quinta-feira, 26 de abril de 2018

Dos Direitos ao Dharma

Como na fita de Moebius, no Dharma direitos e deveres recuperam sua unidade.


Por Mauricio Andres Ribeiro
Sobre a democracia dos direitos
Herdeiro da civilização greco-romana e da tradição judaico-cristã, o mundo ocidental inventou o Estado democrático de direito. Os grandes impérios da matriz ocidental enfatizaram o direito: no passado, o império romano concebeu o direito romano. Em 1789, a revolução francesa proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, afirmando o direito à liberdade, à igualdade, à propriedade e o direito de resistir à opressão. Em 1948, a ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Na história recente, o império americano se fundamenta na democracia dos direitos.
Os direitos se expandiram. Dos direitos individuais - à liberdade, à vida, à expressão -, evoluiu-se para os direitos sociais, econômicos e culturais – à educação e à saúde, ao trabalho e à greve. Daí se evoluiu para a terceira geração, a dos direitos e interesses difusos, que ultrapassam a perspectiva individual e que incluem a proteção da coletividade, da paz e da segurança pública, do patrimônio histórico e cultural e do meio ambiente.
Estudiosos da democracia dos direitos, ao mesmo tempo em que apregoam suas virtudes, pois seria o regime político mais avançado das sociedades humanas, apontam suas fragilidades. O sociólogo Manuel Castells fala da necessidade da democracia reinventar-se. O filósofo Jürgen Habermas ressalta as tensões que permanentemente desafiam o Estado democrático de direito, entre elas destacando-se o terrorismo do início do século XXI. A pretexto de garantir a segurança e de combater o terrorismo, governos de países que se dizem democráticos montaram sistemas de vigilância sobre os cidadãos e de bisbilhotagem eletrônica que criam situações de medo, de coerção e alimentam desconfianças. Diante das ameaças reais ou imaginárias do terrorismo, os governos colocam em segundo plano as conquistas da democracia, como os direitos civis, o direito individual ou o direito à privacidade.
Os diversos regimes políticos -  totalitários, autocráticos, teocráticos e, também, as democracias dos direitos - estão sob pressão das populações. Os movimentos sociais dos últimos anos em todo o mundo explicitaram a crise de representatividade e de confiança nos políticos e nos sistemas que os sustentam. Expressaram descrença na política partidária. Número crescente de cidadãos declara que ninguém os representa, não se sentem representados por nenhum partido político. Número crescente de eleitores se ausenta e vota nulo ou branco. A insatisfação social que eclode em várias partes reflete a aspiração por uma humanidade com mais justiça e menos violência, o que inclui mais justiça ambiental e menos violência contra a natureza. A insatisfação manifestada nos movimentos sociais em vários países clama contra a corrupção e pela transformação do sistema político. A democracia dos direitos é um sistema que vem sendo questionado em muitos países.  É preciso ter cuidado ao analisar criticamente a democracia dos direitos e ao propor modos de aprimorá-la, para não jogar fora a criança com a água do banho, ou seja, para não se desvalorizarem as suas boas qualidades. Há sistemas políticos autocráticos, totalitários, despóticos, que inibem ou reprimem a liberdade de expressão de que se desfruta em democracias.
A insatisfação social pede por relações políticas que sejam mais amplas e generosas, ao tomarem o planeta como a principal unidade de referência. Ecologista respeitado, James Lovelock, em seu livro “A vingança de Gaia”, considera insuficiente a abordagem a partir dos direitos e necessidades humanos: “Meu desejo há muito tempo é que as religiões e os humanistas seculares se voltem para o conceito de Gaia e reconheçam que os direitos e necessidades humanos não são suficientes.”[3](p.132). Ele afirma que “nossa tarefa como indivíduos é pensar em Gaia primeiro. Isso não nos torna desumanos ou indiferentes. Nossa sobrevivência como espécie depende totalmente de Gaia e de aceitarmos sua disciplina.” (p. 137).
Experimentos de democracia participativa reduzem as distâncias entre quem governa ou decide e cada cidadão. Audiências e consultas públicas, plebiscitos, estruturação de órgãos colegiados com presença das partes interessadas são instrumentos da democracia participativa. Entretanto, tais experiências positivas sofrem quando os colegiados são capturados por lobistas ou por atores que os influenciam em favor de interesses particularistas.
