terça-feira, 3 de outubro de 2017

Todos os rios são especiais


Maurício Andrés Ribeiro
 


Num planeta sem os seres humanos todas as águas estavam em seu estado natural. Algumas tinham altos teores de minerais diluídos ou dissolvidos, em função de sua origem e dos terrenos que atravessavam.

No Brasil pré-cabralino a população humana era pequena e não causava maiores danos aos rios. “Águas são muitas, infindas”, escreveu Pero Vaz de Caminha. Águas eram muitas, tinham qualidade especial e eram de primeira classe. Entretanto, como se verifica 500 anos depois da Carta de Caminha, não são infindas.

Ao serem poluídos e contaminados com os resíduos e efluentes das atividades humanas, muitos rios e águas subterrâneas perderam essa condição especial.

Restaurar a qualidade original pode ser o objetivo de um pacto pelas águas, com a meta de alcançar com que todos os ribeirões, rios e lagos, voltem a seu estado natural. Talvez essa meta seja utópica, mas não faz mal colocá-la como um ideal a ser buscado no horizonte.

Cada uso da água tem certas exigências de qualidade: a água destinada ao consumo humano sem tratamento deve ser pura o suficiente para não provocar doenças e ter uma classe especial. Já as águas destinadas para o esgotamento de resíduos, por exemplo, não precisam ter boa qualidade.

O sistema de classificação de corpos d’água definido na resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente n.357 de 2005 as classifica segundo a qualidade requerida para seus usos preponderantes.

 Rios ou trechos de rios podem ser enquadrados como de classe especial, de primeira, segunda, terceira e quarta classes.

Essa classificação é semelhante àquela que classifica os hotéis com estrelas: seis ou cinco estrelas, quatro, três, duas ou uma estrela, em função de seu padrão de qualidade. Em geral os hotéis de cinco estrelas são mais caros do que aqueles com menor classificação.

Do mesmo modo, para se alcançar a meta dos rios serem de primeira classe ou classe especial, podem ser necessários investimentos em saneamento e despoluição.   Nos casos em que esses rios já se encontram naturalmente na condição especial, basta o controle ambiental, evitando que se localizem nas suas bacias hidrográficas atividades que poluam as águas superficiais ou subterrâneas. O licenciamento ambiental e a outorga de direito de uso das águas são dois instrumentos valiosos para tal controle.

Ao se tomar cuidados preventivos para que eles não sejam poluídos, evita-se que no futuro seja necessário investir em obras para limpá-los. Prevenir para que não sejam sujos é uma medida com alto valor econômico, pois protege esse patrimônio valioso e evita gastos com despoluição.

Um passo na caminhada no rumo de que os rios voltem a ser especiais é alterar a norma ambiental concebida e aprovada no passado, quando ainda não se colocavam com clareza as questões de segurança hídrica, a crise hídrica e as mudanças no clima que a agravam. Essa norma considera como de segunda classe as águas doces que não tenham sido enquadradas, ou seja, que não tenham um objetivo de qualidade a ser alcançado através de metas progressivas aprovado por um conselho de recursos hídricos. Uma consequência dessa norma ainda vigente tal como foi então concebida, é que mesmo aqueles corpos d’água que hoje apresentem uma qualidade especial ou sejam de primeira classe estão vulneráveis a serem poluídos por atividades que venham a ser instaladas em suas bacias hidrográficas.  A boa qualidade de suas águas não é valorizada como um patrimônio a ser protegido.

Mudar esse dispositivo, considerando que os rios não enquadrados deixem de ser de segunda classe e sejam valorizados como rios de primeira classe é uma medida que pode contribuir para protege-los, pois, os licenciamentos ambientais, as outorgas de direito de uso das águas e outras ações de gestão precisam levar em consideração as metas de qualidade.

Combinada com recursos para promover a sua restauração e a recomposição ambiental em suas bacias, essa pode ser uma medida valiosa para proteger a qualidade das águas e para reduzir os custos para tratar a água que se usa para abastecimento humano e urbano.

No contexto das crises hídricas que tendem a se tornar cada vez mais severas à medida que as mudanças no clima avancem, é vital proteger cada gota d’água de boa qualidade. Esse é um patrimônio que merece ser valorizado. Enquadrá-lo como de primeira classe é um pequeno, mas importante passo para protege-lo, preventivamente. Talvez medidas como essa contribuam para que, um dia, todos os rios voltem a ser especiais.

 

 

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