sexta-feira, 4 de maio de 2018




Maurício Andrés Ribeiro (*)

Olhar para a Índia, para seus problemas e as formas como lida com eles, pode ser uma valiosa aprendizagem. Ali se encontram os extremos da condição humana, do mais maravilhoso ao mais abjeto. Sua extrema diversidade social e cultural faz com que para  tudo o que  se afirme sobre a India, o inverso e o oposto também é verdadeiro.  Aquela civilização e a chinesa foram as duas únicas que se sustentaram por mais de 4 mil anos numa linha continua. Ela soube ser sustentável em sua relação com o ambiente natural, forjando estilos de vida e padrões de consumo  frugais com baixa pressão sobre o meio ambiente. Soube também ser resiliente em sua relação com outras culturas, por meio da capacidade de suportar invasões e também de não se deixar destruir ou oprimir por outros povos[1]; ela absorveu, recebeu, metabolizou influências e as devolveu transformadas ao mundo. Soube, ainda, desenvolver uma tecnologia das emoções para lidar com o equilíbrio físico, emocional, mental e espiritual dos seres humanos.
Por sua diversidade cultural e política e por sua formação histórica, a Índia é uma nação multinacional, que mantém unidade na diversidade e que foi celeiro e campo fértil para idéias e propostas globalistas, mundialistas e voltadas para o federalismo mundial. Nesse sentido, indianizar é mundializar. O poeta e prêmio Nobel Rabindranath Tagore expressou essa convicção:

Ao encontrar a solução para nosso problema, teremos ajudado a resolver também o problema do mundo. O que a Índia já foi, o mundo todo é agora. O mundo todo se está tornando um único país por meio das facilidades científicas. Está chegando o momento em que precisamos também encontrar uma base de unidade que não seja política. Se a Índia puder oferecer ao mundo sua solução, ela será uma contribuição para a humanidade. Há somente uma história - a história do homem. Todas as histórias nacionais são meros capítulos da história maior. E estamos  felizes, na Índia, por sofrer por tão grande causa.[2]

A importância do papel da Índia na construção de uma arquitetura política global é também enfatizada por A.B. Patel,  quando afirma que:   
           
