domingo, 14 de maio de 2023

Histórias emendadas

 O imponente complexo de edifícios públicos, palácios, monumentos e templos foi planejado e construído, num curto período de tempo, para ser a capital e a sede do governo. Esse conjunto, de onde se aprecia um céu esplendoroso e um belo pôr do sol, tornou-se patrimônio arquitetônico da humanidade, protegido pela UNESCO.

Essa descrição, que poderia se aplicar a Brasília, refere-se a Fatehpur Sikri. A cidade funcionou como capital durante apenas 10 anos. Foi abandonada  devido à falta de água para abastecê-la. É uma cidade fantasma, local de visitação turística e pesquisa arqueológica, construída na Índia para ser a capital do império mogul pelo imperador Akbar, entre 1571 e 1585.  

 

Foto de Fatehpur Sikri, Índia.

 Foto: Maurício Andrés

Esse episódio traz lições para o século XXI. A falta de planejamento hídrico pode inviabilizar cidades, regiões ou países. As limitações no abastecimento de água vem se tornando fator de restrição ao crescimento demográfico em muitas regiões do planeta, incluído o planalto central brasileiro.

Em função do conhecimento das restrições hídricas, podem ser estipulados os limites máximos de população e de atividades humanas. A capacidade de suporte do ambiente é um limite a partir do qual geram-se os estresses hídricos, ambientais e a insustentabilidade.

Novas cidades, bairros, condomínios ou assentamentos precisam ser hidroconscientes desde o momento da concepção do projeto e durante cada etapa de sua implementação. A geração de conhecimentos específicos sobre o local em que serão implantados, por meio de pesquisas e levantamentos técnicos, é pré-requisito para se elaborar projetos e normas urbanísticas conscientes e responsáveis, invertendo o processo, ecológica e hidricamente temerário,  pelo qual primeiro se executa um empreendimento  para depois constatar seus problemas e definir como resolvê-los.

Para que um assentamento perdure ao longo do tempo, é necessário estimar o volume máximo que os aqüíferos locais podem produzir, para abastecer de água  o local.

É preciso definir como será a gestão das águas usadas e seu tratamento, bem como as questões de drenagem, escoamento de águas superficiais e recarga de águas subterrâneas. Essa avaliação estratégica prévia pode garantir a sustentabilidade dos assentamentos, ao mesmo tempo em que reduz os riscos de impactos negativos sobre as vizinhanças. Na região do planalto central, o controle do desenvolvimento urbano precisa cada vez mais levar em consideração esses limites. Isso se aplica, especialmente, ao entorno da Estação Ecológica de Águas Emendadas para que ela não seja prejudicada. 

Há mais de 500 anos, com o tratado de Tordesilhas, de 1494,  Portugal e Espanha  procuraram definir um limite para suas rivalidades em relação a domínios territoriais. Portugal deveria se limitar às terras situadas até 370 léguas de Açores e Cabo Verde e a Espanha colonizaria as terras além dessa linha.

Nos mapas antigos,  a linha de Tordesilhas era desenhada praticamente em cima da linha percorrida pelas águas que nascem nas águas emendadas do planalto central brasileiro e rumam para o norte e para o sul.

 Posteriormente, o avanço da cartografia elaborou mapas mais precisos nos quais se observa que o fluxo das águas que nascem na Estação Ecológica de Águas Emendadas percorre uma linha aproximada à do meridiano de Tordesilhas.



 Nas normas brasileiras, há pouca menção às nascentes. Uma resolução do CONAMA define que nascente ou olho d’água é o local onde aflora naturalmente, mesmo que de forma intermitente, a água subterrânea. A proteção das nascentes articula, portanto, o gerenciamento de recursos hídricos superficiais e subterrâneos, já que elas são os pontos de afloramento que trazem à luz as águas subterrâneas.  Isso implica a proteção das áreas de recarga de aqüíferos, e não somente de faixas superficiais de proteção de vegetação no entorno de nascentes e em faixas ao longo dos corpos d’água, conforme dispõe o código florestal e as normas sobre áreas de preservação permanente.

Águas emendadas é uma metáfora que representa um fenômeno maior. A água é o principal elemento de unificação da geografia planetária, pois se precipita na atmosfera, infiltra no solo, armazena na litosfera, ressurge e dá vida à biosfera, circula na hidrosfera da superfície do planeta nos rios, lagos e mares; e em função da temperatura, transforma-se em elemento sólido, líquido ou gasoso. No seu ciclo, todas as águas são emendadas: precipitação, escoamento, infiltração, evaporação e transpiração constituem fenômenos que integram o ciclo das águas, no qual os humanos interferem  com a construção de barragens, a poluição, o bombeamento, a erosão e compactação dos solos, o desmatamento.

A gestão integral do ciclo das águas supõe articular e integrar ações, entre as várias unidades da federação que compartilham as águas superficiais ou subterrâneas; externamente, supõe integrar ações com os vizinhos com quem compartilhamos esse importante recurso ambiental.

 A gestão das águas envolve historicamente a necessidade de lidar com disputas e rivalidades. Do mesmo modo como a fronteira brasileira extrapolou os limites de Tordesilhas, as águas emendadas extrapolam fronteiras estaduais e nacionais. Dependendo do modo como sejam concebidas e geridas, podem tornar-se fatores de disputas e conflitos ou de integração e de articulação transfronteiriça.

 

(*) Texto publicado no livro Aguas Emendadas, org. por Fernando Oliveira Fonseca, Brasilia, 2008.

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