sexta-feira, 26 de abril de 2019

Sri Aurobindo e visões contemporâneas sobre a espiritualidade

Maurício Andrés Ribeiro

Nessa grande transição e mudança de eras em que nos encontramos, nesse estágio terminal da era cenozoica, a era dos mamíferos, vários pensadores propõem designações para qual será a próxima era. Entre eles, destaca-se Sri Aurobindo  que falou do advento de uma era subjetiva e de uma era espiritual, movida por indivíduos e que se dissemina na coletividade: “A vinda da era espiritual deve ser precedida pelo aparecimento de um número crescente de indivíduos que não estão mais satisfeitos com a existência intelectual, vital e física do homem, mas percebem que uma evolução maior é a verdadeira meta da humanidade e tentam efetuá-la em si mesmos, guiar outros para ela e fazer dela o objetivo reconhecido da espécie.”   Ele falava da crise da evolução e do ser humano como um ser em transição: “« Uma evolução espiritual, uma evolução da consciência na Matéria, cuja autoformação está constantemente em desenvolvimento até a forma revelar o espírito que a habita, é então a chave, o motivo central e significativo da existência terrena”.
Sobre a importância  do espírito ele observa que  “O destino da raça nesta era de crises e revolução dependerá muito mais do espírito que somos do que da maquinaria que usaremos.” E que “Quando se perde a espiritualidade, perde-se tudo.”
Sri Aurobindo escreveu bastante sobre esse tema. Ainda que ele não se refira em nenhum momento de sua obra às questões ecológicas, seu pensamento foi ecologicamente pioneiro pois, dezenas de anos depois de seus escritos, emergem visões contemporâneas em estreita afinidade com eles  nas artes, na filosofia, e em campos emergentes das ciências tais como  na ecologia espiritual, na ecologia integral, na ecologia transpessoal, na ecologia cósmica, na espiritualidade integral, na inteligência espiritual. Essas ainda não são visões dominantes no mundo atual, mas são como sementes que germinam aqui e ali e que podem vir a ocupar o lugar das visões hegemônicas que ainda hoje prevalecem.
Para Sri Aurobindo,“O primeiro e mais baixo uso da Arte é puramente estético; o segundo é intelectual ou educativo; o terceiro e mais alto é espiritual.” Nas artes plásticas destaca-se a visão e a prática da ate abstrata que buscava a essência para além das aparências,  de Kandinsky, que escreveu o livro " Do espiritual na arte"  e da vanguarda russa.


Sri Aurobindo escreveu que “O principal uso da ciência e da tecnologia é fazer mais forte a base material, mais completa e efetiva, para a manifestação do Espírito.” Nas ciências, o físico brasileiro Marcelo Gleiser ganhou  em 2019 o Prêmio Templeton, o Nobel da Espiritualidade.
Miguel Grinberg, educador e escritor do livro Somos la gente que estábamos esperando, diz que  a ecologia espiritual procura um nexo entre a civilização ecológica em construção e as questões espirituais; constitui uma ferramenta para indagar sobre os potenciais latentes de uma pessoa, em harmonia com sua vocação natural de paz e o papel que pode desempenhar numa sociedade em que as calamidades não predominem, destrutivamente, e na qual se perceba que o desenvolvimento metafísico é essencial para resolver os problemas do mundo material; considera a experiência humana na Terra como uma epopeia de evolução consciente e de consciência planetária. E recupera a visão de que o ser humano é dotado de uma consciência cósmica. Jorge Moreira, do Porto, mantém um grupo sobre Ecologia Espiritual no facebook.
Warwick Fox, é o principal autor da Ecologia transpessoal que  discute a visão de mundo da Ecologia profunda no contexto da eco filosofia e do antropocentrismo; explora a conexão entre a Natureza e o Sagrado e a maneira como experiências transpessoais na natureza expandem o humano; explora como a espiritualidade se relaciona com a crise ecológica global; usa o termo movimento ecológico ecocêntrico, que inclui os praticantes da ecologia profunda, os que adotam abordagem não antropocêntrica e  que se estende além  de um sentido egóico, biográfico ou pessoal do eu.
A ecologia cósmica expande a escala de tempo e de espaço. Assim o fazendo, ela se aproxima de visões de mundo de antigas tradições espirituais, ajuda a resgatar a dimensão ética e a ressacralizar a natureza. A dimensão cósmica abre a sensibilidade para a transcendência.
Na atual crise evolutiva, é fundamental a inteligência espiritual, (ver Zohar; Marshall, 2000). que traz a habilidade para lidar com impasses e crises, para aprender e resolver problemas novos. A resposta à atual crise demanda elevado grau de autoconhecimento, independência para seguir as próprias ideias, flexibilidade, relutância em causar danos aos outros, capacidade de enfrentar a dor e de aprender com o sofrimento, de se inspirar em ideais elevados, de estabelecer conexões entre realidades distintas.  Todas essas são características da inteligência espiritual.
 
