quarta-feira, 3 de maio de 2017

Rios, direitos, deveres, dharma e sustentabilidade



Maurício Andrés Ribeiro

Cortes e tribunais em várias partes do mundo têm considerado rios como pessoas, sujeitos de direitos. Na Nova Zelândia, o rio Whanganui; na Índia, o rio Ganges e o Yamuna; na Colômbia, o rio Atrato.
No Brasil, em novembro  de 2017, o Rio Doce.
A Assembleia Geral da ONU discutiu em abril de 2017 a Jurisprudência da Terra e ali se demandou uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza, que reflita a nossa relação fundamental com a Terra, incluindo o reconhecimento dos direitos próprios da natureza a existir e evoluir.
Está em curso um movimento que questiona fundamentos filosóficos e legais estabelecidos e tenta abrir espaço para visão holística e integral sobre os seres humanos e suas relações ecológicas harmônicas ou desarmônicas com a água e com os demais componentes da natureza.
Na natureza, como observou meu amigo que se foi, Flávio de Carvalho Serpa “Sobrevive o mais adaptado. A natureza não distingue entre o bem e o mal. A humanidade é a única que tem a ética e honestidade como fator seletivo, o que é bom...”
Se a espécie humana é a única que tem a noção do bem e do mal e a ética como regulador de comportamento, é razoável esperar que pessoas não humanas, como animais, rios etc também tenham deveres? A abordagem dos direitos da natureza suscita questões: se há direitos, deve haver também deveres? É dever de um rio prover hidroeletricidade para os seres humanos?
A abordagem dos direitos deve ser estendida também aos animais, como pessoas não humanas dotadas de sensibilidade, emoções e seu próprio nível de inteligência e consciência?
Os direitos humanos se expandiram. Dos direitos individuais - à liberdade, à vida, à expressão -, evoluiu-se para os direitos sociais, econômicos e culturais – à educação e à saúde, ao trabalho e à greve. Daí se evoluiu para a terceira geração, a dos direitos e interesses difusos, que ultrapassam a perspectiva individual e que incluem a proteção da coletividade, da paz e da segurança pública, do patrimônio histórico e cultural e do meio ambiente.
Ecologista respeitado, James Lovelock, em seu livro “A vingança de Gaia”, considera insuficiente a abordagem a partir dos direitos e necessidades humanos: “Meu desejo há muito tempo é que as religiões e os humanistas seculares se voltem para o conceito de Gaia e reconheçam que os direitos e necessidades humanos não são suficientes. (p.132). Ele afirma que “nossa tarefa como indivíduos é pensar em Gaia primeiro. Isso não nos torna desumanos ou indiferentes. Nossa sobrevivência como espécie depende totalmente de Gaia e de aceitarmos sua disciplina.” (p. 137).
Enquanto direitos e deveres são conceitos criados na civilização ocidental de matriz greco-romana e judaico-cristã, dharma é um conceito originário da civilização indiana, na Ásia. Mais de um século atrás, em 1908, um dos grandes sábios indianos, Sri Aurobindo, escreveu:
“Tem-se dito que a democracia baseia-se nos direitos do homem; foi respondido que deveria basear-se nos deveres do homem; mas ambos, direitos e deveres, são ideias europeias. Dharma é a concepção indiana em que os direitos e deveres perdem o antagonismo artificial criado por uma visão do mundo que faz do egoísmo a raiz da ação, e recupera a sua unidade profunda e eterna. Dharma é a base da democracia que a Ásia deve reconhecer, pois nisso reside a distinção entre a alma da Ásia e da alma da Europa. Por meio do dharma a evolução asiática se realiza; este é o seu segredo.” [4]
A imagem usada por Sri Aurobindo para definir o dharma ressalta a importância da unidade ao invés da contraposição. Direitos e deveres, que aparentemente se opõem, na realidade constituem uma unidade, como numa fita de Moebius, na qual um lado é a continuação do outro.
Fita de Moebius: os dois lados são um único. O conceito de Dharma unifica e dissolve o antagonismo entre direitos e deveres.
O conceito de dharma é fecundo no atual contexto em que se valoriza o que é sustentável. Heinrich Zimmer[5] nota que dharma é um substantivo proveniente da raiz do sânscrito dhr, que significa sustentar, carregar: “É a lei, aquilo que sustenta, mantém unido ou erguido.” Dharma tem, nesse sentido, uma relação direta com as questões da sustentabilidade e a dharmacracia é um caminho para a democracia sustentável.
O ex-presidente indiano S. Radhakrishnan, em livro sobre a visão hindu da vida, explora um significado similar, dizendo que “Dharma sustenta os meios os quais prendem uma coisa e mantém sua existência. Toda forma de vida, todo grupo de homens tem seu dharma, que é a lei do seu ser. Dharma ou virtude está em conformidade com a verdade das coisas; adharma ou vício é a oposição disto.”
Para além do antagonismo entre direitos e deveres, o cumprimento do dharma individual e coletivo pode ser essencial para produzir uma civilização sustentável.




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