Maurício Andrés Ribeiro
O Rio Whanganui foi reconhecido como pessoa pelo parlamento neozelandês |
Na Nova Zelândia houve uma
secular história de confronto entre duas cosmovisões: a dos povos nativos que
ali viviam e a dos colonizadores britânicos. Depois de muita luta, persistência e perseverança
o governo da Nova Zelândia celebrou um acordo com os Maoris que considerou o
rio Whanganui como pessoa, um ente vivo, com seus direitos próprios. Foi um
passo revolucionário, o primeiro rio no mundo a ganhar tal status. Ao
reconhecer o Rio com Poder Ancestral como uma pessoa legal com seus direitos
próprios, ele foi colocado em nova relação com os seres humanos.
Pelo acordo, duas pessoas
escolhidas pelo governo neozelandês e pelos Maoris atuam como a face humana do
rio, agindo em seu nome e guardiões de seus interesses. Elas administram um
fundo de $30 milhões de dólares dedicado a melhorar a saúde e bem estar do rio.
Esses dois indivíduos são apoiados por
um grupo de pessoas com interesses no rio para fazer avançar a saúde ambiental,
social, cultural, econômica e o bem estar do rio. Haverá uma forte vigilância
para evitar violações ao acordo.
Em agosto de 2014 uma
multidão se reuniu quando os líderes tribais assinaram um acordo com o governo
da Nova Zelândia reconhecendo legalmente o Whanganui como um ser vivo. Na
introdução desse acordo,
aprovado no parlamento em março de 2017, o Rio Whanganui é descrito como fonte
de vida, saúde e bem estar, um todo vivo que vem das montanhas até o mar, um
todo indivisível e vivo incorporando todos os seus elementos físicos e
metafísicos. Desculpas formais foram pedidas pelo governo da Coroa aos
indígenas por seu fracasso em reconhecer seus interesses. Um pagamento de 80
milhões foi feito para compensa-las pelas quebras em seus direitos em relação
com o rio.
No entendimento
maori, a relação entre as pessoas e a terra é baseada em parentesco,
consanguinidade e não em domínio. Os Maori pensam que o rio existe como uma entidade
única e indivisível. Na sua cosmologia a água são as lagrimas do pai, chorando
por sua esposa, a mãe terra. O sangue da terra é a água que traz vida. Seu
ritmo de vida é regido conforme o ciclo agrícola, o movimento dos peixes e de pessoas
rio acima e rio abaixo. O modo Maori de pensar sobre rios os considera como “as
veias da terra” que traz saúde, vida, prosperidade, bem estar para plantas,
animais, e pessoas. A tradição Maori diz que “Eu sou o rio, o rio sou eu.” (nesse sentido ela é idêntica à de J.Krishnamurti,
que disse “O ambiente é o que somos em nós mesmos. Nós e o
ambiente não somos dois processos diferentes; nós somos o ambiente e o ambiente somos nós.” E também
corresponde à visão de Pierre Weil sobre a fantasia da
separatividade.)
Essa cosmovisão de unidade
do ser humano com a natureza gerou consequências práticas, jurídicas, legais e de
gestão.
Durante séculos os
colonizadores britânicos menosprezavam essas visões, impunham injustas vendas
de terras para os europeus e confiscavam territórios ancestrais dos Maoris. No
século XIX os povos indígenas eram vistos como parte das coisas vivas que movem
na terra, para serem governadas pelos cristãos civilizados. A expansão colonial
era entendida como virtude e esse domínio sobre a terra era visto como um
progresso. Ao acreditarem que os peixes, pássaros, florestas e rios foram
criados para o uso humano, os colonizadores subjugaram a natureza selvagem,
queimaram florestas, drenaram várzeas, poluíram os rios. Os colonos não
consideravam conveniente respeitar as
convenções e os direitos dos Maoris.
Os Maoris levavam aos
tribunais o significado temporal e espiritual do rio, essencial para sua
identidade, cultura e bem-estar. O rio era visto como uma entidade viva com sua
propria personalidade e força de vida, e como um todo indivisível, não algo
para ser analisado pelas partes constituintes de agua, leito e margens. Houve
debates jurídicos acalorados sobre a propriedade ou o usufruto da agua. Os Maoris
lutaram contra as agressões e reclamaram nos tribunais sobre as poluições dos
rios, sua drenagem e canalização bem como sobre o fracasso do governo em
proteger seus direitos de usar e desfrutar de rios ancestrais. Por gerações, o
povo de Whanganui protestou contra a destruição que sofriam com a introdução de
outras espécies de peixes, a extração de cascalho, os desvios no leito do rio
para produzir energia elétrica. Eles registravam sua tristeza com a situação, o
rio estagnado e morrendo. “ Eu sou o rio, o rio sou eu. Se eu sou o rio e o rio
sou eu – então empaticamente eu estou morrendo.” Práticas ancestrais foram
ignoradas contra a sua vontade, seu desfrute dos rios foi prejudicado; falharam
os apelos à lei para protege-los contra tais prejuízos e danos. Nos tribunais eles
tentaram proteger sua relação com os rios ancestrais com petições, apelos, ação
legal. Tais lutas nos tribunais se estenderam por mais de um século .
Por muito tempo não escutava se a raiva expressa pelo povo e o
dano a sua vida causada pela degradação do rio e não tocava nos deveres legais
da Coroa de proteger usuários do rio contra danos. A decisão do parlamento
neozelandês de março de 2017 foi resultado dessa longa luta de um povo indígena
para defender sua cosmovisão e suas práticas ns relações com a água, diante de
outra cosmovisão poderosa.
A resiliência demonstrada
pelos Maoris e os resultados de sua perseverança podem inspirar outros povos em
aprimorar sua relação com a água.
[1]
Texto baseado no artigo “Veias da Terra- Direitos, responsabilidades e a
governança dos rios na Nova Zelândia”, de Anne Salmond, publicado em março de
2017.
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