Peter Russell escreve que “Se não tratarmos das questões espirituais mais profundas subjacentes aos inúmeros problemas que enfrentamos, é muito provável que a civilização se esfacele.”
Lester Smith, em Intelligence came first  observou que  “Ao contrário do que alguns biólogos materialistas nos querem fazer crer, o homem essencial é um ser espiritual imaterial que usa o cérebro, junto com o resto do corpo, para desenvolver suas faculdades interiores.” (SMITH, 1975, p. 177). E que “A inteligência humana pode ser sua destruição ou sua salvação. Aliada à sua natureza mais básica, ela leva a comportamento egoísta, antissocial; aliada a suas qualidades espirituais, ela leva ao altruísmo, cooperação e unidade”.
Ken Wilber, o autor de Espiritualidade integral , de O Projeto Atman e de O olho do espírito é um dos importantes autores ocidentais que conhece e valoriza a contribuição pioneira de Sri Aurobindo.
Se as questões do espírito e da espiritualidade estiveram distantes de correntes dominantes nas ciências,  artes e filosofias, ela foi encampada  e acolhida pelas tradições religiosas. 
Entretanto num mundo em que tudo se transforma em mercadoria, os negócios espirituais associados às religiões tornam-se um campo de atividades econômicas e comerciais relevante. Isso vem de longe, desde quando Jesus expulsou os vendilhões do templo e desde que o movimento da Reforma denunciou as vendas de indulgências pela Igreja católica.
Na Índia se chama “spiritual business “ toda atividade que almeja lucros e ganhos econômicos em nome da espiritualidade. No ocidente há várias igrejas com tais objetivos. Há uma distância entre as  visões amplas sobre a espiritualidade e sua apropriação  prática por aqueles que se utilizam delas para obter ganhos particularistas. Isso gera descrédito e desconfiança.
Uma espiritualidade transreligiosa nas ciências, artes, uma espiritualidade laica nas filosofias emergem em varias visões  contemporâneas nesses  campos do saber.
                

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Sri Aurobindo, a Natureza e a consciência ecológica


