fora, MG, onde fundou um colégio e formou família. Minha avó Maria Luiza alfabetizou seus seis filhos numa fazenda no interior de Minas e ali eles aprenderam  a falar francês, uma caprichada caligrafia e hábitos alimentares tais como o de molhar o pão na sopa e tomar uma taça de vinho tinto no jantar. Meu pai Luiz Andrés formou-se e exerceu a medicina em Belo Horizonte. Na lista telefônica de Estrasburgo  há muitos Andrés - ou melhor, Andrès, segundo a peculiar acentuação francesa. Compartilho o DNA com meus primos que lá vivem.

O psicólogo transpessoal Pierre Weil também nasceu em Estrasburgo, de onde migrou para o Brasil durante a segunda guerra mundial devido à perseguição contra os judeus. Ele tinha visão mundialista e dedicou-se por muitos anos à cultura da paz. Aprendi com ele  sobre a ecologia do ser e os aspectos subjetivos da ecologia pessoal.

Estrasburgo é hoje a sede do Parlamento Europeu, onde se debatem as questões da integração supranacional e os desafios e tensões colocados pela composição diversificada da população europeia, que incorporou descendentes dos antigos povos colonizados da África, Ásia e América. E pelas ondas de migrantes de países em guerra e em crise climática, que buscam refúgio na Europa

A França encontra-se fraturada pela violência entre cidadãos franceses, que se matam em ataques a sinagogas, mesquitas, mercados; a empresas de comunicação (Charlie Hebdo), a bares (Bataclan) e a multidões nas ruas (Nice em 14 de julho). Como desarmar a bomba fratricida na França? Há futuro para uma visão fraterna e mundialista? Ou prevalecerá a violência entre irmãos?

As palavras ‘fratura’ e ‘fraternidade’ vêm do latim frater, que designa aquilo que se partiu de um todo, mas que compartilha uma mesma origem. Os princípios da Fraternidade, Liberdade e Igualdade, compõem o ideário da Revolução Francesa de 1789. Liberdade sem Fraternidade pode gerar escaladas de terror e de violência física, pessoal e social nas comunicações e na convivência. A aplicação do princípio da Fraternidade pode ser uma chave para deter essa espiral. Liberdade de expressão e de comunicação não-violenta combinam com Fraternidade entre os interlocutores. Há poder nas palavras e em outros tipos de comunicação e mensagens. A falta de sensibilidade para com as crenças, formas de vida e sentimentos do outro, de compaixão, de solidariedade, de empatia podem produzir atos de comunicação que ofendem e agridem. A comunicação não-violenta é essencial para reduzir a violência física, que, com homicídios e agressões, é a ponta do iceberg de uma violência mais geral, que se inicia nos pensamentos, nas palavras, nos gestos ou imagens. Na comunicação, cada mensagem verbal, escrita, desenhada ou falada é a ponta de um iceberg. Submersos e invisíveis, nelas se escondem interesses, crenças, desejos, sentimentos, pensamentos, emoções e preconceitos. Mensagens podem incitar ao ódio ou inspirar o amor e a convivência fraterna. Podem injuriar, difamar, ironizar, alfinetar e ferir, insinuar maldosamente. Nesse sentido, são armas para ofender, atacar, se defender de ataques adversários. Pode-se evitar a escalada na espiral de violência na comunicação falada, escrita, desenhada. Tais mensagens podem inspirar, promover virtudes, despertar sentimentos edificantes. O cuidado com as palavras e com a linguagem integra o esforço de aprimoramento da evolução humana. Gentileza, cortesia, cordialidade, empatia e compaixão são atitudes que podem desarmar escaladas de violência na comunicação. Podem contribuir para colocar em prática o principio da Fraternidade. Liberdade com Fraternidade, Igualdade com Fraternidade podem ser os objetivos a serem perseguidos para se interromper a espiral da violência.
O poeta mexicano Octavio Paz[1] explicita a importância de a Fraternidade ser combinada com a Igualdade e com a Liberdade: “Dadas as diferenças naturais entre os seres humanos, a igualdade é uma aspiração ética que não pode ser concretizada sem se recorrer ao despotismo ou a um ato de fraternidade. Minha liberdade fatalmente se confronta com a liberdade do outro e procura destruí-la. A única ponte capaz de reconciliar essas duas irmãs que continuamente se atacam de faca é uma ponte feita de braços interligados: a fraternidade.”
Que tal praticar em conjunto os três princípios? Chegou o tempo da Fraternidade ser combinada com a Liberdade e com a Igualdade. O princípio da Fraternidade abre caminho para recuperar a unidade da humanidade, sem desconhecer sua diversidade e caráter plural, dado pelas diferentes culturas regionais ou nacionais. A França fraturada é uma anfitriã que precisa acomodar  pessoas de diferentes origens,  com necessidades e hábitos diferentes, com empatia, compaixão e compreensão da unidade humana.

Mahatma Gandhi aplicou o princípio da não violência, ou ahimsa, quando da luta de libertação da Índia. A postura não violenta é pragmática e aumenta as chances de êxito dos menos truculentos ou menos armados. Pode significar o êxito da inteligência contra a força bruta. Por meio da violência, espalha-se o medo e se facilita a opressão.

Minha netinha Luiza tem em seu DNA a ancestralidade francesa. Ela é carioca e vive no Brasil, onde ocorrem mais de 50.000 assassinatos por ano. Oxalá o princípio da Fraternidade passe a ser mais aplicado e valorizado na França e no Brasil, reduzindo mortes fratricidas entre os franceses e entre os brasileiros. Que Luiza possa viver num ambiente menos conflagrado no Brasil e também na França, quando visitar seus primos em Estrasburgo.




[1] Octavio Paz, poeta mexicano, ex-embaixador na India. A referência é de artigo publicado no Estado de São Paulo, sem data.

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