A Índia está destinada a ter um grande papel na reconstituição global. Sri Aurobindo atribui à Índia um papel crucial - um destino poderoso e uma pesada responsabilidade - porque ele considera que a Índia é o repositório da consciência espiritual, o guardião da Verdade, e ele enxerga que, na nova era da unificação global, o ser nacional da Índia vai atuar como uma lança, rompendo as formações mundiais atuais e dando nova forma à história. De seu ponto de vista, a herança espiritual da Índia e sua renascença tornam-se significativas não somente para seu próprio crescimento e realização, mas também para o destino da unidade da humanidade.[3]
Vários  líderes, sábios e poetas indianos professaram sua convicção na necessidade da evolução política humana para além dos estados-nação.[4] Disse o líder da independência Jawaharlal Nehru: Eu não tenho dúvidas em minha mente de que a federação mundial deve vir e virá, porque não há outro remédio para a doença do mundo.
Afirmou o Mahatma Gandhi: O nacionalismo não é o conceito mais elevado, a comunidade mundial é o conceito mais elevado. Eu não gostaria de viver nesse mundo se ele não se tornasse um mundo unido. O nosso objetivo é o mundo único; temos que trabalhar por ele e pela fraternidade humana.
A visão mundialista insere a política numa visão cosmopolita da unidade humana, para além do patriotismo, dos interesses de clãs e tribos, de interesses étnicos ou nacionais.  Ela expressa a necessidade de unidade política humana e de uma cosmovisão adequada para compreender os tempos em que vivemos.
Ideias federalistas vigorosas encontram-se no pensamento político e social de Sri Aurobindo, que escreveu sobre o ideal da unidade humana e sobre a Federação planetária como a forma mais adequada de articular o todo e as partes.
Tendo vivido na Inglaterra dos sete aos 21 anos, Sri Aurobindo compreendeu profundamente o hemisfério ocidental, com sua história, cultura e política e processou esse conhecimento à luz da Vedanta, a milenar sabedoria das escrituras hindus.
 Sri Aurobindo participou ativamente, no início do século XX, da luta pela independência de seu país. Mas, muito antes da Índia alcançar a independência em relação aos colonizadores ingleses, com a aplicação do princípio da não violência pelo Mahatma Gandhi, concluira que esse assunto já estava bem encaminhado. Passou, então, a ocupar-se de questões globais.
Seu pensamento vai além da visão conjuntural de curto prazo e focaliza os ciclos longos da história. Seu pensamento político e social impressiona pela clareza, capacidade de imaginação e fundamentação histórica. Sua visão integral pioneira no início do século XX é um farol que permite enxergar  entre as brumas do futuro. É uma referência atual em pleno século XXI, no qual se valoriza a perspectiva transdisciplinar e holística.
Sri Aurobindo estudou o passado, visualizou cenários para o futuro e avaliou as várias possibilidades para alcançar a união mundial. Para ele, as crises políticas, econômicas e culturais que atravessamos são expressões de uma crise maior, a crise da espécie humana dentro de seu processo evolutivo; o próprio ser humano é um ser em transição, que ainda deverá evoluir física, mental e espiritualmente. Sua visão prospectiva volta-se para o processo evolutivo pelo qual passa a espécie humana e todo o planeta. Ele dizia que nossa tarefa é ajudar a acelerar a evolução humana e que vivemos uma crise da evolução da espécie. Considerando–se a história passada, a humanidade não chegou ainda ao último estágio da sua evolução política, com as democracias e os estados-nação. Sri Aurobindo postulou que os Estados-Nação não constituem a última etapa do desenvolvimento político humano e defendeu a unidade econômica e administrativa do planeta.[5]
Seu pensamento influenciou a construção da cidade de Auroville, em Pondicherry, no sul da Índia, que se propõe a ser um laboratório internacional de paz, harmonia e concórdia, com base na ideia de que a espécie humana não é o último passo da evolução. Foi a imprensa de Auroville que publicou pioneiramente, em 1977, o anteprojeto de uma Constituição para a federação da Terra elaborado por movimentos sociais federalistas mundiais.
O pensamento  politico e social de Sri Aurobindo encontra-se expresso nos livros O ciclo humano, A guerra e a autodeterminação e O ideal da unidade humana. Escritos na segunda década do século XX e revisados em notas de pé de página depois da segunda guerra mundial, esses textos continuam atuais. Não tratam de temas conjunturais, mas dos grandes ciclos da evolução humana e não envelhecem, têm a qualidade dos clássicos. O livro O ciclo humano ressalta a importância da visão subjetiva da vida e explora o universo interior do homem, ainda pouco conhecido; aprofunda a discussão sobre a razão, seu papel e suas limitações, e sobre a evolução que a racionalidade sofreu ao longo da história. Na fase evolutiva seguinte, suprarracional, transformações espirituais moldariam uma nova etapa na vida da espécie. Em O ideal da unidade humana, estudou os impérios e as nações, com sua formação e seus estágios de desenvolvimento; antecipou a unificação da Europa; abordou as possibilidades de um império mundial e as enormes dificuldades no caminho em direção à unidade internacional; tratou também dos princípios  necessários para se constituir uma confederação livre de nações e as condições para que ocorresse tal união mundial livre. A unidade humana, central no pensamento de Sri Aurobindo, estende-se aos domínios militar, econômico e administrativo. Ela é buscada em escala global, sendo respeitada e valorizada a diversidade.
O tema da guerra e da autodeterminação dos povos é abordado no terceiro livro dos pensamentos políticos e sociais que integram sua obra completa, editada em trinta volumes por ocasião do centenário de seu nascimento, em 1972. Escritos na segunda década do século XX e revisados em notas de pé de página depois da segunda guerra mundial, esses textos continuam atuais.
Ele conclui que, entre todas as outras, a melhor alternativa para a organização política global é a proposta federativa, quando comparada com as alternativas de  um eventual império uno mundial ou uma confederação de nações.


(*) Autor dos livros Ecologizar, Tesouros da Índia e Meio  Ambiente & Evolução Humana.


[1] Diferentemente do que ocorreu nas Américas com as civilizações pré-colombianas, a civilização  indiana resistiu à colonização ocidental e a outras invasões, absorveu influências e agora por sua vez influencia o mundo ocidental que a colonizou.
[2] TAGORE, Rabindranath.  Nationalism, p.59-60.
[3] PATEL, A.B. Towards a new world order, p.17. Meu interesse pelo Federalismo mundial começou  a nascer em 1977. Eu estava na Índia numa bolsa como pesquisador visitante do Instituto Indiano de Administração em Bangalore e assisti a uma palestra de A.B. Patel, presidente da ONG World Union, no India International Centre em Delhi.  Alguns dias depois, visitei Pondicherry e Auroville onde tomei contato com a vasta obra e as ideias mundialistas de Sri Aurobindo. Revisitei o tema do Federalismo Mundial  em 1987, em parceria com Jarbas Medeiros, em artigos publicados na revista da Fundação Joao Pinheiro. Quando publiquei o livro Tesouros da India em 2003, também voltei a abordar o tema, devido à força que têm na India tais ideias e perspectivas universalistas, tanto em termos de politica como também articuladas com a cosmologia e a cosmovisão das tradições espirituais que ali se desenvolveram – hinduísmo, budismo, Jainismo.


[5] Os estudantes que desejam transcender os limites dos autores e referências ocidentais têm em Sri Aurobindo uma rica fonte de conhecimentos históricos, lastreada na cultura milenar indiana e em seu profundo conhecimento do ocidente. Nele poderão inspirar-se numa visão integral da evolução humana e desfrutar cenários prospectivos,
valiosos para suas reflexões. Sri Aurobindo dá um crédito especial ao movimento Teosófico por seu papel em reconhecer o valor da cultura indiana, no  final do século XIX e início do Século XX, num tempo em que ela era menosprezada e diminuída pela visão ocidental então dominante.

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