terça-feira, 12 de março de 2019

Viver em harmonia com a água, uma lição japonesa


Maurício Andrés Ribeiro 

É inspirador observar o relacionamento harmônico com a água de modo integrado com o uso do solo e as florestas no Japão.[1] Cercado de mares e muito rico em fontes de água, originárias dos Alpes japoneses, suas montanhas ocupam 70% da superfície e constituem a espinha dorsal do arquipélago. Elas têm ocupação humana rarefeita em contraste com os vales em que há cidades muito densamente ocupadas.
As densidades populacionais e de ocupação do solo são muito altas nas metrópoles japonesas e no país. Com área total de 372 mil Km2 (equivalente à área do Estado do Rio Grande do Sul) e com 126 milhões de habitantes, a densidade média da população é de 337 habitantes por Km2., ou seja, cerca de 15 vezes maior do que a média brasileira.  
Os Alpes japoneses são, em sua maior parte, ocupados por florestas, que servem para a proteção dos solos e o controle da erosão. Ainda que a maior parte das florestas seja de propriedade privada, sua exploração e a comercialização do produto são usualmente feitos por meio de associações florestais. Sendo o país de clima temperado, a vegetação demora 80 anos para ser explorável e, desta forma, as florestas são consideradas como poupança, mais do que como investimento com retorno em curto prazo.
Apesar da altíssima densidade populacional, os fundos de vales em cidades japonesas são mantidos não edificados. Preservam-se os fundos de vale não edificados nas cidades, com canais abertos e parques lineares, que são inundados com as chuvas. Quando as águas se vão, não deixam danos econômicos ou sociais. A água é integrada no paisagismo e no urbanismo de modo harmônico e leva em consideração questões econômicas e de segurança em casos de inundações.
 
 
 

O uso da terra urbana e rural está sujeito a regras elaboradas. Um perfil típico é a ocupação urbana das faixas de interseção entre as montanhas e os vales. As montanhas são usadas para florestamento e preservação ecológica, além do uso econômico e os vales, usados para a agricultura intensiva que, em muitos casos, aproveita os espaços vazios nas periferias urbanas, onde os terrenos não construídos são raramente ociosos. Hortas, pomares e plantações diversificadas ocupam essas valiosas faixas, contribuindo para o abastecimento alimentar. No Japão, programas intensos de florestamento de encostas, de criação de cooperativas florestais e de proteção à cobertura vegetal reduziram as inundações nas planícies e os prejuízos à economia agrícola.
Mas isso nem sempre foi assim e as práticas de convivência harmônica com a água resultaram do aprendizado social sobre os riscos e os custos da ocupação inadequada dos vales. No passado houve desflorestamento das montanhas, erosão e assoreamento nos vales, perdas agrícolas, fome e problemas sociais.  O exemplo seguinte é elucidativo: no início do século XX o Japão sofria sérios problemas de enchentes originadas em suas montanhas, que haviam sido desflorestadas. As planícies com plantações de arroz eram frequentemente inundadas por enchentes que causavam prejuízos, perda da produção agrícola e fome. O país, que então se abria para o mundo, buscou no exterior apoio de quem conhecia bem as inundações: contatou os holandeses, que sabiam conter o mar com diques e evitar que as terras baixas fossem inundadas. Os holandeses estudaram o problema das enchentes japonesas e propuseram ações baseadas em sua experiência. Não tiveram sucesso. Os japoneses resolveram, então, buscar sua própria solução para o problema. No plano decenal de 1884, que fixou as linhas para a entrada do Japão no período moderno de sua história, advogava-se a importância de melhorias contínuas nas tecnologias tradicionais disponíveis no país. Assim, observaram que numa das ilhas os problemas de enchentes eram menores que no restante do país. Ali se protegiam as montanhas com florestas e o uso da lenha não gerara muito desmatamento. Disseminaram em todo o país aquelas práticas tradicionais. Programas intensos de proteção de encostas reduziram as inundações. Cooperativas florestais foram criadas para administrar as florestas e manejá-las de forma sustentável, usando a madeira para mobiliário e construção civil. O florestamento dos Alpes japoneses foi estratégico para conter sedimentos e erosões. As medidas de prevenção e controle evoluíram e compreendem a manutenção integral da cobertura de florestas nas áreas montanhosas, a construção de represas para conter a terra que escorre das montanhas junto com a água de chuva e a proteção de encostas por meio de redes metálicas ou de plástico, que previnem os deslizamentos de terra. Quando os japoneses aprenderam a cuidar melhor de suas montanhas e florestas, evitaram o desmate descontrolado, reduziram a erosão e as perdas agrícolas.
Fundo de vale não ocupado em cidade japonesa reduz prejuízos com enchentes.
Foto: Maurício Andrés
Hoje, o Japão ensina a aproximação com a água, voltando-se de frente para os lagos, rios e regatos. As cidades procuram ter intimidade com a água, evitando que córregos sejam aprisionados em canais fechados. Promove-se a reintegração urbana da paisagem ribeirinha e dos seus animais, como rãs e libélulas. Evita-se asfaltar as vias, para não agravar problemas de drenagem e provocar inundações. Evita-se que a água de chuva escorra diretamente para os rios; ela infiltra lentamente no solo. Represas de armazenagem e regularização da drenagem são previstas nos parcelamentos urbanos. Adotam-se sistemas de armazenagem da água de chuva em tanques subterrâneos. Age-se preventivamente na organização humana do espaço e na ocupação do solo.
 O Japão ensina que pode ser simples a solução para se prevenir inundações e para se articular a gestão da água com o uso e ocupação do solo. Ensina que a aprendizagem coletiva de convivência harmônica com a água é um processo civilizatório e cultural em que se aprende a partir dos erros cometidos, em aproximações sucessivas.
O Japão mostra que a aprendizagem coletiva é um processo cultural.
Os japoneses aprenderam com a dor, com o sofrimento e com os prejuízos econômicos provocados por terremotos e inundações, a atuar preventivamente e com prudência ecológica no seu ordenamento territorial. O exemplo japonês mostra uma sociedade que aprendeu a dar respostas adequadas aos problemas de injustiças sociais e de segurança ecológica e ambiental. O Brasil tem muito a aprender com a experiência japonesa nesse campo.

 




[1] O Japão é estudado no livro Colapso, de Jared Diamond, como um exemplo positivo de civilização que aprendeu a se relacionar de modo mais amigável com o ambiente e a água.


A água está sempre presente no paisagismo japonês

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