segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Carnivorismo e devastação florestal [1]

Maurício Andrés Ribeiro
Enquanto escrevo, as TVs e os jornais dão destaque para notícias sobre as queimadas florestais. Há muita controvérsia e narrativas contraditórias. Vejo nas redes sociais as convocações para manifestações pela Amazônia em diversas cidades do Brasil e no mundo.
Sei que mais importante do que redigir e divulgar essas palavras e ideias, da boca para fora, são as ações efetivas que posso realizar da boca para dentro. Depois de escrever este texto, o que melhor posso realizar em favor das florestas é prestar atenção ao que vou comer nas próximas refeições e escolher conscientemente meus alimentos.
Nas origens das queimadas e do desmatamento está a pressão econômica da agricultura e pecuária. No Brasil, a pressão sobre as florestas e o desmatamento decorrem do plantio de soja e da pecuária para exportar carne ou abastecer o mercado interno. Desmata-se, queima-se, prepara-se a terra para   o plantio ou para o capim das pastagens, produz-se soja ou cria-se gado, exporta-se grãos que se destinam a alimentar animais.
Grande parte da terra utilizada no Brasil destina-se à pecuária extensiva. Outra parcela substancial destina-se ao cultivo de produtos para alimentar os animais: assim, por exemplo, o milho é, de longe, a cultura com maior área ocupada, e sua maior parte destina-se à alimentação animal. Também a soja é cultura que ocupa grande área: ela é, em sua maior parte, exportada para alimentar animais em outros países, que por sua vez acabam na boca dos carnivoristas.
O carnivorismo se espalha pelo mundo de modo diferenciado. No Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Austrália, nos EUA e no Canadá come-se mais de 30 kg per capita de carne bovina por ano. À medida que aumenta a renda média,  tende a aumentar o consumo per capita de carne, o que é estimulado por campanhas de propaganda do carnivorismo nas TVs, nos jornais, em revistas e na internet. 


Figura 1- Consumo per capita de carne bovina por ano. ONU-FAO. Dados de 2013.

Cadeias alimentares são as transferências de energia alimentar desde os produtores básicos – as plantas –, para os animais herbívoros – consumidores primários –, até os animais carnívoros que se alimentam dos herbívoros ou de outros carnívoros. A cada degrau que se sobe na cadeia  trófica, há perdas de energia. As plantas absorvem e metabolizam cerca de 1% da energia solar que sobre elas incidem. Os animais  herbívoros aproveitam cerca de 10% da energia contida nos vegetais.  Os animais carnívoros ou os seres humanos que se alimentam de carne  de animais aproveitam apenas 10% da energia que eles absorveram dos vegetais.
O homem está entre as espécies que absorvem energia de vários elos da cadeia alimentar e tem uma diversidade de dietas alimentares, em função do ambiente em que vivem de seus hábitos culturais, de seus valores  espirituais ou religiosos. Há seres humanos onívoros, carnívoros, frutívoros, vegetarianos, veganos etc. e uma combinação deles.

Figura 2-  A cada degrau  que  se sobe na cadeia alimentar, há perdas de energia.