Maurício Andrés Ribeiro

Nas mais de 14.000 páginas de sua obra completa em nenhum momento Sri Aurobindo escreveu a palavra ecologia., cunhada no século XIX pelo biólogo Ernst Haeckel e popularizada na segunda metade do século XX. Nem por isso ele deixou de expressar o que viria depois a ser chamado de consciência ecológica.
Ele escreveu sobre a Natureza Suprema, (com N maiúsculo) que inclui o Divino e uma Força universal; a natureza inferior, dos fenômenos e da matéria; a natureza universal, o self e a natureza, os seres conscientes e a natureza. Entre as leis da natureza que ele reconhece estão as da unidade na diversidade ( conceitos que usava bem antes de se propagar a ideia da biodiversidade, da sociodiversidade e mais recentemente da noodiversidade). Ele também apontou os condicionamentos de vários tipos que o ser humano sofre, incluindo as influências de seu ambiente.
Onde Sri Aurobindo buscou inspiração para desenvolver suas ideias, quando fala da Natureza e do meio ambiente?  Vivendo num ambiente natural, cultural e social extremamente diversificado como é o da Índia ele incorporou a importância da diversidade,  da harmonia e da união dos opostos.  Ele estudou  a cultura Indiana milenar, os Vedas, os Upanishads, a Bhagavad Gita, nos quais está presente a cosmovisão  ecológica de uma civilização que sacralizou a natureza, enxergou a presença de Deus nos animais, nas plantas, nas águas e no próprio interior do ser humano com sua centelha divina ( o cumprimento tradicional indiano, o Namasté, significa que o Deus que  habita em mim saúda o Deus que habita em ti).
Sri Aurobindo escreveu muito sobre os fundamentos  da cultura indiana
Ele expressa visão evolucionista: “Sabemos que há uma evolução, mas não o que a evolução é; isso permanece ainda como um dos mistérios iniciais da Natureza.” Sobre a evolução humana ele diz que “No ser humano, a evolução se torna autoconsciente – só ele pode fazer voluntariamente aquilo que a natureza faz de forma espontânea, subconsciente.”
Em sua obra se encontram ideias que expressam profunda consciência ecológica e que apresentam grande afinidade com a perspectiva das ciências ecológicas, especialmente com os campos da ecologia cósmica,  da ecologia espiritual, da ecologia humana, da ecologia profunda, da ecologia do ser, da ecologia interior, da ecologia transpessoal.

A Biomimética propõe aprender a viver com a natureza.

A Enciclica Laudato Si propõe o cuidado com a casa comum, na perspectiva da ecologia integral.
Seus textos visionários foram escritos há várias décadas. Visões  que emergem no ocidente se aproximam daquelas  expressadas por Sri Aurobindo. Pensadores ocidentais como Peter Russell ( O cérebro global, O Buraco branco no tempo), James Lovelock (Gaia), Ken Wilber (  espiritualidade integral, a visão integral que se aproximam do yoga integral de Sri Aurobindo), Edgar Morin,  Henri Bergson; o Papa Francisco  e sua encíclica Laudato Si, que  tentou atualizar o catolicismo na perspectiva da ecologia integral pioneiramente pensada por Pierre Dansereau ( e sua escalada da relação humana com o ambiente), Pierre Weil ( que escreveu sobre a Arte de Viver em Paz e sobre a fantasia da separatividade entre nós e a natureza); Vladimir Vernadski e Pierre Teilhard de Chardin ( a noosfera, a evolução e o ponto Ômega); a  ecologização de tudo ( ver o blog Ecologizar e os escritos de Bruno Latour); entre muitos outros. Emergem questionamentos ao antoropocentrismo e  perspectivas biocentricas e ecocentricas que propõem aprender a viver de acordo com a Natureza.
Pierre Dansereau e Teilhard de Chardin escreveram sobre a noosfera.
Ecologizar, o verbo da vez, nas palavras de Bruno Latour.



Sri Aurobindo valorizou a tecnologia ao escrever que "A ciência tem imensa importância não porque ela descobre os segredos da natureza para o avanço do conhecimento, mas porque os utiliza para a criação de máquinas e desenvolve e organiza os recursos econômicos da comunidade."(15-464)
No mundo contemporâneo há práticas baseadas na natureza, no design e na arquitetura tais  como, por exemplo,  a biomimética, que imita os padrões e processos naturais no design. A natureza oferece  exemplos de como inspirar a criação de  produtos e  processos.  Janine M. Benyus mostra como esse campo do conhecimento da  Biomimética poderá transformar as descobertas em muitos campos da atividade humana – informática, medicina, produção e distribuição de energia, economia e negócios, e a alimentação do planeta.

