terça-feira, 2 de julho de 2019

Emergência climática e ética indígena sul-americana


Maurício Andrés Ribeiro




Pierre Dansereau estudou a América do Sul.


Cristián Parker, sociólogo  e pesquisador na Universidade do Chile[1], estudou as distintas visões de mundo de grupos  indígenas, de empreendedores econômicos, de movimentos ecologistas,  bem como os  conflitos entre vários atores sociais envolvendo a água e os recursos da natureza no continente. Parker relaciona os diversos discursos éticos, tais  como o que propõe  o crescimento utilitarista; o que propõe uma ética regulatória para minimizar os impactos ambientais e sociais dos empreendimentos extrativistas e destaca a responsabilidade social das empresas. Há, ainda,  o discurso que propõe o desenvolvimento sustentável, com as empresas reguladas pelo estado. Há também o discurso da ética ecológica “que favorece uma mudança completa no modo de produção e grandes investimentos em mineração e energia. Coloca a questão da água, ecossistemas e populações locais como a prioridade que prevalece sobre o crescimento econômico. As pessoas locais tornam-se os atores principais, em comparação com a prioridade que os investidores recebem em projetos convencionais.” E, por fim, há a ética autóctone dos povos indígenas que  “formulam um discurso baseado na defesa de seus territórios e se opõem aos megaprojetos elétricos e de mineração e seus impactos sociais, culturais e ambientais. Seus argumentos estão relacionados ao seu próprio caráter e identidade. As tradições ancestrais têm um lugar importante. No entanto, na maioria das vezes, as manifestações explícitas de sua fala são associadas aos direitos modernos, deixando implícita sua sabedoria, sua cosmovisão e sua visão ética da natureza como pano de fundo.”
Essas diferentes cosmovisões mantem relações distintas entre si, algumas têm afinidades; outras expressam oposições radicais. Algumas  abordagens enfatizam os valores de troca, outras, o valor de uso e valor simbólico. Para um tipo de discurso “o que interessa é o valor de troca do negócio mineral no mercado global de metais e minerais (os recursos a serem utilizados)”; para outro discurso “ o valor simbólico do território é primordial, pois está associado à identidade, aos ancestrais, à vida da comunidade, ao ambiente compartilhado e também à vida espiritual (o patrimônio a ser protegido).”
Numa tabela  ele contrasta elementos de duas dessas éticas e discursos.
TABELA N ° 1:  ÉTICAS E DISCURSOS CONFRONTADOS
                                           As relações humanos/não humanos
Categorias  VISÃO AUTÓCTONE -VISÃO DO MERCADO
Totalidade    - Holismo                          -  Dualismo Cartesiano
Racionalidade - Englobante/Princípio da Reciprocidade - Racionalismo / Positivismo
Sujeito/Objeto -Cosmo coabitado  - Dualismo Sujeito-Objeto
Matéria    - Ser vivo: energias e espíritosNatureza morta: sítio inerte /rochas
Moral   - Ambivalência Moral  - Dualismo moral, o bem e  o mal
Seres superiores - Multiplicidade dos Espíritos - Monoteísmo
Fonte: Parker
Parker constata que   “Como parte do processo de desenvolvimento, as políticas de extrativismo na América Latina geralmente não respeitam o meio ambiente. Os atores que se confrontam no terreno brandem discursos econômicos, ideológicos ou éticos. Foi bem analisado que os modos de vida indígenas se opõem às forças das indústrias extrativas, empresas globais que consideram as terras indígenas estritamente como recursos (Martinez, 2015).” Megaprojetos extrativistas que provocam impactos ambientais e conflitos sociais, capitaneados por grandes corporações têm-se intensificado, seja sob governos de qualquer matiz ideológica.
Parker  constata que “Nos últimos tempos, os discursos ecológicos dos povos indígenas, identidades locais e regionais se multiplicaram; são demandas e mobilizações pela justiça social e ambiental e pelo emprego. Essa virada em direção ao território e à ecologia converge para uma linguagem comum que ilustra a inovadora interseção entre o discurso da comunidade indígena e o discurso ambiental (Svampa, 2013).”
Ele propõe  “enfatizar a importância da visão de mundo indígena, que tem uma ética de participação com a natureza que se opõe à mercantilização da terra e do território. Ética que se baseia no valor simbólico do bem comum e não no seu valor de mercado ou valor de uso.”
 “O discurso autóctone é um discurso ético que promove o respeito pela vida e pela natureza. O pensamento cosmológico dos povos indígenas mostra uma atitude ética em relação à vida, baseada no respeito por ela e em harmonia com a sacralidade da natureza, como uma peculiaridade específica de sua consciência planetária.”
Noosfera, a esfera da consciência que influi sobre as demais.Pierre Dansereau.
Parker  conclui que “Num tempo em que os sintomas visíveis das alterações climáticas têm se intensificado, vemos um confronto mais agudo, às vezes subterrâneo e imperceptível, às vezes em conflito aberto,  de dois polos de éticas planetárias fundamentais: uma ética utilitarista  de explotação e uma ética ecologica entre as quais  há na verdade uma gama de posições. De fato, no pensamento racionalista e colonialista ocidental, a natureza é considerada um objeto sujeito à exploração (incluindo aí aqueles humanos considerados inferiores). Essa é a lógica da acumulação capitalista imediata, acentuada pela ética da sociedade pós-industrial no contexto do modelo neoliberal da globalização recente. Por outro lado, as injustiças sociais e a proteção do meio ambiente e do ecologismo trazem à luz questões de desigualdades ecológicas e, portanto, de justiça e equidade intergeracional, social e geográfica. No centro deste confronto global, a ética indígena que resiste à mercantilização dos territórios, como apresentamos, acentua uma dimensão da relação humanidade-natureza que está próxima de certas éticas ecológicas, como a proposta,  entre outros, por Pierre Dansereau.”
Pierre Dansereau estudou as cosmovisões e a noosfera.

A emergência climática atual clama pela ética ecológica e  de algum modo  leva a revalorizar a ética indígena e sua cosmovisão.



[1] Parker, Cristián. -Atores sociais e ética ecológica no conflito extrativista: ética indígena sul-americana  (publicado  em francês no livro L’espoir malgré tout – L’oeuvre de Pierre Danseereau et l’avenir des sciences de l’environnement, Normand Brunet, Paulo Freire Vieira, Marie Saint – Arnaud, René Audet, Presses de l’Université du Québec, 2017)


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