As ênfases entre direitos e responsabilidades variam. Em algumas sociedades enfatizam-se os direitos individuais em detrimento das responsabilidades sociais ou coletivas. Em outras, restringem-se os direitos individuais e se priorizam as responsabilidades coletivas. Compatibilizar a liberdade individual com as responsabilidades coletivas demanda um delicado equilíbrio.
Sobre a Dharmacracia
Cada civilização é movida por cosmovisões, motivações, mitos e modelos mentais próprios. As várias civilizações desenvolveram conceitos distintos a partir dos quais orientam as diferentes formas de organização social e política.
Enquanto direitos e deveres são conceitos criados na civilização ocidental de matriz greco-romana e judaico-cristã, dharma é um conceito originário da civilização indiana, na Ásia. Mais de um século atrás, em 1908, um dos grandes sábios indianos, Sri Aurobindo, escreveu:
“Tem-se dito que a democracia baseia-se nos direitos do homem; foi respondido que deveria basear-se nos deveres do homem; mas ambos, direitos e deveres, são ideias europeias. Dharma é a concepção indiana em que os direitos e deveres perdem o antagonismo artificial criado por uma visão do mundo que faz do egoísmo a raiz da ação, e recupera a sua unidade profunda e eterna. Dharma é a base da democracia que a Ásia deve reconhecer, pois nisso reside a distinção entre a alma da Ásia e da alma da Europa. Por meio do dharma a evolução asiática se realiza; este é o seu segredo.” [4]
A imagem usada por Sri Aurobindo para definir o dharma ressalta a importância da unidade ao invés da contraposição. Direitos e deveres, que aparentemente se opõem, na realidade constituem uma unidade, como numa fita de Moebius, na qual um lado é a continuação do outro.
No contexto atual da crise ecológica, a proposta de Sri Aurobindo para a Ásia pode ser estendida para todo o mundo. Não só a evolução asiática, mas a evolução política humana mais ampla também pode se beneficiar desse conceito.
Especialmente o Brasil, que não se situa na Europa nem na Ásia, e que recebeu forte influência das ideias europeias, poderia se beneficiar dessa concepção do dharma. No Brasil ainda não se realizam os direitos humanos básicos: vide os déficits no direito à educação e à saúde, a situação das populações carcerárias, os déficits de proteção à segurança pública, a ocorrência de trabalho escravo, entre outras. Tampouco se realizam os direitos difusos de terceira geração: vide a falta de saneamento ambiental, as poluições e agressões à natureza.
Do mesmo modo no Brasil se desconhecem conceitos como o do dharma. Sendo este país uma sociedade aberta e receptiva ao novo, “antropofágica”, que sabe deglutir e metabolizar o que vem de fora, seria valioso conhecer o que é o dharma e aplicá-lo à vida e à política.
O conceito de dharma é fecundo no atual contexto em que se valoriza o que é sustentável. Heinrich Zimmer[5] nota que dharma é um substantivo proveniente da raiz do sânscrito dhr, que significa sustentar, carregar: “É a lei, aquilo que sustenta, mantém unido ou erguido.”
Dharma tem, nesse sentido, uma relação direta com as questões da sustentabilidade e a dharmacracia é um caminho para a democracia sustentável.
O ex-presidente indiano S. Radhakrishnan, em livro sobre a visão hindu da vida, explora um significado similar, dizendo que “Dharma sustenta os meios os quais prendem uma coisa e mantém sua existência. Toda forma de vida, todo grupo de homens tem seu dharma, que é a lei do seu ser. Dharma ou virtude está em conformidade com a verdade das coisas; adharma ou vício é a oposição disto.”[6] O cumprimento do dharma é central numa civilização sustentável.
Outro aspecto do dharma se relaciona com a ação e a missão humanas. Isso é enfatizado num dos textos sagrados hindus, a Bhagavad Gita, parte integrante do épico Mahabharata (Grande Índia). Ali se mostra como Krishna, a divindade, estimula Arjuna, o guerreiro, a lutar e a assumir seu próprio dharma:
“Lembra-te que é melhor cumprir a própria tarefa, ainda que seja humilde e insignificante, do que querer fazer a tarefa de um outro, por mais nobre e excelente que seja.”[7]
No campo da ação, há uma relação do dharma com o conceito de carma (ou karma). Carma é a lei da causa e efeito aplicada à vida. Mais cedo ou mais tarde boas ações produzem circunstâncias positivas na vida de quem as pratica, enquanto as más ações produzem sofrimento para quem as realiza. Dayananda observa que “De acordo com o dharma, a ação humana tem um resultado invisível bem como um resultado imediato e tangível. O resultado invisível da ação soma-se de forma sutil na conta do ‘fazedor da ação’ e, com o tempo, frutificará, tangivelmente, para ele como uma experiência ‘boa’ ou ‘má’ - algo prazeroso ou doloroso.”[8] Para ele, uma boa ação frutifica como prazer e uma má ação frutifica como dor ou sofrimento. Traduzindo tais ideias em uma linguagem contemporânea, é como se cada indivíduo tivesse uma conta ou cartão de crédito cármico, um “credicarma”, com seus créditos e débitos, que se acumulam e que são pagos ou resgatados, cedo ou tarde, imediatamente, nos médio e longo prazos. Ao cumprir seu dharma, o indivíduo liquida o débito do carma passado e obtém um crédito para se libertar.