Há exemplos na agricultura ( na permacultura, na agrofloresta, na agricultura orgânica); nas práticas e inovações em Auroville., cidade-laboratório localizada no sul da Índia inspirada pela visão  de Sri Aurobindo.
A planta de Auroville inspirada na espiral da evolução.
 Essas  abordagens práticas ou teóricas que emergem a partir da segunda metade do século XX como sementes de pensamento ecológico  convergem com as palavras e textos escritos sobre a Natureza por Sri Aurobindo na primeira metade daquele século.  
Ademais, a própria vida reclusa de Sri Aurobindo em Pondicherry, focado na reflexão, sem deslocamentos e seu modo frugal de existência  produziu uma leve pegada ecológica, em sintonia com os valores da ecologia espiritual contemporânea.


sexta-feira, 22 de março de 2019

O princípio da cooperação

Maurício Andrés Ribeiro


A cooperação pode ser benéfica para todos.
Cooperar e competir são dois tipos de relações entre pessoas, organizações, empresas,  países.
No meio natural as relações ecológicas variam da parceria e cooperação até o antagonismo e competição. Simbiose e comensalismo são relações em que os organismos atuam em conjunto para proveito mútuo, nos  quais ambos os organismos recebem benefícios. Simbiose implica  adaptação mútua de um organismo a outro, cooperação, convivência, co-evolução do ser em seu ambiente. São desarmônicas interações como a antibiose (princípio usado nos antibióticos, que matam ou inibem certos organismos vivos), a predação, o canibalismo, o vampirismo, o esclavagismo, o parasitismo.
O físico Fritjof Capra (1993), autor de O ponto de mutação, escreveu que "Quanto mais estudamos o mundo vivo, mais nos apercebemos de que a tendência para a associação, para o estabelecimento de vínculos, para viver uns dentro de outros e cooperar é uma característica essencial dos organismos vivos. O estudo detalhado dos ecossistemas nestas últimas décadas mostrou com muita clareza que a maioria das relações entre organismos vivos é essencialmente cooperativa, e elas são caracterizadas pela coexistência e a interdependência, e simbióticas em vários graus. Embora haja competição, esta ocorre usualmente num contexto mais amplo de cooperação, de modo que o sistema maior é mantido em equilíbrio. Até mesmo as relações predador-presa, destrutivas para a presa imediata, são geralmente benéficas para ambas as espécies. Esse insight está em profundo contraste com os pontos de vista dos darwinistas sociais, que viam a vida exclusivamente em termos de competição, luta e destruição. A concepção que eles tinham da natureza ajudou a criar uma filosofia que legitima a exploração e o impacto desastroso de nossa tecnologia sobre o meio ambiente natural. Darwin propôs uma teoria da evolução em que a unidade de sobrevivência era a espécie, a subespécie ou algum outro componente básico da estrutura do mundo biológico. Mas, um século mais tarde, ficou bem claro que a unidade de sobrevivência não é qualquer uma dessas unidades. O que sobrevive é o organismo-em-seu-meio-ambiente." Nessa mesma linha,  Peter Kropotkin também já escrevera sobre a cooperação e a ajuda  mutua na natureza.
O Homo sapiens mantém relações ecológicas e interações com os demais de sua espécie, com outras espécies e com o planeta que o hospeda. As forças ou energias que movem a ação humana podem ser a ambição de poder, de desejo de enriquecimento material, de vaidade e de obtenção do sucesso, de interesses egoístas; ou podem ser interesses altruístas, de luta pelo bem comum, público e coletivo, com sentido de serviço e de solidariedade social e ambiental mais amplo e generoso.
No campo das relações políticas, sociais, econômicas, afetivas as relações negativas podem ser de guerra, de confronto e de conflito violento ou não violento, de dominação, de submissão, de dependência, de manipulação; na interação positiva ou harmônica ressaltam as relações de diálogo, de cooperação e parceria, de enriquecimento mútuo, de aliança. Lester Smith (1975) em Intelligence came first escreveu que “A inteligência humana pode ser sua destruição ou sua salvação. Aliada à sua natureza mais básica, ela leva a comportamento egoísta, antissocial; aliada a suas qualidades espirituais, ela leva ao altruísmo, cooperação e unidade.”
Uma das muitas percepções sobre nossa espécie, o Homo honestus é um primata que coopera e que se comporta com valores éticos.
O Princípio da cooperação ou da solidariedade considera que diante de um problema ou desafio grandioso, a união e a soma de forças e convergência de ações são um modo eficaz de reduzir riscos e danos potenciais para os indivíduos e as comunidades. O princípio da solidariedade é a base para gerenciar os recursos naturais. Solidariedade para com a atual e com as futuras gerações que virão habitar esse planeta e solidariedade para com as demais formas de vida.
Na área da ecologia e do clima, há significativa aplicação do princípio da cooperação  tanto em escala internacional (cooperação técnica e científica, intercâmbio de conhecimentos, trocas culturais etc.) como em escala local quando, por exemplo acontece uma tragédia e as pessoas são induzidas a cooperar. A aplicação do princípio da cooperação implica transformar valores,  e influi nos modos de construir e organizar o espaço e a sociedade. Envolve o cultivo de atitude de  atenção, de abertura ao diálogo, solidariedade,  compaixão,  paciência,  tolerância,  importância da cooperação e das relações ecológicas harmônicas, o respeito à diferença, para criar situações que favoreçam a vida humana e as demais formas de vida.
A água é fio condutor da convivência regional, pois supõe a solidariedade entre cidadãos de uma bacia. A água é um dos elementos da natureza sobre o qual acontecem relaçoes harmônicas e desarmônicas. Numa bacia hidrográfica, ao longo de um  rio e de seus afluentes,  é crucial a cooperação entre as comunidades que precisam usá-lo para finalidades múltiplas.  Em torno da água se desenvolvem vários projetos de cooperação técnica e cientifica internacional que compartilham conhecimentos  necessários para se lidar com a água em bacias hidrográficas transfronteiriças.  Uma abordagem transdisciplinar ajuda a se alcançar a cooperação. Reflexões, experiencias e alianças em favor da vida compõem o conteúdo de publicação sobre Água e cooperação.[1]
Em torno da água se desenvolvem muitas possibilidades de cooperação.
A partir da água dos rios, lagos e áreas úmidas catalisam-se processos de ordenamento territorial cooperativos.
A internet e as  redes de cooperação e de intercâmbio de conhecimentos oferecem ferramentas contemporâneas que permitem aprofundar a cooperação e a participação da sociedade, das organizações públicas e privadas e de indivíduos na tomada de decisões sobre alocação de água e outros temas ambientais.
 


[1] Água e cooperação . Sergio Ribeiro, Vera Catalão e Bené Fonteles (org.) Brasília 2014.

O nu e o vestido: a moda ecologizada

Maurício Andrés Ribeiro
 
 
 

 
A necessidade de vestir-se movimenta recursos humanos e econômicos consideráveis. Gera empregos na produção de matérias de origem vegetal, como nas plantações de algodão, juta e outras, e na produção da lã e de materiais de origem animal, tais como o couro; ou de origem fóssil – as fibras sintéticas – com os quais se fazem os fios ou se tecem os panos. Impulsiona a indústria têxtil, que no Brasil emprega 800 mil trabalhadores e move as confecções, as profissões dos estilistas e designers de moda, os alfaiates, costureiras e o comércio de tecidos, roupas e calçados.
 
A identidade de um povo ou de um cidadão e sua qualidade de vida são influenciadas pelo que vestem. A roupa é proteção, segurança, proporciona conforto térmico, regulando o calor ou o frio que os corpos sentem através do tato. O vestuário também é mensagem cultural, sinal visual que indica posto, posição, graduação, status social, ocupação. Denota gosto, ou a falta dele, estilo de viver, tem conotações estéticas, confere identidade ao indivíduo ou ao grupo social. Diferencia categorias profissionais ou sociais: os macacões, os colarinhos-brancos, as fardas, os fardões, as togas, os hábitos, os uniformes e os trajes para ocasiões especiais de núpcias, de domingo, de festa ou de trabalho, dos astronautas, as fantasias.
 
Inúmeras expressões se referem ao vestuário, desde “o rei está nu”, o “rasgar a fantasia”, “o desnudar-se das máscaras psicológicas” até o “camisolão”, os “engravatados”, os “descamisados”, “crime do colarinho branco.”
 