A  demanda por alimentos que se encontram no alto da cadeia alimentar – constituídos pelos produtos de origem animal – consome grande quantidade de terra, água, recursos naturais e defensivos agrícolas; motiva os fazendeiros a expandir as áreas destinadas a pastagens, provoca a destruição de florestas e perdas de solo fértil. Uma dieta alimentar baseada em proteínas animais tem elevado custo ecológico e pressiona o uso da terra, se comparada com dietas baseadas em grãos, hortaliças e proteínas de origem vegetal.
 Dietas alimentares baseadas em proteína vegetal, nas quais o homem atua como consumidor primário, são poupadoras de água, do espaço e do meio ambiente. Permitem atender às necessidades de alimentos de maior número de pessoas, a partir da utilização de menor área cultivada, exercendo, dessa forma, menor pressão para a expansão da área cultivada e a eliminação das florestas.
Hábitos alimentares de baixo consumo de proteína animal podem facilitar o acesso da população humana  a alimentos e ao mesmo tempo não pressionarem excessivamente a capacidade de suporte do planeta. Superar o carnivorismo é um passo  em direção à sustentabilidade no planeta. A mega crise da evolução atual, da qual as mudanças climáticas são um dos aspectos, clama por evolução da consciência humana que induza a mudanças de hábitos tão básicos e elementares como o de se alimentar.
O hábito alimentar é um campo em que cada um pode experimentar, individualmente, reduzir seu impacto sobre o ambiente ou a emissão de gases de efeito estufa. Ações e atitudes nesse campo são autônomas, não dependem de acordos internacionais ou de políticas governamentais.
O hábito alimentar é culturalmente condicionado e reflete o estágio de consciência de cada pessoa. Algumas sociedades tiveram a lucidez e a força de vontade de desenhar suas dietas alimentares de modo a não romper a capacidade de suporte do seu território e reduzir os riscos de colapso.  A Índia é uma das mais conhecidas, com o vegetarianismo e a sacralização dos animais, que lhe proporcionaram sustentar-se por milênios com baixa pegada ecológica.
Diferentemente dos europeus e outras sociedades carnivoristas, a Índia nunca precisou colonizar outros países para deles extrair os recursos que sustentassem seu modo de vida. O vegetarianismo – um dos aspectos materiais do espiritualismo indiano – baseia-se no princípio do ahimsa, ou não violência, que se estende também aos animais. Adotado há milênios por razões éticas e ecológicas, o vegetarianismo indiano foi um dos fatores que ajudaram a preservar a biodiversidade na Índia. A tradição religiosa contribuiu para sustentar tal hábito, ao sacralizar espécies animais e vegetais. O vegetarianismo indiano é uma fonte antiga de inspiração devido ao seu impacto reduzido sobre os recursos naturais, uso da terra e da água.
Jared Diamond (Colapso, 2005, p. 356) relata o caso da ilha de Tikopia, no Pacífico Sul, com 4,7km2 e densidade de 309 pessoas por quilômetro quadrado, continuamente habitada há quase três mil anos. Uma das estratégias para garantir a capacidade de sustentação do ambiente na ilha foi a mudança de hábitos alimentares, eliminando aqueles que implicam competição pelo uso da terra: “Uma decisão significativa tomada conscientemente por volta de 1.600 d.C., e registrada pela tradição oral, mas também atestada arqueologicamente, foi a matança de todos os porcos da ilha, substituídos como fonte de proteína pelo aumento do consumo de peixe, moluscos e tartarugas.”
Tikopia e a Índia são exemplos de sociedades que reduziram o carnivorismo ao constatarem os benefícios sociais que essas mudanças de hábitos alimentares trariam.
Aquilo que a Índia estruturou há milênios e o que os ilhéus de Tikopia decidiram há algumas centenas de anos pode ser uma decisão sábia de ser adotada globalmente no contexto das mudanças climáticas e da atual crise da evolução. Uma das vozes que defende esse caminho é Lovelock (Gaia-Alerta final, pg. 80) que observa  “Nossos líderes, se fossem todos excelentes e poderosos poderiam proibir a manutenção de animais de estimação e gado, tornar compulsória a dieta vegetariana e incentivar um grande programa de síntese de alimentos por indústrias químicas e bioquímicas; fazer isso apenas restringirá a perda de vida a animais de estimação e gado. É alentador que o presidente do IPCC, Dr. Pachauri, tenha recomendado uma dieta vegetariana como um caminho a seguir.”
Atualmente crescem a consciência e os alertas sobre esse tema. O professor E. O. Wilson, de Harvard,  em seu livro “O Futuro da vida” expressa as vantagens de renunciar ao consumo de carne: "Se todos aceitassem uma dieta vegetariana, o atual 1,4 bilhão de hectares de terras aráveis seria suficiente para produzir alimentos para 10 bilhões de pessoas." O vegetarianismo poupa espaço, recursos naturais e o meio ambiente, conseguindo, com baixo uso de recursos naturais, um alto rendimento energético alimentar.
Os consumidores podem ajudar a evitar queimadas  e proteger a Amazônia, alterando seus hábitos alimentares. Há alguns sinais de que isso está acontecendo com os consumidores brasileiros. Recentemente, empresas de alimentos começaram a propaganda de burguers vegetais com grandes anúncios de página inteira nos jornais. Eles detectaram esse mercado crescente e querem ter sua participação nisso.


Figura 3- Propagandas de empresas concorrentes que oferecem burguer vegetal em grandes jornais brasileiros. Agosto de 2019. 

Para o Brasil ser sustentável e proteger seus ecossistemas é fundamental caminhar em direção a mudanças globais e locais  nos padrões de consumo alimentar.
É estratégico para o Brasil que o padrão de demanda dos consumidores seja cada vez mais consciente e responsável exigindo  que a produção também seja feita  de forma sustentável.
Um indivíduo que evolua de um para outro estágio de consciência e que adote hábitos no sentido de reduzir ou abolir seu consumo de carne faz pouca diferença no cômputo global. Mas quando tal mudança ocorre em toda uma cultura e sociedade, com milhões ou bilhões de pessoas, o benefício ecológico e climático pode ser significativo. Quanto mais pessoas se transportarem de um estágio ecoalienado para um estágio mais avançado de consciência e adequarem a ele seus hábitos alimentares, mais se poderá reduzir os impactos negativos associados a esse consumo: o sofrimento animal, as doenças humanas e os danos  causados pelas emergências climáticas e ambientais.
Quando  e se europeus, chineses, árabes e  demais carnivoristas derem adeus a esse hábito,  estarão dando sua parcela de contribuição para a proteção das florestas tropicais e para reduzir queimadas e desmatamentos.

 

 



[1] Publicado originalmente em O Teosofista. Ano XIII -Número 148 – Edição de Setembro de 2019

Nenhum comentário: