quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Urbanismo e segurança


Mauricio Andrés Ribeiro

Segurança é um tema crucial para as cidades.
As pessoas buscam se proteger diante do quadro crescente de violência urbana, balas perdidas, conflitos com traficantes de drogas e assaltos.  No Brasil há cerca de 60mil mortes por ano em homicídios, grande parte deles nas cidades.
Muros e cercas com arame farpado e cacos de vidro, alarmes eletrônicos e câmeras de vigilância, portarias com segurança privada em condomínios fechados são alguns dos modos de  se defender.  Nas áreas públicas, uma adequada iluminação  pode reduzir a criminalidade.
Iluminação publica aumenta segurança.
 

A violência e insegurança no trânsito, que atinge motoristas, passageiros, ciclistas, pedestres. No Brasil há mais de 60 mil mortes no trânsito e alta incidência de acidentes com motos, que oneram os hospitais e postos de saúdes com traumatizados e incapacitados. Parte delas  acontece em cidades. Ciclistas correm riscos e são vítimas frequentes de acidentes de trânsito. Pedestres são atropelados. Além disso as más condições de manutenção de calçadas provocam acidentes com idosos, quedas, fraturas, onerando o sistema de saúde e os hospitais e provocando mortes. Prover ciclovias seguras é um dos modos de lidar com esse tema. Boa sinalização, educação para o trânsito, manter calçadas em boa condição de caminhabilidade são modos  de se lidar com esse aspecto da segurança.
Caminhabilidade - calçadas em boas condições reduzem riscos de quedas.
 
Segurança integral tem múltiplas dimensões
Entretanto, esse tema não se reduz  apenas à segurança pública ou no trânsito. Uma abordagem holística e integral mostra que além dessas dimensões cotidianas,  há outras  ameaças à segurança que vêm com deslizamentos de encostas,  que atingem moradores de áreas de risco; enchentes e inundações que surpreendem motoristas dentro de seus carros em fundos de vales. Trata-se da segurança ambiental, que atinge mais duramente os mais vulneráveis e mais pobres.  Evitar a ocupação de áreas de risco íngremes ou em fundos de vales é um dos modos de reduzir esse problema. Dar um bom uso a essas áreas e mantê-las não edificadas é uma solução de desenho urbano adequada.
Há riscos  potenciais à segurança que são muito mais sérios e vitais, como a segurança hídrica. Uma cidade que sofra um colapso no abastecimento de água está vulnerável e sujeita a convulsões sociais de grande abrangência.  Em 2018 a Cidade do Cabo, na África do Sul, correu o risco de colapso total do abastecimento de água, com a chegada do dia Zero. Com a emergência climática atual, várias outras cidades passaram a correr esse risco. Em São Paulo, Brasília e outras cidades, crises hídricas impuseram racionamento, aumento de tarifas, construção de obras de infraestrutura e medidas de ordenamento territorial. Um parque estadual foi criado em Goiás para proteger o manancial do lago Descoberto, que abastece Brasília. Isso demandou articulação entre dois entes da federação. O planejamento territorial e a criação de áreas protegidas são modo preventivo para se evitarem crises hídricas graves. 
Segurança ambiental evita ocupação de áreas de risco de inundações.

Em muitas cidades brasileiras houve a ocupação de áreas de proteção de mananciais, como na Billings e Guarapiranga em São Paulo, inviabilizando o uso da água desses reservatórios.
Num colapso de fornecimento de água, os mais ricos têm como se proteger comprando água engarrafada, transportada em caminhões pipa etc. Os mais pobres têm menores alternativas de se defender. Todas essas dimensões da insegurança atingem de modo mais duro os vulneráveis e pobres, o que torna a ação voltada para reduzir esses riscos uma ação também de justiça social, justiça ambiental, justiça hídrica.
A segurança  alimentar, também é vital, como demonstrou a greve de caminhoneiros ocorrida no Brasil em 2018, com risco de desabastecimento.   Hortas urbanas tem  sido criadas  para complementar o abastecimento alimentar.


Uma das tarefas do urbanista é reduzir  as inseguranças que ameaçam os cidadãos. Ele pode fazer isso por meio do ecodesign, do ordenamento territorial, de normas e fiscalização, do desenho urbano, utilizando o seu saber e os instrumentos nos quais tem perícia. Por meio do desenho urbano em escala micro ou em nível local e regional, várias das questões de segurança urbana podem ser mitigadas ou resolvidas. Esse é um dos grandes desafios dos urbanistas na sociedade atual.

 

 

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

O capitalista não egoísta


Maurício Andrés Ribeiro
 

O capitalismo não existiria sem os capitalistas. Quem são  os capitalistas? São as pessoas físicas ou jurídicas que investem, compram ações e buscam o lucro. Se você é aposentado ou pensionista e um fundo de pensão gerencia suas aplicações, você também é um capitalista.
Os capitalistas em geral desejam o lucro máximo para suas aplicações financeiras. Para isso colocam à frente de empresas e corporações em que investem pessoas capazes de extrair o máximo de lucro com o mínimo de custos. Essas pessoas são em geral remuneradas proporcionalmente ao lucro e dividendos que proporcionam aos donos do capital, os acionistas e investidores. No afã de maximizar lucros muitas vezes praticam a gestão temerária, assumindo riscos para a segurança do trabalhador ou para  a segurança ambiental, e assumindo-se riscos de provocar desastres. Há exemplos recentes disso na atividade de mineração.
Nas relações econômicas a defesa intransigente do lucro, a ganância, a externalização de custos para os demais e a internalização de benefícios são exemplos de comportamentos egoístas. Na busca de internalizar lucros  as empresas externalizam custos que recaem sobre a sociedade de modo difuso e sobre o meio ambiente. Numa contabilidade integral que internalizasse custos muitas empresas deixariam de ser lucrativas.


 
Acionistas  ativistas protestam em frente à sede da Billiton na Austrália após o desastre de Mariana.
Fundos de investimentos que envolvem trilhões de dólares recentemente recomendaram a seus clientes que invistam em atividades que não degradem o ambiente.
Chefes de 130 bancos  que movimentam US$47 trilhões também reafirmam compromissos com sustentabilidade ambiental, proposta que já existia desde o protocolo verde no Brasil e a declaração de Colevecchio.
Será que os capitalistas estão descobrindo que o egoísmo dá prejuízo? Quando perguntei isso numa rede social, varias respostas demonstraram desconfiança, denunciaram que seria greenwashing, maquiagem verde, e desacreditaram de  tais propostas.
Os capitalistas sempre buscam o lucro, mas há sinais de alguma mudança no topo de empresas. Chefes de 181 corporações americanas em 2019 assinaram um documento no qual se comprometem a priorizar os interesses não apenas dos acionistas e investidores (shareholders) mas também dos demais interessados naquela empresa (stakeholders). Propõem investir nos  empregados, lidar eticamente com fornecedores, apoiar as comunidades em que trabalham e preservar o meio  ambiente, além de gerar valor para os acionistas.
As diversas partes interessadas numa corporação. Os investidores e acionistas tem sido priorizados sobre os interesses das demais partes.

Pode-se perguntar:
Será veraz esse compromisso ou serão apenas palavras da boca para fora sem materialização prática na realidade?
Os chefes estariam dispostos a abrir mão de suas receitas para beneficiar a coletividade?
As corporações deveriam mudar seus critérios de remuneração, dando melhores retornos aos dirigentes que beneficiem a todas as partes interessadas (stakeholders ) e não apenas aos acionistas e investidores ( shareholders)?
Esses dirigentes (CEOs) serão capazes de colocar essas ideias em prática em suas corporações?
Eles serão capazes de contagiar positivamente outras corporações para que abracem tais ideias e atitudes?
Ao assinar tais compromissos,  esses dirigentes de corporações americanas se aproximam dos acionistas engajados ou "concerned shareholders."
O movimento de acionistas engajados aponta na mesma direção do manifesto dos CEOs de grandes corporações: beneficiar todas e cada uma das partes interessadas nas atividades de um empreendimento e não apenas os detentores do capital.  Em contexto em  que os atores externos  não querem ou não podem atuar, um caminho possível é a ação de dentro para fora nas corporações. Os movimentos de acionistas ativistas ou acionistas engajados participam de assembleias das empresas e levam ali suas questões e propostas.
Esses dois movimentos, dos chefes de corporações e dos acionistas ativistas sinalizam para uma convergência pós-egoísta.

Quando os acionistas/investidores, detentores do capital, não forem mais tratados como stakeholders privilegiados e as demais partes interessadas tiverem prioridade, estaremos migrando em direção ao pós capitalismo. A questão central é se é possível migrarmos de comportamentos egoístas para comportamentos pós egoístas seja no capitalismo ou em qualquer outro tipo de contexto socioeconômico. 
Alguns empresários se mexem quando vêm  ameaçados seus mercados consumidores no exterior e partem para uma ação não propriamente altruísta, mas de um egoísmo mais esclarecido e proteger seus interesses. Talvez esse seja um passo intermediário para se evoluir em direção à seva, ação desinteressada.
Os links abaixo sobre acionistas engajados ou acionistas ativistas (concerned shareholders) informam sobre um tipo de ator que pode ter importância crescente, ao atuar de dentro para fora das corporações, influenciando decisões em assembleias.
Os capitalistas podem estar-se ecologizando. Sinais disso pipocam em toda parte. Ainda são poucos, mas estao crescendo. Por razões contábeis, econômicas, práticas e de um egoismo mais esclarecido e não por motivações éticas, filosóficas, altruístas. Do mesmo modo como a abolição da escravatura começou pequena e culminou décadas depois com a libertação dos escravos, pode ser que estejamos no inicio de um movimento que um dia poderá dar bons frutos, com a domesticação do capital.












 

 

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Hidratar a formação dos urbanistas


Maurício Andrés Ribeiro
A água se torna assunto  prioritário de urbanistas e planejadores quando falta, quando  se apresenta com má qualidade ou quando seu excesso causa inundações nas cidades. Então, toma-se consciência de sua importância. Desperta-se para a necessidade de cuidar bem dela, preservá-la e proteger as fontes de abastecimento.

Cresce no mundo o movimento pelas cidades sensíveis à água, que tomam consciência dela, conhecem melhor seu ciclo, como geri-lo e planejá-lo.  Desenvolvem-se tecnologias para economizá-la. Na Austrália, país severamente afetado por escassez de águas, uma universidade criou um centro de cidades sensíveis à água.
Em muitas cidades os rios tornaram-se invisíveis ao serem canalizados, cobertos com pistas de rolamento para veículos.  Sistemas de alerta para interditar tráfego em períodos de pico de cheia passam a ser necessários nos fundos de vales já ocupados.
É possível recuperar os rios e reintegrá-los à paisagem urbana, como mostram várias experiências no mundo. No Porto, em Portugal, há trabalho relevante de revitalização de rio  urbano de Pedro Teiga  do Ribeira da Granja,. Manter parques lineares ao longo dos fundos de vales é uma forma de reduzir riscos à vida das pessoas e prejuízos econômicos.

Várias cidades promovem a renaturalização de fundos de vales, com demolição de obras de avenidas sanitárias, devolvendo as várzeas aos rios. No Japão esse tipo de cuidado é praticado no urbanismo: a enchente inunda áreas não edificadas e quando ela se vai retomam-se as atividades daquela área verde.
Várzea ocupada e várzea protegida

Renaturalização de rios urbanos
 
A pesquisa ambiental e a geração de conhecimentos locais constituem um pré-requisito para elaborar os projetos e  sua posterior execução.
No campo da educação, as escolas de  arquitetura e urbanismo precisam superar sua hidroalienação.  Conhecimentos  sobre a água superficial e subterrânea nos locais em que serão implantados bairros ou cidades, por meio de pesquisas e levantamentos técnicos, são pré-requisitos para a elaboração dos projetos, das normas urbanísticas de uso e ocupação do solo. É útil produzir conhecimento sobre a infiltração de água de chuva coletada nos telhados das casas e pesquisas dos tipos de pavimentação para permitir infiltrar a água de chuva no terreno ao invés de deixar que ela escoe.
Para que os municípios atuem de modo responsável para com a água, é necessário hidroalfabetizar políticos e administradores, além dos próprios engenheiros civis, sanitaristas, arquitetos e urbanistas para que se tornem hidroconscientes. Além disso, a hidroconsciência dos cidadãos, despertada quando sentem na pele o drama da falta de água ou seu excesso durante as inundações é importante para influenciar as prioridades dos governos.
Resgatar o urbanismo de sua hidroalienação e hidratar o planejamento e a gestão urbana ajudam se prover segurança hídrica às populações urbanas.
Entre os temas prioritários para a hidroeducação de urbanistas e demais profissões estão: águas subterrâneas e uso do solo; Captação de água de chuva; Dessalinização; Reuso; Produtores de água; Cidades hidroconscientes.; Micro e macrodrenagem urbana.; Impermeabilização do solo;  Sistemas e obras de infraestrutura: energia, pavimentação e saneamento ambiental (drenagem, abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos).
Os textos abaixo, publicados neste blog, podem ser úteis para a formação de urbanistas hidroconscientes:
















Hidroalfabetização







Temas emergentes sobre a água no Brasil
Ecologizar a gestão das águas
Escalas da gestão das águas
Municípios, uso do solo e gestão das águas
Viver em harmonia com a água, uma lição japonesa

 

 

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Municípios, uso do solo e gestão das águas


Maurício Andrés Ribeiro 

A Constituição Federal de 1988 dispõe que cuidar do uso e da ocupação do solo é competência dos municípios, que atuam por meio de planos diretores, leis orgânicas municipais, leis de uso e ocupação do solo, leis de loteamento ou parcelamento, Estatuto da Cidade e normas urbanísticas. Também podem fazê-lo por meio da criação e implantação de unidades de conservação.
Devido a essas responsabilidades legais, as ações municipais incidem direta ou indiretamente na gestão das águas. A produção de água envolve o uso do solo rural, onde ela é produzida e o uso do solo urbano, onde é distribuída, flui e é devolvida ao ambiente natural.
No município se localiza uma multiplicidade de usuários da água, desde o consumidor doméstico até os usos industriais, minerários e a irrigação. Cabe a ele, portanto, parte da responsabilidade referente à prevenção de conflitos entre usuários, que podem ser evitados por meio da aplicação dos instrumentos de ordenamento territorial.
Não se pode obrigar o município a cumprir determinações de outras escalas de governo e de planos de recursos hídricos, mas é possível induzir comportamentos hidroconscientes. Incentivos econômicos, como os oferecidos pelo ICMS ecológico, induzem os municípios a serem ambientalmente responsáveis. Leis estaduais de ICMS ecológico estimularam municípios a introduzirem em suas prioridades a criação e a manutenção de unidades de conservação (agenda Verde), bem como o licenciamento de aterros sanitários e usinas de lixo (agenda Marrom). Incentivos similares podem ser oferecidos a municípios que disponham de plano de ordenamento territorial hidricamente conscientes, que considerem a gestão das águas superficiais e subterrâneas, a drenagem e a recarga de aquíferos (agenda Azul).
Por meio de autorizações e alvarás, municípios aprovam usos do solo em seu território. Com vontade política e competência técnica e jurídica, podem negar alvarás ou licenças para usos, parcelamentos ou loteamentos do solo. Autorizações ou licenças ambientais estaduais ou federais dependem da anuência municipal, por meio de declaração de que empreendimento a ser licenciado não se localiza em desacordo com o uso e ocupação do solo municipal.
São múltiplas as responsabilidades municipais que incidem na produção e na demanda das águas: proteger mananciais de superfície e subterrâneos e áreas de preservação permanente, criar e manter parques urbanos, cuidar das lagoas urbanas, proteger áreas de recarga de  aquíferos, as inundações ribeirinhas, agravadas pelas ilhas de calor sobre as cidades, gerenciar o uso do solo de modo hidricamente responsável, evitar  os deslizamentos de encostas, prover o saneamento - o abastecimento, o esgotamento sanitário, os resíduos sólidos, e drenagem que evite inundações; legislar para que as  edificações  e o paisagismo sejam hidroeficientes.

Figura: Fonte: (Tucci, 2003) in Avaliação Ambiental integrada de bacia Hidrográfica, de Carlos E.M. Tucci e Carlos André Mendes, 2006.
A gestão do lixo é essencial, pois sua disposição inadequada agrava enchentes urbanas, ao entupir os sistemas de drenagem. Também prejudica a qualidade das águas superficiais e subterrâneas quando sua disposição final é feita em lixões. A gestão de resíduos exige ações de todos e, especialmente, um forte envolvimento das cidades e dos cidadãos.
Os cursos d’água têm leitos de vazante, leitos menores e leitos maiores que enchem durante chuvas intensas. Inundações e enchentes urbanas se agravam quando os espaços para a ocupação imobiliária e para o automóvel invadem as faixas ribeirinhas nos fundos de vales e são construídas avenidas “sanitárias”, que encaixotam os rios urbanos e tiram o espaço natural da água.
As enchentes têm uma componente climática associada ao aumento da precipitação de chuvas e uma componente não climática, como, por exemplo, o entupimento de redes de drenagem pelo lixo ou o escoamento superficial aumentado devido à impermeabilização dos solos.
Em muitas cidades brasileiras, encostas íngremes e fundos de vales sujeitos a riscos foram ocupados. As cidades deram as costas à água. O planejamento urbano se hidroalienou e desconhece o ciclo da água.  Grande parte da infraestrutura hídrica nas cidades é subterrânea:  tubulações prediais, redes de abastecimento, redes de coleta de esgoto, redes de drenagem estão fora das vistas do cidadão e são pouco conhecidas.
Em Belo Horizonte, pessoas morreram afogadas dentro de seus veículos que trafegavam por uma avenida de fundo de vale no momento de uma súbita enchente. 
A proteção da cobertura vegetal é uma forma de reduzir os riscos de erosão e deslizamentos de encostas. É também um modo de trabalhar a favor da natureza para que ela preste serviços valiosos de estocagem de água no subsolo.

 

 

Viver em harmonia com a água, uma lição japonesa

Maurício Andrés Ribeiro 

É inspirador observar o relacionamento harmônico com a água de modo integrado com o uso do solo e as florestas no Japão.[1] Cercado de mares e muito rico em fontes de água, originárias dos Alpes japoneses, suas montanhas ocupam 70% da superfície e constituem a espinha dorsal do arquipélago. Elas têm ocupação humana rarefeita em contraste com os vales em que há cidades muito densamente ocupadas.
As densidades populacionais e de ocupação do solo são muito altas nas metrópoles japonesas e no país. Com área total de 372 mil Km2 (equivalente à área do Estado do Rio Grande do Sul) e com 126 milhões de habitantes, a densidade média da população é de 337 habitantes por Km2., ou seja, cerca de 15 vezes maior do que a média brasileira.  
Os Alpes japoneses são, em sua maior parte, ocupados por florestas, que servem para a proteção dos solos e o controle da erosão. Ainda que a maior parte das florestas seja de propriedade privada, sua exploração e a comercialização do produto são usualmente feitos por meio de associações florestais. Sendo o país de clima temperado, a vegetação demora 80 anos para ser explorável e, desta forma, as florestas são consideradas como poupança, mais do que como investimento com retorno em curto prazo.
Apesar da altíssima densidade populacional, os fundos de vales em cidades japonesas são mantidos não edificados. Preservam-se os fundos de vale não edificados nas cidades, com canais abertos e parques lineares, que são inundados com as chuvas. Quando as águas se vão, não deixam danos econômicos ou sociais. A água é integrada no paisagismo e no urbanismo de modo harmônico e leva em consideração questões econômicas e de segurança em casos de inundações.
Fundo de vale não ocupado em cidade japonesa reduz prejuízos com enchentes.
Foto: Maurício Andrés

O uso da terra urbana e rural está sujeito a regras elaboradas. Um perfil típico é a ocupação urbana das faixas de interseção entre as montanhas e os vales. As montanhas são usadas para florestamento e preservação ecológica, além do uso econômico e os vales, usados para a agricultura intensiva que, em muitos casos, aproveita os espaços vazios nas periferias urbanas, onde os terrenos não construídos são raramente ociosos. Hortas, pomares e plantações diversificadas ocupam essas valiosas faixas, contribuindo para o abastecimento alimentar. No Japão, programas intensos de florestamento de encostas, de criação de cooperativas florestais e de proteção à cobertura vegetal reduziram as inundações nas planícies e os prejuízos à economia agrícola.
Mas isso nem sempre foi assim e as práticas de convivência harmônica com a água resultaram do aprendizado social sobre os riscos e os custos da ocupação inadequada dos vales. No passado houve desflorestamento das montanhas, erosão e assoreamento nos vales, perdas agrícolas, fome e problemas sociais.  O exemplo seguinte é elucidativo: no início do século XX o Japão sofria sérios problemas de enchentes originadas em suas montanhas, que haviam sido desflorestadas. As planícies com plantações de arroz eram frequentemente inundadas por enchentes que causavam prejuízos, perda da produção agrícola e fome. O país, que então se abria para o mundo, buscou no exterior apoio de quem conhecia bem as inundações: contatou os holandeses, que sabiam conter o mar com diques e evitar que as terras baixas fossem inundadas. Os holandeses estudaram o problema das enchentes japonesas e propuseram ações baseadas em sua experiência. Não tiveram sucesso. Os japoneses resolveram, então, buscar sua própria solução para o problema. No plano decenal de 1884, que fixou as linhas para a entrada do Japão no período moderno de sua história, advogava-se a importância de melhorias contínuas nas tecnologias tradicionais disponíveis no país. Assim, observaram que numa das ilhas os problemas de enchentes eram menores que no restante do país. Ali se protegiam as montanhas com florestas e o uso da lenha não gerara muito desmatamento. Disseminaram em todo o país aquelas práticas tradicionais. Programas intensos de proteção de encostas reduziram as inundações. Cooperativas florestais foram criadas para administrar as florestas e manejá-las de forma sustentável, usando a madeira para mobiliário e construção civil. O florestamento dos Alpes japoneses foi estratégico para conter sedimentos e erosões. As medidas de prevenção e controle evoluíram e compreendem a manutenção integral da cobertura de florestas nas áreas montanhosas, a construção de represas para conter a terra que escorre das montanhas junto com a água de chuva e a proteção de encostas por meio de redes metálicas ou de plástico, que previnem os deslizamentos de terra. Quando os japoneses aprenderam a cuidar melhor de suas montanhas e florestas, evitaram o desmate descontrolado, reduziram a erosão e as perdas agrícolas.
Hoje, o Japão ensina a aproximação com a água, voltando-se de frente para os lagos, rios e regatos. As cidades procuram ter intimidade com a água, evitando que córregos sejam aprisionados em canais fechados. Promove-se a reintegração urbana da paisagem ribeirinha e dos seus animais, como rãs e libélulas. Evita-se asfaltar as vias, para não agravar problemas de drenagem e provocar inundações. Evita-se que a água de chuva escorra diretamente para os rios; ela infiltra lentamente no solo. Represas de armazenagem e regularização da drenagem são previstas nos parcelamentos urbanos. Adotam-se sistemas de armazenagem da água de chuva em tanques subterrâneos. Age-se preventivamente na organização humana do espaço e na ocupação do solo.
 O Japão ensina que pode ser simples a solução para se prevenir inundações e para se articular a gestão da água com o uso e ocupação do solo. Ensina que a aprendizagem coletiva de convivência harmônica com a água é um processo civilizatório e cultural em que se aprende a partir dos erros cometidos, em aproximações sucessivas.
O Japão mostra que a aprendizagem coletiva é um processo cultural.
Os japoneses aprenderam com a dor, com o sofrimento e com os prejuízos econômicos provocados por terremotos e inundações, a atuar preventivamente e com prudência ecológica no seu ordenamento territorial. O exemplo japonês mostra uma sociedade que aprendeu a dar respostas adequadas aos problemas de injustiças sociais e de segurança ecológica e ambiental. O Brasil tem muito a aprender com a experiência japonesa nesse campo.

 



[1] O Japão é estudado no livro Colapso, de Jared Diamond, como um exemplo positivo de civilização que aprendeu a se relacionar de modo mais amigável com o ambiente e a água.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Sri Aurobindo e a liberdade


Maurício Andrés Ribeiro

A liberdade é um tema presente na vasta obra de Sri Aurobindo, que tratou da liberdade de expressão e de opinião, da liberdade nacional e política e da liberdade psicológica, interior e espiritual.
Sobre a importância da liberdade de palavra e de opinião e os limites da autoridade dos governantes,  ele escreveu:  “A todos os membros de qualquer instituição pública iniciada e administrada pelo povo de qualquer nação civilizada é dada plena liberdade para oferecer sua opinião sobre qualquer questão, de acordo com regras  universalmente reconhecidas de todas as instituições públicas. Nenhum presidente tem a autoridade para suprimir esta liberdade-este direito natural de cada membro da sociedade. O presidente é apenas um servo do conjunto formado pelo ajuntamento das pessoas que o elegem. Há regras para regulamentar a sua conduta. Nenhum presidente deve quebrar essas regras. Ele não pode sufocar a liberdade de expressão e liberdade de opinião”. (848 Speeches 1907 – 1908)
Entretanto, a liberdade de expressão e de opinião pode ser usada de modo indevido se for praticada com ódio,  preconceitos, desrespeito pelos outros e por suas sensibilidades. Nesses casos  quem a pratica precisa estar preparado para sofrer as reações daqueles que se sentem ofendidos, como por exemplo aconteceu no caso islamofóbico do Charlie Hebdo, jornal francês que publicou charges ofensivas contra símbolos religiosos  muçulmanos e sofreu um ataque terrorista em reação. Sri Aurobindo  enfatizava a importância de a liberdade ser praticada com amor : “É somente o amor que pode impedir o uso indevido da liberdade; é apenas a Fraternidade que pode tornar a igualdade tolerável.”  (548 - Epístolas/cartas do exterior)
Essa é uma observação valiosa para o mundo contemporâneo em que manifestações de liberdade se expressam sem respeito ou consideração para com os valores dos demais e atraem reações violentas.
No início do século XX, quando formulou a doutrina da resistência defensiva, que orientou a luta pela libertação da Índia em relação à dominação inglesa, ele focalizava a importância da   liberdade nacional.   “A liberdade é o primeiro requisito para a saúde  e vida vigorosa de uma nação. Uma dominação estrangeira é em si uma condição, não-natural e se permitida, deve trazer outras condições insalubres e não naturais nas pessoas subjugadas que levará a decadência fatal e desorganização. A lei estrangeira não pode construir uma nação, apenas a resistência à lei estrangeira pode soldar os elementos discordantes de um povo em uma unidade indivisível. Quando um povo, predestinado à unidade, não pode realizar o seu destino, a lei estrangeira é uma disposição da natureza pela qual a necessária e convincente  pressão é aplicada para conduzir suas peças discordantes à concordia.” (Bande Mataram, Calcutta, April 27th, 1907)
Para ele, no contexto da luta pela independência indiana, a libertação política era um passo em direção à liberdade espiritual: “Pela nossa liberdade política, recuperaremos uma vez mais a nossa liberdade espiritual. Uma vez mais na terra dos santos e sábios queimará o fogo do antigo Yoga e os corações de seu povo serão levantados para as vizinhanças do Eterno”. (876 Bande Mataram)
Ele usava conceitos psicológicos  e espirituais para definir a liberdade: “Estar consciente do self é liberdade. Self eu tenho e, tendo self, sou livre.”  (620 Pondicherry, c. 1927 – 1947)
Para Sri Aurobindo, a consciência de ser uno  com o todo, bem como a capacidade de superar o egoísmo e o auto interesse estreito, constituem formas de ser livre interiormente e espiritualmente.