Os impactos ambientais da economia do vestuário variam da desertificação em áreas de cultivo de algodão à poluição hídrica causada pelo tingimento de tecidos na indústria têxtil; das vibrações e poluição sonora produzidas pelos teares às condições de trabalho dos empregados da indústria têxtil. Além disso, há os desperdícios e perdas de tecidos por moldes que não consideram as sobras e as possibilidades criativas de seu aproveitamento. Entre os consumidores, existem, num extremo, aqueles que não atingiram o limiar mínimo de meios materiais que permitam atender à necessidade básica de se vestirem. Noutro extremo estão os adeptos da moda predatória, que gastam recursos naturais – o algodão, as peles, as fibras sintéticas – em moldes que provocam perdas dos tecidos, bem como os que se vestem segundo padrões culturais importados dos países de clima temperado, usando roupas que lhes trazem desconforto térmico.
 
Num clima tropical, com temperaturas altas, a nudez é viável e confortável, como demonstram nossas tribos indígenas. A miséria urbana tem sobrevivido sem o abrigo da casa ou a proteção do vestuário, indispensáveis em climas temperados, frios ou polares. O clima tropical clama por uma moda em que a roupa seja leve, arejada, ventilada.
A roupa é fator de identidade pessoal, social e profissional. O design[1] de moda é um dos campos da arte com relação estreita com o ambiente e o conforto corporal e físico. A roupa regula o conforto térmico e as sensações táteis do calor e do frio e essa é uma função elementar do vestuário.
Num clima tropical, com temperaturas altas, vestir-se com roupas frescas e de fibras naturais é viável, mais barato e confortável. Pode-se  até sobreviver sem o abrigo da casa ou mesmo a proteção do vestuário, indispensáveis em climas temperados, frios ou polares.
Manter climas refrigerados artificialmente e manter-se vestido dentro deles, com roupas para frio é um contra-senso, somente suportável em sociedades com abundância de energia barata. Quando a energia escasseia ou torna-se cara, é preciso reduzir a demanda, adequar as necessidades, cortar os usos supérfluos ou que provocam seu desperdício.
Eliminar a roupa desnecessária ou imprópria e despir-se da moda supérflua é um dos meios para reduzir a demanda de energia e promover o consumo consciente. O vestuário ecológico é amigável em relação ao meio ambiente, porque facilita a economia de energia. Além disso, a energia mais limpa é aquela que se deixa de consumir.
Durante a crise energética em 2001, o racionamento de energia tornou insuportáveis as condições térmicas em muitos ambientes de trabalho, o que fez com que se abolisse a exigência de terno e gravata, vestimentas inadequadas para o clima quente dos trópicos. Em junho de 2005 o Primeiro Ministro japonês reuniu seu ministério e aboliu o uso do terno e gravata, para dar o exemplo, economizar gastos de energia com ar condicionado nos edifícios e atingir as metas do Protocolo de Quioto.
 
O clima tropical clama por uma moda em que a roupa seja leve, arejada, ventilada, adequada ao século XXI, o século do aquecimento global e do efeito estufa, no qual o calor crescente já exige hábitos de vestir adaptados ao clima, para proporcionar conforto térmico ao cidadão.
 Na Américas, há variações climáticas regionais, desde o clima quente e úmido equatorial da Amazônia, o clima tropical, que prevalece nos litorais, até o clima quente e seco da caatinga, os climas subtropicais das latitudes médias, o clima do cerrado,o clima das montanhas. Cada um desses tipos climáticos tem características de temperatura, pluviosidade e ventilação que devem influenciar os critérios para a escolha dos tecidos, das cores, do tipo de vestimenta. Há variações sazonais e, mesmo, no ciclo dia/noite, importantes na escolha do que vestir. Vestir-se ecologicamente supõe adequar-se ao bioclima, proporcionar conforto ao corpo, reduzir a transpiração e a necessidade de desodorantes, de climatização mecânica de ar.
A roupa ecológica resulta de moldes que reduzem perdas de tecidos. Os milenares sáris femininos ou os dothis masculinos usados na Índia são peças retangulares sem cortes e perdas de tecido. A “roupa ecológica” se faz reciclando e reaproveitando as sobras de tecidos.
 