Na Bhagavad Gita, recomenda-se que as ações sejam realizadas desinteressadamente. Sri Ramakrishna esclarece: “Quando a Gita pede para realizarmos nossas ações sem qualquer pensamento sobre o resultado, não espera que eliminemos todos os motivos como tais, mas que eliminemos todos os motivos mundanos e que tenhamos o desenvolvimento de nossa natureza espiritual como o único motivo para nossas ações”. [9]
Ao cumprir a tarefa que lhe cabe, o indivíduo ou a sociedade aceitam sua missão e reconhecem aquilo para o que foram destinados. Todo indivíduo tem um dharma próprio, exigido pelas circunstâncias de sua vida - positivas ou negativas - em que ele é compulsoriamente colocado pelo destino para que equilibre ações passadas.
O mestre Swami Dayananda esclarece a importância do autoconhecimento e da autoconsciência, bem como a relevância da ação bem realizada: “Como não há um certo absoluto e nem um errado absoluto nesse mundo relativo, o senso de dharma tem que crescer dentro de cada um. Uma pessoa que entende o dharma pode decidir sobre uma ação apropriada a qualquer situação, assim como o bom motorista sabe como comportar-se em qualquer nova situação do tráfego. [...] O dharma é a justiça ideal que se fez vida; a virtude é medida pela perfeição atingida por cada um no exercício do seu papel”.[10]
Na história das culturas, a consciência humana já foi predominantemente mítica, mágica, baseada na crença em leis divinas, teocrática. A partir de certo momento, baseou-se no logos, na razão, tipo de consciência que exige a capacidade de um indivíduo observar o mundo e observar-se a si próprio. Ele se compreende por meio do autoconhecimento: toma consciência de si mesmo, tem consciência do próprio dharma, ou de seu papel no palco da história. Quem sabe o seu dharma torna-se autoconsciente, conhece as ações que lhe cabe realizar nesta vida e procura exercê-las virtuosamente.
A dharmacracia pode ser vista como uma meta que evolui a partir do patamar alcançado pela democracia dos direitos. Dharmacratizar a política é um modo proativo, voltado para a frente e para o alto, de responder às insatisfações sociais quanto à democracia dos direitos, direcionar os governos para aspirações coletivas, afastar os cleptocratas, reduzir a corrupção e seus danos. Numa dharmacracia, a ética ecológica é internalizada como parte integrante da política e os governantes se pautam por ela.
Há um caminho a percorrer para se evoluir das cleptocracias e das democracias dos direitos para a dharmacracia. Isso pode ser realizado com as práticas individuais, de baixo para cima (Seja a mudança que você quer ver no mundo, dizia Gandhi). Isso também pode ser realizado por meio das construções políticas globais, de cima para baixo.
Esses podem ser caminhos na transição da democracia dos direitos, representativa ou participativa, em crise, para a dharmacracia. Isso inclui ir além e evoluir dos direitos para o dharma. Especialmente nos temas da governança global e colocando Gaia em primeiro lugar, seria promissora a adoção do dharma como princípio norteador da ação política e da ação ecológica.


1-DIAMOND, Jared - Guns, Germs and Steel, the fates of human societies, W.W. Norton &company Ltd., NY 1997, pág .288.
2-Ver RIBEIRO, Maurício. Meio Ambiente & Evolução Humana, Editora Senac, 2013.pgs. 65 a 71.
3-LOVELOCK, James, A vingança de Gaia, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006.
4-SRI AUROBINDO Complete Works, vol.1, p.759. [4] Sri Aurobindo foi um ativista político que participou da luta pela independência da Índia, foi preso, depois passou a dedicar-se a questões globais e da evolução humana. AUROBINDO, Sri. Complete works, v.1, p.759.
5-ZIMMER, Heinrich, Filosofias da Índia”, 1951, p. 123
6-RADHAKRISHNAN. A visão hindu da vida. Rio de Janeiro: Edições MM, 1971. .(pg.69)
7-BHAGAVAD Gita; canção do Divino Mestre. Trad. Rogério Duarte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.51.
8-DAYANANDA, Swamy, Introduction to vedanta, p.10.
9-RAMAKRISHNA. Yoga: its various aspects: Gita on Karma yoga, p.30-31.
10-DAYANANDA, Swamy, the teaching of the Bhagavad Gita, p.20.

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