terça-feira, 18 de agosto de 2020

A pandemia abre o tempo para o autoconhecimento


Maurício Andrés Ribeiro

 Em poucos meses a pandemia mudou ritmo de funcionamento do mundo.
Por um lado, paralisou movimentos e os tornou mais lentos. A vida fluiu mais devagar. Por outro lado, acelerou tendências e processos rápidos que já  se manifestavam.
Durante as quarentenas, puxou-se um freio de arrumação.  Reduziu-se o ritmo de atividades, esperando o perigo passar. A sociedade hibernou como o urso, que economiza energia durante o inverno. As  quarentenas isolaram bilhões de pessoas dentro de suas  casas. Deram uma pausa para reflexão.
O modo como se utiliza o tempo se alterou. Houve uma desaceleração física, corporal e criou-se nova relação entre os cidadãos e o ritmo de vida nas cidades. Os tempos gastos em deslocamentos casa-trabalho, casa-escola, casa lazer  foram eliminados ou reduzidos. Em muitos casos, viagens cotidianas de ir e vir para o trabalho foram reduzidas a apenas uma viagem de ida e uma de volta. Escalonar horários de atividades para evitar picos de trânsito e congestionamentos foi uma  maneira de lidar com os novos ritmos. A semana de trabalho se comprimiu em  dias corridos e algumas  empresas e países propõem  o  trabalho em ciclos de 4 dias da semana, o uso de turnos de trabalho com revezamento e permanência de parte dos trabalhadores em home-office. Economizaram-se com isso muitos quilômetros de deslocamento e muito tempo gasto com viagens, levando a melhor qualidade de vida. O teletrabalho liberou  tempo  para si e para atividades que desejam exercer, cansando-se menos em longas viagens  e deslocamentos. Intercalam-se  com mais flexibilidade e menos rigidez os períodos de trabalho e descanso quando se está em casa.
O movimento da sanfona, abre e fecha, fecha e abre, passa a regular os ritmos de funcionamento das cidades. Como um vagalume que acende e apaga, estica e encolhe,  movimentos pendulares rápidos tentam regular a disseminação da doença. A ruptura de ritmo  exigiu adaptações. A velocidade de adaptação tornou-se chave para a sobrevivência e prosperidade de um negócio ou atividade ou a sua morte.
O ritmo de fechamento e abertura de atividades tornou-se incerto, em função da dinâmica da epidemia. Hoje pode-se flexibilizar  o funcionamento de uma atividade, mas amanhã ela pode  ser fechada, caso os contágios se multipliquem. 
Planos se evaporaram e passou-se a viver no aqui  e agora, um dia depois do outro,  com curtoprazismo, imediatismo, adaptações incrementais sucessivas. A previsibilidade do futuro sumiu e uma densa neblina turva a visão de longa distância. A velocidade de mudanças tornou-se exponencial em comparação com a velocidade aritmética das mudanças prepandemia. A micro gestão no dia a dia tornou-se imperativa, sem planos de curto médio ou longo prazo.
Os períodos de férias também  se transformaram. Ao invés de pequenos períodos de férias salpicados durante o ano, a prudência recomenda reduzir o número de viagens para lá e para cá, cada uma delas considerada como uma exposição potencial ao risco de contrair a doença.  Assim, a  sazonalidade do uso do tempo anual se alterou reduzindo viagens, gastos de recursos naturais, exposição a riscos.
Quem tem um celular ou um computador conectado à internet acessa uma quantidade enorme de ofertas  de programas culturais, artísticos, religiosos, científicos, conversas e bate papos sobre temas variados.  O tempo encolheu para tanta live e webinar. Diante da onda de ofertas é preciso agendar o que ver, filtrar aquilo que é relevante, montando  uma agenda de prioridades que caiba nas 24 horas do dia, 7 dias por semana.
A oferta de eventos online se multiplica, com assuntos variados que expressam a noodiversidade, em que cada tribo compartilha valores e informações com aqueles que participam da mesma bolha.  A grande oferta de lives aumenta o padrão de exigência. Ao menor sinal de vacilo dos participantes, pode-se mudar de canal ou desviar a atenção para outra oferta que está à mão. Para aproveitar melhor o tempo  adotou-se o modo multitarefas, assistir a um vídeo e a um filme, trabalhar, ouvir música simultaneamente. Na tele aprendizagem, multiatividades simultâneas multiplicam o aproveitamento do limitado tempo disponível. A atenção é compartilhada, dividida, não concentrada.
O isolamento abre tempo para a contemplação.

 Há mais tempo livre devido ao confinamento e ao isolamento físico. A falta de atividades externas leva a introspecção e a viagens para dentro de si, o que abre uma oportunidade para  exercitar o autoconhecimento. A observação e anotação sobre sonhos e suas conexões com os fatos do dia anterior, são facilitadas pela liberação de tempos diários. Abre-se um tempo de reflexão, de interiorização e estudo. Aprofunda-se em temas e pensamentos que seriam inviáveis em tempos de correria. A pausa para reflexão e a desaceleração de atividades externas permite atividade mental e emocional intensa.  

Há quem saiba aproveitar tais períodos de isolamento para viajar para dentro de si em autoconhecimento. Na prisão involuntária Graciliano Ramos escreveu suas Memórias do cárcere e Sri Aurobindo escreveu suas Tales of prison life. Depois disso, Sri Aurobindo se auto recolheu num quarto onde viveu as últimas décadas de sua vida, escrevendo, em contato com poucas pessoas, meditando, interferindo nos negócios do mundo à distância por meio da força de suas ideias. Bem aproveitado, um período de confinamento, forçado ou voluntário,  pode gerar produtos valiosos.

 

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