A moda precisa desenvolver idéias que mexam com o imaginário, com os aspectos simbólicos e padrões estéticos e de desenho, levando em conta a influência do meio sobre o que se veste. A criatividade deve fazer cair de moda aqueles hábitos herdados do colonizador. Precisa inventar a moda ecologizada – que resista ao tempo e que se torne uma tradição, por ser adequada às condições do meio ambiente.  O ciclo de produção  da moda é curto e dura pouco, pois a moda por natureza é descartável e vive da  obsolescência. A moda ecologizada precisa atentar para os materiais e a cadeia de produção – dos plantadores das fibras às costureiras - e produzir roupas que sejam recicláveis e reaproveitáveis, ou que tenham maior duração e não sejam descartáveis.
Ecologizar a moda, adequando ao clima as tradições do vestir-se, será uma forma de render tributo a Oswald de Andrade que, no poema Erro de Português, apontava:
 
Quando o português chegou
debaixo duma bruta chuva
vestiu o índio.
Que pena!
Fosse uma manhã de sol,
O índio tinha despido
o português.
 
 
 


[1] A palavra design significa desígnio, vontade, projeto. O design de uma civilização ecologizada começa pelos atos cotidianos de alimentar-se, respirar, vestir-se, morar, circular, usar o tempo livre e pelo eco design da roupa à habitação, do espaço urbano ao design das paisagens naturais. E de instituições políticas e socioculturais adequadas.
 
 

terça-feira, 12 de março de 2019

Viver em harmonia com a água, uma lição japonesa


Maurício Andrés Ribeiro 

É inspirador observar o relacionamento harmônico com a água de modo integrado com o uso do solo e as florestas no Japão.[1] Cercado de mares e muito rico em fontes de água, originárias dos Alpes japoneses, suas montanhas ocupam 70% da superfície e constituem a espinha dorsal do arquipélago. Elas têm ocupação humana rarefeita em contraste com os vales em que há cidades muito densamente ocupadas.
As densidades populacionais e de ocupação do solo são muito altas nas metrópoles japonesas e no país. Com área total de 372 mil Km2 (equivalente à área do Estado do Rio Grande do Sul) e com 126 milhões de habitantes, a densidade média da população é de 337 habitantes por Km2., ou seja, cerca de 15 vezes maior do que a média brasileira.  
Os Alpes japoneses são, em sua maior parte, ocupados por florestas, que servem para a proteção dos solos e o controle da erosão. Ainda que a maior parte das florestas seja de propriedade privada, sua exploração e a comercialização do produto são usualmente feitos por meio de associações florestais. Sendo o país de clima temperado, a vegetação demora 80 anos para ser explorável e, desta forma, as florestas são consideradas como poupança, mais do que como investimento com retorno em curto prazo.
Apesar da altíssima densidade populacional, os fundos de vales em cidades japonesas são mantidos não edificados. Preservam-se os fundos de vale não edificados nas cidades, com canais abertos e parques lineares, que são inundados com as chuvas. Quando as águas se vão, não deixam danos econômicos ou sociais. A água é integrada no paisagismo e no urbanismo de modo harmônico e leva em consideração questões econômicas e de segurança em casos de inundações.
 
 
 

O uso da terra urbana e rural está sujeito a regras elaboradas. Um perfil típico é a ocupação urbana das faixas de interseção entre as montanhas e os vales. As montanhas são usadas para florestamento e preservação ecológica, além do uso econômico e os vales, usados para a agricultura intensiva que, em muitos casos, aproveita os espaços vazios nas periferias urbanas, onde os terrenos não construídos são raramente ociosos. Hortas, pomares e plantações diversificadas ocupam essas valiosas faixas, contribuindo para o abastecimento alimentar. No Japão, programas intensos de florestamento de encostas, de criação de cooperativas florestais e de proteção à cobertura vegetal reduziram as inundações nas planícies e os prejuízos à economia agrícola.
Mas isso nem sempre foi assim e as práticas de convivência harmônica com a água resultaram do aprendizado social sobre os riscos e os custos da ocupação inadequada dos vales. No passado houve desflorestamento das montanhas, erosão e assoreamento nos vales, perdas agrícolas, fome e problemas sociais.  O exemplo seguinte é elucidativo: no início do século XX o Japão sofria sérios problemas de enchentes originadas em suas montanhas, que haviam sido desflorestadas. As planícies com plantações de arroz eram frequentemente inundadas por enchentes que causavam prejuízos, perda da produção agrícola e fome. O país, que então se abria para o mundo, buscou no exterior apoio de quem conhecia bem as inundações: contatou os holandeses, que sabiam conter o mar com diques e evitar que as terras baixas fossem inundadas. Os holandeses estudaram o problema das enchentes japonesas e propuseram ações baseadas em sua experiência. Não tiveram sucesso. Os japoneses resolveram, então, buscar sua própria solução para o problema. No plano decenal de 1884, que fixou as linhas para a entrada do Japão no período moderno de sua história, advogava-se a importância de melhorias contínuas nas tecnologias tradicionais disponíveis no país. Assim, observaram que numa das ilhas os problemas de enchentes eram menores que no restante do país. Ali se protegiam as montanhas com florestas e o uso da lenha não gerara muito desmatamento. Disseminaram em todo o país aquelas práticas tradicionais. Programas intensos de proteção de encostas reduziram as inundações. Cooperativas florestais foram criadas para administrar as florestas e manejá-las de forma sustentável, usando a madeira para mobiliário e construção civil. O florestamento dos Alpes japoneses foi estratégico para conter sedimentos e erosões. As medidas de prevenção e controle evoluíram e compreendem a manutenção integral da cobertura de florestas nas áreas montanhosas, a construção de represas para conter a terra que escorre das montanhas junto com a água de chuva e a proteção de encostas por meio de redes metálicas ou de plástico, que previnem os deslizamentos de terra. Quando os japoneses aprenderam a cuidar melhor de suas montanhas e florestas, evitaram o desmate descontrolado, reduziram a erosão e as perdas agrícolas.
Fundo de vale não ocupado em cidade japonesa reduz prejuízos com enchentes.
Foto: Maurício Andrés
Hoje, o Japão ensina a aproximação com a água, voltando-se de frente para os lagos, rios e regatos. As cidades procuram ter intimidade com a água, evitando que córregos sejam aprisionados em canais fechados. Promove-se a reintegração urbana da paisagem ribeirinha e dos seus animais, como rãs e libélulas. Evita-se asfaltar as vias, para não agravar problemas de drenagem e provocar inundações. Evita-se que a água de chuva escorra diretamente para os rios; ela infiltra lentamente no solo. Represas de armazenagem e regularização da drenagem são previstas nos parcelamentos urbanos. Adotam-se sistemas de armazenagem da água de chuva em tanques subterrâneos. Age-se preventivamente na organização humana do espaço e na ocupação do solo.
 O Japão ensina que pode ser simples a solução para se prevenir inundações e para se articular a gestão da água com o uso e ocupação do solo. Ensina que a aprendizagem coletiva de convivência harmônica com a água é um processo civilizatório e cultural em que se aprende a partir dos erros cometidos, em aproximações sucessivas.
O Japão mostra que a aprendizagem coletiva é um processo cultural.
Os japoneses aprenderam com a dor, com o sofrimento e com os prejuízos econômicos provocados por terremotos e inundações, a atuar preventivamente e com prudência ecológica no seu ordenamento territorial. O exemplo japonês mostra uma sociedade que aprendeu a dar respostas adequadas aos problemas de injustiças sociais e de segurança ecológica e ambiental. O Brasil tem muito a aprender com a experiência japonesa nesse campo.

 




[1] O Japão é estudado no livro Colapso, de Jared Diamond, como um exemplo positivo de civilização que aprendeu a se relacionar de modo mais amigável com o ambiente e a água.


A água está sempre presente no paisagismo japonês